DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

sexta-feira, 26 de abril de 2013


Cancelamento da inscrição no cadastro de contribuintes como forma de sanção
Velocino Pacheco Filho
         
          De tempos em tempos alguém sugere, como sanção pelo cometimento de infrações, nem sempre contra a ordem tributária, o cancelamento da inscrição do infrator no cadastro de contribuintes do ICMS.
          Assim, já foi sugerido cancelar de ofício a inscrição no cadastro de contribuintes de quem vende gasolina adulterada, de quem comercializa produtos “pirateados” e assim por diante.
          Será que os proponentes de tais medidas pensam realmente que os comerciantes não vão mais praticar essas infrações por medo de perderem sua inscrição no cadastro do ICMS?
          O cadastro de contribuintes foi criado no interesse do Fisco. Seu objetivo é manter o controle sobre quem pratica operações de circulação de mercadorias ou prestações de serviço de transporte e comunicação. Interessa ao Fisco que todos estejam cadastrados.
          O efeito do cancelamento da inscrição no cadastro é jogar o infrator na informalidade. Passa a operar na informalidade, não por vontade própria, mas porque o poder público assim quis. Ele foi condenado a ser informal.
          O interesse do Fisco é que todos estejam cadastrados, emitam notas fiscais, entreguem todas as declarações exigidas pela legislação e possam ser vigiados de modo a inibir as práticas irregulares. Mas se a inscrição cadastral é cancelada de ofício, ele fica livre para cometer ilícitos, pois o Poder Público não o está vigiando. Se está na clandestinidade, não precisa mais emitir notas fiscais, nem entregar declarações ao Fisco, informando-o sobre suas atividades. Para quem opera irregularmente, isso não é punição; é um presente.
          Poderiam, contudo, objetar que o infrator enfrentaria dificuldades em trabalhar informalmente. O cancelamento da inscrição cadastral constituiria, assim, um obstáculo ao exercício do comércio e nisso consistiria a punição.
          Ora, a Constituição Federal inclui entre os direitos e garantias fundamentais a liberdade de trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 5], XIII). Além disso, o parágrafo único do art. 170 da Lei Maior, tratando da ordem econômica, assegura “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
          A ressalva aos casos previstos em lei a que se refere o constituinte diz respeito a profissões que exigem determinadas qualificações, como o exercício da medicina, engenharia e outras em que a falta de qualificação poderia acarretar grave prejuízo para a coletividade. Nos demais casos, não cabe ao Poder Público impedir o exercício de atividade econômica.
          O contribuinte que comete infração contra a legislação tributária deve ser punido com a exigência do tributo acrescido de multa, juros e correção monetária, mas não deve ser impedido de comercializar.
          Muito pior é querer cancelar de ofício a inscrição no cadastro de contribuintes por infração que não é tributária, como a adulteração de combustível ou a comercialização de mercadorias “pirateadas”. Por essas infrações, devem ser aplicadas sanções apropriadas, sem envolver a fiscalização de tributos, mesmo por que a comercialização de combustíveis adulterados ou de mercadorias “pirateadas” não afasta a exigência dos tributos devidos (pecunia non olet). 

