DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Os pequenos déspotas

Velocino Pacheco Filho

Consoante dispõe o art. 1º da sua Lei Fundamental, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Entende-se por Estado de Direito aquele em que os detentores do poder estão sujeitos às leis ou, em outras palavras, o ordenamento jurídico funciona como limitador do exercício do poder. Tanto o Governante como a Administração ficam impedidos de impor sua vontade além do que a lei lhes permite. Já o Estado Democrático de Direito representa um passo mais adiante: as leis devem garantir os direitos fundamentais, baseados no princípio da dignidade da pessoa humana. O termo une o conceito de Estado de Direito (i. e. governado pelas leis) ao de democracia (em que o povo detém a soberania).

Canotilho, entretanto, fala de um Estado de Não-Direito em que o poder político se pretende desvinculado dos limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade protegida pelo Estado. A compreensão do Estado de Não-Direito é fundamental para a compreensão do Estado de Direito, principalmente quando o primeiro se apresenta disfarçado de Estado de Direito. 

Então, podemos identificar o Estado de Não-Direito como aquele que edita leis arbitrárias, em que o direito se identifica com a “razão do Estado” e que se caracteriza pela desigualdade na aplicação do direito.  No Estado de Não-Direito, o “politicamente correto” é o que o “partido” decreta como tal, desvirtuando em proveito de seus próprios objetivos conceitos como interesse público, função social, coletividade, bem comum etc. O Estado de Não-Direito pune severamente as faltas dos adversários, mas trata de encobrir as cometidas pelos correligionários e membros do “partido”. Não é preciso muita imaginação para identificar no direito tributário brasileiro traços do Estado de Não-Direito.

O Despotismo, termo de venerável antiguidade, refere-se, por sua vez, ao regime em que o Governante está acima das leis. As leis a ele não se aplicam. O poder concentra-se em uma só pessoa, que não deve obediência a leis ou regras: governa ao sabor de sua vontade e de seus caprichos. A autoridade do déspota não está limitada pelo direito.

A palavra “despotismo” tem sua origem no grego “despotes” que significa o chefe de família, o senhor da casa. O déspota governa o Estado como se fosse a sua casa; como se o Estado fosse um domínio privado. O governo do Estado torna-se um governo doméstico. A conhecida frase atribuída a Luiz XIV, rei da França, “l’État c’est moi” (o Estado sou eu) representa mais que qualquer outra a síntese  do significado de despotismo. O conceito de despotismo é a antítese do Estado de Direito, como se fosse sua imagem especular.

Despotismo, contudo, não se confunde com o Estado de Não-Direito, pois este último guarda uma aparência de Estado de Direito: podemos mesmo dizer que é a sua paródia. Contudo, na prática, ambos colaboram para solapar as bases do Estado Democrático de Direito.

Há momentos em que um chefe de repartição, embriagado com o seu próprio poder, entende que pode sobrepor-se à lei; que não está obrigado a obedecê-la. Torna-se, então, um pequeno déspota, oculto na complexidade da burocracia do Estado de Direito, exercendo um poder que, na verdade, ele não tem.

Examinemos três exemplos colhidos junto à Administração Tributária catarinense: (i) a recusa obstinada de devolver sem correção monetária o imposto recolhido indevidamente; (ii) ignorar as disposições da legislação que vinculam determinados tratamentos tributários à destinação da mercadoria, resultando em conclusões grotescas; e (iii) a devolução (ou sua falta) dos valores recolhidos a título de AIR, cuja instituição foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

No primeiro exemplo, dispõe o art. 77 da Lei 5.983/1981 que, na restituição de quaisquer créditos tributários pagos indevidamente, os valores serão atualizados monetariamente. Cuida-se de dispositivo expresso de lei que deveria ser cumprido sem questionamentos pelo administrador público ao qual falece discricionariedade para decidir se deve cumpri-la ou não. O cumprimento da lei não é facultativo; é obrigatório. O servidor público, na hipótese, deveria ser chamado à responsabilidade, pois o descumprimento da lei caracteriza falta funcional.

