Velocino Pacheco Filho
Consoante dispõe o art. 1º da sua Lei Fundamental, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Entende-se por Estado de Direito aquele em que os detentores do poder estão sujeitos às leis ou, em outras palavras, o ordenamento jurídico funciona como limitador do exercício do poder. Tanto o Governante como a Administração ficam impedidos de impor sua vontade além do que a lei lhes permite. Já o Estado Democrático de Direito representa um passo mais adiante: as leis devem garantir os direitos fundamentais, baseados no princípio da dignidade da pessoa humana. O termo une o conceito de Estado de Direito (i. e. governado pelas leis) ao de democracia (em que o povo detém a soberania).
Canotilho, entretanto, fala de um Estado de Não-Direito em que o poder político se pretende desvinculado dos limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade protegida pelo Estado. A compreensão do Estado de Não-Direito é fundamental para a compreensão do Estado de Direito, principalmente quando o primeiro se apresenta disfarçado de Estado de Direito.
Então, podemos identificar o Estado de Não-Direito como aquele que edita leis arbitrárias, em que o direito se identifica com a “razão do Estado” e que se caracteriza pela desigualdade na aplicação do direito. No Estado de Não-Direito, o “politicamente correto” é o que o “partido” decreta como tal, desvirtuando em proveito de seus próprios objetivos conceitos como interesse público, função social, coletividade, bem comum etc. O Estado de Não-Direito pune severamente as faltas dos adversários, mas trata de encobrir as cometidas pelos correligionários e membros do “partido”. Não é preciso muita imaginação para identificar no direito tributário brasileiro traços do Estado de Não-Direito.
O Despotismo, termo de venerável antiguidade, refere-se, por sua vez, ao regime em que o Governante está acima das leis. As leis a ele não se aplicam. O poder concentra-se em uma só pessoa, que não deve obediência a leis ou regras: governa ao sabor de sua vontade e de seus caprichos. A autoridade do déspota não está limitada pelo direito.
A palavra “despotismo” tem sua origem no grego “despotes” que significa o chefe de família, o senhor da casa. O déspota governa o Estado como se fosse a sua casa; como se o Estado fosse um domínio privado. O governo do Estado torna-se um governo doméstico. A conhecida frase atribuída a Luiz XIV, rei da França, “l’État c’est moi” (o Estado sou eu) representa mais que qualquer outra a síntese do significado de despotismo. O conceito de despotismo é a antítese do Estado de Direito, como se fosse sua imagem especular.
Despotismo, contudo, não se confunde com o Estado de Não-Direito, pois este último guarda uma aparência de Estado de Direito: podemos mesmo dizer que é a sua paródia. Contudo, na prática, ambos colaboram para solapar as bases do Estado Democrático de Direito.
Há momentos em que um chefe de repartição, embriagado com o seu próprio poder, entende que pode sobrepor-se à lei; que não está obrigado a obedecê-la. Torna-se, então, um pequeno déspota, oculto na complexidade da burocracia do Estado de Direito, exercendo um poder que, na verdade, ele não tem.
Examinemos três exemplos colhidos junto à Administração Tributária catarinense: (i) a recusa obstinada de devolver sem correção monetária o imposto recolhido indevidamente; (ii) ignorar as disposições da legislação que vinculam determinados tratamentos tributários à destinação da mercadoria, resultando em conclusões grotescas; e (iii) a devolução (ou sua falta) dos valores recolhidos a título de AIR, cuja instituição foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
No primeiro exemplo, dispõe o art. 77 da Lei 5.983/1981 que, na restituição de quaisquer créditos tributários pagos indevidamente, os valores serão atualizados monetariamente. Cuida-se de dispositivo expresso de lei que deveria ser cumprido sem questionamentos pelo administrador público ao qual falece discricionariedade para decidir se deve cumpri-la ou não. O cumprimento da lei não é facultativo; é obrigatório. O servidor público, na hipótese, deveria ser chamado à responsabilidade, pois o descumprimento da lei caracteriza falta funcional.
O segundo exemplo refere-se à substituição tributária, instituto que atribui a terceiro vinculado ao fato gerador a responsabilidade pelo recolhimento do tributo, com afastamento da responsabilidade do contribuinte. Como norma excepcional, deve estar expressamente prevista e somente pode ser aplicada em seus estritos termos.
Ora, o art. 227 do Anexo 3 do RICMS-SC, com base nos Protocolos ICMS 196/2009 e 116/2012, submete ao regime de substituição tributária os materiais de construção, acabamento, bricolagem ou adorno, relacionados na Seção XLIX do Anexo 1. Decidiu, entretanto, a Administração que, para exigir o imposto do substituto tributário, basta a descrição da mercadoria na legislação estadual e a respectiva classificação na NBM/SH, independentemente de destinar-se ao emprego na construção civil ou como acabamento, bricolagem ou adorno. O risco desse entendimento é incluir no referido regime mercadorias outras que não as destinadas à construção civil etc. e, portanto, sem a devida autorização legal. A destinação da mercadoria, neste caso, é parte da descrição feita pelo legislador da operação tributável cujo imposto deverá ser exigido do substituto.
Vejamos o terceiro exemplo: a redação original do inciso II do art. 155 da Constituição Federal permitia aos Estados instituir adicional de até cinco por cento do que fosse pago à União a título de imposto de renda, sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital. Em Santa Catarina, o Adicional Estadual de Imposto de Renda (AIR) foi instituído pela Lei 7.542/1988 e regulamentado pelo Decreto 6.001/1990.
Devido a conflitos de competência com outros Estados, hipótese que não poderia ser suprida nos termos do § 3º do art. 24 da CF, o Supremo Tribunal Federal declarou, em controle concentrado, a inconstitucionalidade da lei catarinense. Posteriormente, a competência dos Estados para instituir o adicional foi revogada pela Emenda Constitucional 3/1993.
Como era de esperar, os contribuintes entraram com pedidos administrativos de repetição do indébito em relação aos valores recolhidos a título de AIR. Leciona Ricardo Lobo Torres Há consenso de que a declaração de inconstitucionalidade da norma que instituiu o imposto torna indevidos ab initio os pagamento efetuados a esse título. Ou seja, a eficácia da declaração de inconstitucionalidade é ex tunc. Segundo de Santi, constitui-se o débito do Fisco, como relação jurídica que decorre mediatamente do pagamento indevido e, imediatamente, de ulterior ato de aplicação que reconheça esse fato. Em síntese, a declaração de inconstitucionalidade pelo STF fez nascer para o Fisco o dever de devolver as quantias pagas a título de AIR. Apesar disso, a Administração dotou a prática de protelar os pedidos, ficando a restituição postergada para as calendas gregas.
Desse modo os pequenos déspotas, por uma compreensão equivocada do que constitui o interesse público, colaboram para negar ao cidadão os direitos que a lei lhes assegura. A ação dos pequenos déspotas, disseminados por toda a Administração, contribui significativamente para a redução do Estado de Direito em Estado de Não-Direito.