quinta-feira, 18 de abril de 2013


Repetição do indébito: o art. 166 do CTN
          Velocino Pacheco Filho
          Auditor Fiscal/SC
          O art. 165 do Código Tributário Nacional assegura, inependentemente de prévio protesto, a restituição do tributo pago indevidamente. O Estado não tem o direito de reter valores pagos a título de tributo que não é seu. O art. 77 da Lei 5.983/81, de Santa Catarina, assegura a atualização monetária na restituição de créditos tributários pagos indevidamente.
          O pedido de restituição pode ser feito pela via judicial ou administrativamente. Em qualquer caso, compete ao requerente apresentar prova de que (i) foi feito o pagamento e (ii) que tal pagamento era indevido.
          Pode suceder também que o pagamento era devido no momento em que foi efetuado, mas se tornou indevido em momento subseqüente por causa da declaração de inconstitucionalidade da lei que instituiu o tributo ou por outra causa.
          Quem pode pedir restituição? Naturalmente, quem pagou o tributo indevido. Contudo, há tributos cujo ônus repercute sobre terceira pessoa – como no caso do ICMS que repercute sobre o consumidor da mercadoria. O legislador, querendo preservar os direitos do assim chamado “contribuinte de fato”, condicionou a restituição à prova de que o requerente não repassou o ônus do tributo ao adquirente da mercadoria ou, tendo repassado, estar por ele autorizado a pedir restituição (CTN, art. 166).
          O raciocínio é singelo: se quem vende consegue recuperar o imposto do adquirente (embutindo o seu valor no preço da mercadoria), a restituição do tributo ao contribuinte de direito teria por conseqüência o seu enriquecimento sem causa, à custa do adquirente.
          Esse entendimento mereceu o aval do Supremo Tribunal Federal que editou a Súmula 546, do seguinte teor: “Cabe restituição de tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo”.
          A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, nas duas câmaras de direito público, também entendem que é necessária “a comprovação de que o contribuinte de direito (comerciante) não repassou ao contribuinte de fato (consumidor) o encargo financeiro do tributo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, de que está por este autorizado a pleitear a repetição do indébito” (AgRg no REsp 809.034 SP) e, ainda, que “pressupõe a comprovação de que não houve repasse do encargo financeiro decorrente da incidência do imposto ao consumidor final da mercadoria” (AgRg no AgIn 467.456 SP).
           O art. 166 tem sido muito criticado, a uma, porque é muito difícil de produzir a prova de que não houve repasse ao consumidor do valor do imposto e, a duas, porque o dispositivo tem servido de pretexto para o Fisco não restituir o imposto pago indevidamente – se alguém tem de enriquecer ilicitamente, que seja o Estado e não o comerciante.
          Abstraindo da crítica, para entender melhor o dispositivo, vamos nos permitir incursionar no fato econômico subjacente.
          Do ponto de vista econômico, o tributo pode ou não repercutir sobre o adquirente da mercadoria ou repercutir apenas parcialmente, o que é o mais freqüente. Isto por que a repercussão econômica do tributo depende de outros fatores, como o poder de monopólio de quem vende (poder de determinar preços). Depende também da forma como o mercado daquela mercadoria reage à variação do preço (o tributo eleva o preço da mercadoria). Estamos falando do que os economistas chamam de “elasticidade-preço da mercadoria”.
          Voltando para o campo do direito tributário, podemos dizer que a regra do art. 166 estabelece a presunção de que o imposto irá repercutir sobre o contribuinte de fato. Nesse caso, a condição é que o contribuinte de direito esteja autorizado pelo contribuinte de fato a pedir restituição. Assim, de um acordo entre os dois, o contribuinte de fato poderá beneficiar-se da restituição. Desse modo, restabelece-se uma situação de justiça entre adquirente e vendedor (suum cuique tribuere).
          Trata-se, porém, de presunção relativa (juris tantum) que admite prova em contrário. O requerente poderá demonstrar que arcou com o ônus do imposto e não o repassou no preço cobrado.
          No caso de preços administrados (serviços públicos concedidos), a Primeira Turma do STJ entendeu que “o preço dos serviços de transporte aéreo era controlado pelo Governo Federal (Departamento de Aviação Civil), ficando a recorrente sem campo de ação para estabelecer qualquer critério de fixação de sua remuneração. Não há, in casu, formação da base tarifária nem possibilidade de repasse de qualquer tributo aos usuários” (REsp 902.327 PR).
          Contudo, se não conseguir produzir essa prova, o contribuinte estará sendo prejudicado, arcando com o valor do imposto e sem poder pleitear sua restituição.

terça-feira, 9 de abril de 2013


Rastreamento de veículos via satélites é prestação de serviço de comunicação?
          Velocino Pacheco Filho
          Auditor Fiscal/SC