O segundo exemplo refere-se à substituição tributária, instituto que atribui a terceiro vinculado ao fato gerador a responsabilidade pelo recolhimento do tributo, com afastamento da responsabilidade do contribuinte. Como norma excepcional, deve estar expressamente prevista e somente pode ser aplicada em seus estritos termos. 

Ora, o art. 227 do Anexo 3 do RICMS-SC, com base nos Protocolos ICMS 196/2009 e 116/2012, submete ao regime de substituição tributária os materiais de construção, acabamento, bricolagem ou adorno, relacionados na Seção XLIX do Anexo 1. Decidiu, entretanto, a Administração que, para exigir o imposto do substituto tributário, basta a descrição da mercadoria na legislação estadual e a respectiva classificação na NBM/SH, independentemente de destinar-se ao emprego na construção civil ou como acabamento, bricolagem ou adorno. O risco desse entendimento é incluir no referido regime mercadorias outras que não as destinadas à construção civil etc. e, portanto, sem a devida autorização legal. A destinação da mercadoria, neste caso, é parte da descrição feita pelo legislador da operação tributável cujo imposto deverá ser exigido do substituto.

Vejamos o terceiro exemplo: a redação original do inciso II do art. 155 da Constituição Federal permitia aos Estados instituir adicional de até cinco por cento do que fosse pago à União a título de imposto de renda, sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital. Em Santa Catarina, o Adicional Estadual de Imposto de Renda (AIR) foi instituído pela Lei 7.542/1988 e regulamentado pelo Decreto 6.001/1990.

Devido a conflitos de competência com outros Estados, hipótese que não poderia ser suprida nos termos do § 3º do art. 24 da CF, o Supremo Tribunal Federal declarou, em controle concentrado, a inconstitucionalidade da lei catarinense. Posteriormente, a competência dos Estados para instituir o adicional foi revogada pela Emenda Constitucional 3/1993.

Como era de esperar, os contribuintes entraram com pedidos administrativos de repetição do indébito em relação aos valores recolhidos a título de AIR.  Leciona Ricardo Lobo Torres Há consenso de que a declaração de inconstitucionalidade da norma que instituiu o imposto torna indevidos ab initio os pagamento efetuados a esse título. Ou seja, a eficácia da declaração de inconstitucionalidade é ex tunc. Segundo de Santi, constitui-se o débito do Fisco, como relação jurídica que decorre mediatamente do pagamento indevido e, imediatamente, de ulterior ato de aplicação que reconheça esse fato. Em síntese, a declaração de inconstitucionalidade pelo STF fez nascer para o Fisco o dever de devolver as quantias pagas a título de AIR. Apesar disso, a Administração dotou a prática de protelar os pedidos, ficando a restituição postergada para as calendas gregas.

Desse modo os pequenos déspotas, por uma compreensão equivocada do que constitui o interesse público, colaboram para negar ao cidadão os direitos que a lei lhes assegura. A ação dos pequenos déspotas, disseminados por toda a Administração, contribui significativamente para a redução do Estado de Direito em Estado de Não-Direito.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Eficiência e eficácia no lançamento tributário

Velocino Pacheco Filho

O art. 37 da Constituição Federal consagra a eficiência entre os princípios informadores da Administração Pública. Ora o lançamento tributário é uma atividade administrativa. Com efeito, o art. 3º do CTN, ao caracterizar o tributo, diz que é cobrado mediante “atividade administrativa plenamente vinculada”. Do mesmo modo, o art. 142 refere-se especificamente ao lançamento como um procedimento administrativo de constituição do crédito tributário. Assim sendo, o lançamento também deve obedecer ao princípio da eficiência.

Pois bem, como pode ser caracterizada a eficiência no lançamento tributário? O lançamento será tanto mais eficiente quanto mais perfeito tecnicamente for, de modo a passar incólume pelos controles da legalidade dos atos administrativo, interno (contencioso administrativo tributário) e externo (julgamento pelos órgãos do Poder Judiciário). Com isso, queremos dizer que o lançamento, mais que atender aos requisitos formais exigidos por lei, deve estar conforme com o devido processo legal e assegurar ao sujeito passivo tributário o contraditório e a ampla defesa. Desse modo, a peça que dá conhecimento da constituição do crédito tributária deve ser clara, completa e sem ambiguidades. O sujeito passivo deve ser informado, com transparência, do tributo que está sendo exigido, qual o fato imponível, métodos de cálculo, conjunto probatório e todas as demais informações necessárias para que possa fazer sua defesa.