          Com o significativo crescimento dos roubos de caminhões e respectivas cargas, um novo ramo da prestação de serviços tem prosperado: o de monitoramento e rastreamento de veículos mediante uso de satélites artificiais e a tecnologia GPS.
          Qual o tributo que incidiria sobre essa atividade, ISS ou ICMS? Quem pode tributar o monitoramento e rastreamento de veículos: o Município ou o Estado?
          A Constituição Federal define as materialidades sobre as quais a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem instituir e cobrar impostos. Assim, o art. 156, III, da Lei Maior atribui aos Municípios competência para tributar os “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”. Já conforme o art. 155, II, os Estados podem instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações iniciem no exterior”.
          A incidência do ISS, portanto, depende de três condições que devem ocorrer simultaneamente: (i) tratar-se de serviço (i.e. obrigação de fazer); (ii) não estar, o serviço, compreendido na competência dos Estados (serviços de transporte ou de comunicação); e (iii) constar da lista anexa à Lei Complementar 116/2003.
          Trata-se de serviço: o contrato celebrado entre a empresa e seus clientes tem por objeto o monitoramento e o rastreamento dos veículos de propriedade desta última, ou seja, uma obrigação de fazer.
          O serviço enquadra-se no item 11.02 da Lista de Serviços: “vigilância, segurança ou monitoramento de bens e pessoas”.
          Resta saber se essa atividade constitui serviço de comunicação. Caso a resposta seja afirmativa, incide o ICMS estadual; caso seja negativa, incide o ISS municipal.
          Os Estados celebraram o Convênio ICMS 139/2006, concedendo redução de base de cálculo do ICMS na prestação de serviço de rastreamento e monitoramento de veículos de carga, presumindo implicitamente tratar-se de prestação de serviço de comunicação.
          O Estado de Santa Catarina, antes da celebração do referido Convênio 139/2006, havia se manifestado, na resposta à Consulta 26/2006, no sentido da não incidência do ICMS, por entender que monitoramento e rastreamento de veículos não constituem serviço de comunicação.
          Segundo Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário, Linguagem e Método), a comunicação envolve (i) mensagem, (ii) canal, (iii) emissor, (iv) receptor, (v) o repertório, comum a emissor e receptor, necessário para a decodificação da mensagem, (vi) conexão psicológica entre emissor e receptor e (vii) o contexto ou meio onde se dá a comunicação.
          Para a mensagem ser transmitida eficientemente, é preciso que o receptor a compreenda e, para que isso ocorra, além do canal e do código, deve haver conexão psicológica entre emissor e receptor e um contexto histórico-cultural onde se dê a comunicação.
          Mas, a materialidade sobre a qual incide o ICMS não é a comunicação, mas a prestação de serviço de comunicação. Ou seja, a incidência do imposto requer o concurso de três personagens: o emissor, o receptor e o prestador de serviço de comunicação – aquele que disponibiliza, mediante remuneração, os meios para que ocorra a comunicação. Esse terceiro deve ser, tipicamente, um prestador de serviço, isto é, não pode haver relação de emprego entre o terceiro e o emissor (ou o receptor).
          Então vejamos: no caso do monitoramento e rastreamento de veículos de carga, (i) quem é o emissor da mensagem, (ii) quem é o receptor da mensagem e (iii) quem é o prestador de serviço de comunicação?
          O prestador do serviço de comunicação, se for esse o caso, somente pode ser a empresa de monitoramento e rastreamento de veículos, mesmo por que, é dela que o Estado pretende cobrar ICMS.
          O receptor, com certeza, deve ser o proprietário dos veículos de carga, monitorados e rastreados, a quem deve ser informado a sua localização.
          Agora, a pergunta difícil: quem é o emissor da mensagem? O satélite? O caminhão?
          Vamos tentar enumerar as nossas dificuldades:
          (1) tanto o caminhão como o satélite são equipamentos (seres inanimados), o primeiro de propriedade do contratante do serviço e o segundo utilizado pelo prestador do serviço (de sua propriedade ou não);
          (2) a comunicação somente é possível entre seres humanos, não entre homens e equipamentos (por mais sofisticados que sejam) – afinal, as pesquisas sobre inteligência artificial não estão tão avançadas que se possa falar em “conexão psicológica” ou “contexto cultural” entre homem e equipamento;
          (3) pela mesma razão, não há intencionalidade na emissão de sinal (informação) do caminhão para o satélite e deste para o receptor (ou para o prestador do serviço que informa o receptor).
          Então, ao que parece, a prestação de serviço de monitoramento e rastreamento de veículos de carga não caracteriza serviço de comunicação, como havia, corretamente, entendido a resposta à Consulta 26/2006 do Estado de Santa Catarina. Na mensagem emitida pelo prestador de serviço para o contratante do serviço, o serviço de comunicação é prestado pela empresa de telefonia (ou similar) e não pela prestadora de serviço de rastreamento.
          Ora, se não é serviço de comunicação (na verdade, nem existe comunicação), então não incide o ICMS e a competência para tributar é dos Municípios,conforme item 11.02 da Lista de Serviços, apesar do disposto no Convênio ICMS 139/2006.
          Afinal, convênio não é lei e o Confaz não é um corpo legislativo (trata-se de um “colegiado de demissíveis ad nutum”, como já foi lembrado). A instituição de tributo é matéria sob reserva absoluta da lei (em sentido material).
          No caso, o Convênio ICMS 139/2006 estaria criando nova hipótese de incidência do ICMS, não abrangida na competência atribuída aos Estados pela Constituição Federal.