O lançamento, por outro lado, somente poderá ser considerado eficiente se obtiver o melhor resultado possível, sem ferir os direitos e garantias do cidadão-contribuinte. Assim, não será eficiente o lançamento baseado em prova ilícita, obtida mediante desrespeito ao direito de privacidade. Também não será eficiente o lançamento que estabelecer diferenças injustificadas entre contribuintes em igualdade de condições.

O lançamento deve se manter de acordo com as exigências legais e com a interpretação dada às normas tributárias pela jurisprudência administrativa e judicial.

A eficiência implica também a eficácia do lançamento, ou seja, que o crédito tributário constituído seja efetivamente recolhido ao Erário. Em outras palavras, o lançamento eficiente deve poder embasar adequadamente a ação de execução fiscal.

Podemos dizer, por outro lado, que o lançamento ineficaz será necessariamente ineficiente? Ora, vejamos: o lançamento pode ser ineficaz por várias razões: (i) por defeito no próprio lançamento: erro ou imprecisão na capitulação legal da exigência, conjunto probatório falho, descrição imprecisa da infração, ou seja, ele é ineficaz porque ineficiente; (ii) por ineficiência do órgão encarregado da execução; (iii) porque a interpretação da norma tributária pelo tribunal diverge da adotada pelo Fisco; (iv) devido a subsequente lei que concede anistia, remissão etc. Podemos falar, então, em ineficácias externas que não são devidas a defeito no próprio lançamento. Resumindo, podemos dizer que o lançamento eficiente deve ser ao menos potencialmente eficaz.

Que fatores contribuem para a eficiência e eficácia do lançamento? Em primeiro lugar, a adequada capacitação dos agentes fiscais. Essa capacitação deve envolver não somente o domínio dos procedimentos de fiscalização e das ferramentas de informática disponíveis, mas também o conhecimento aprofundado dos diferentes ramos do direito envolvidos: tributário, constitucional, processual, administrativo etc. A legislação tributária deve ser clara, razoável e factível, não apenas no que se refere à obrigação principal, mas também quanto às obrigações acessórias ou instrumentais que deve ser adequadas ao objetivo colimado de fiscalização e arrecadação dos tributos. Isto por que as obrigações acessórias devem, no mínimo, atender aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

O art. 37 da Constituição Federal também impõe à Administração os princípios da moralidade e da impessoalidade. Podemos dizer que o conceito de lançamento eficiente abrange também a moralidade administrativa e a impessoalidade na relação entre Fisco e contribuinte.

Falar em moralidade administrativa como norma de direito positivo encerra algumas dificuldades, ou melhor dizendo, perplexidades. Existe toda uma construção doutrinária para distinguir entre norma moral e norma jurídica: a norma jurídica é dotada de sanção, enquanto a transgressão da norma moral implica apenas a reprovação social. O próprio Kant equipara a norma moral ao imperativo categórico (generalização de máxima individual) e a norma jurídica ao imperativo hipotético (a consequência está vinculada a uma condição ou hipótese). O art. 37 da Carta traz a norma moral para dentro de uma norma jurídica, de modo que o descumprimento da norma moral, que constitui o antecedente da norma jurídica, acarreta a sanção prevista nesta última (conforme art. 5º, LXXIII, da CF, o ato lesivo à moralidade administrativa pode ensejar a propositura de ação popular).

Devemos ainda distinguir entre a moralidade do Estado (com base na capacidade contributiva, como propõe Klaus Tipke) e a moralidade da administração tributária (relação entre Fisco e contribuinte) que deve pautar-se na boa-fé, na lealdade e na ausência de malícia.

A impessoalidade, a seu turno, supõe que todos os contribuintes sejam tratados igualmente pela Administração, sem favoritismos ou discriminações: todos são iguais perante a lei; todos são iguais perante a Administração Tributária.