quarta-feira, 3 de abril de 2013


Pecunia non olet
          Velocino Pacheco Filho
          Auditor Fiscal/SC
          Conta-se que o Imperador Vespasiano instituiu um tributo sobre as latrinas. Na época, dispor de uma latrina em casa era um sinal exterior de riqueza e, portanto de capacidade contributiva. Interpelado por querer tributar a mal cheirosa substância, Vespasiano levou as moedas [do tributo] ao nariz e disse: “dinheiro não tem cheiro”.
          Essa a origem do princípio do non olet, sem dúvida um dos princípios tributários menos compreendidos e que mais tem causado perplexidades.
          O sentido do princípio é simples: a ilicitude do comportamento do contribuinte não afasta a incidência do tributo. Exemplo bem conhecido é o de Al Capone, o chefe do crime organizado em Chicago. Nunca conseguiram provar suas atividades criminosas, mas ele foi preso por sonegar imposto de renda (renda esta proveniente de suas atividades criminosas).
          Mas como? O fato gerador do tributo necessariamente é um fato lícito. O fato ilícito somente pode ser causa de sanção, nunca de tributo.
          Está correto. Mas o princípio do non olet não significa instituir tributo sobre fato ilícito. O fato gerador do tributo é sempre um fato lícito. Nisso estamos de acordo.
          Mas, se apesar do fato gerador, descrito na lei, ser um fato lícito, o fato concreto esteja contaminado de ilicitude, a incidência do tributo deve ser afastada?
          O art. 118, I, do Código Tributário Nacional dispõe que “a definição legal do fato gerador é interpretado abstraindo-se da validade jurídica dos atos efetivamente praticados”. Vejamos um caso prático.
          A Constituição Federal dá competência à União para instituir imposto sobre a renda e sobre proventos de qualquer natureza (CF, art. 153, III). Esse imposto tem por fato gerador a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de (i) renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; (ii) de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não caracterizados como renda.
          A percepção de rendimentos do trabalho é um fato lícito. Todavia, o rendimento percebido por um croupier, que trabalha em um cassino clandestino – já que o jogo é uma atividade ilícita no Brasil – não deve ser tributado pelo imposto de renda? Porque?
          Se os que trabalham em atividades lícitas tem seus rendimentos tributados, porque os que trabalham em atividades ilícitas não o seriam? O que justificaria semelhante privilégio fiscal?
          Exagerei no exemplo? O croupier, afinal, é um mero trabalhador – tanto quanto a prostituta é apenas uma trabalhadora. A Constituição não garante a liberdade de exercício de atividade econômica?
          E o caso do dono do cassino clandestino que recebe polpudos lucros por explorar as fraquezas humanas? Tais lucros também se caracterizam como renda e são tributáveis pelo imposto de renda. Se assim não fosse, estar-se-ia premiando a atividade ilícita, que estariam isentas do tributo exigido daqueles que exercem atividades lícitas.
          O art. 150, II, da Constituição veda instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente; não se pode cobrar o tributo de quem exerce atividade lícita e isentar quem exerce atividade ilícita. Além de contrariar o princípio da isonomia, seria profundamente injusto e imoral.
            Está vendo, Débora, o velho Imperador Vespasiano sabia das coisas!