DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A eficácia das multas administrativas

Velocino Pacheco Filho

O direito, como ordem normativa da sociedade, seleciona comportamentos e impõe regras de conduta cujo descumprimento acarreta aplicação de sanções sobre o infrator. 

Sacha Calmon Navarro Coêlho (Teoria e Prática das Multas Tributárias) fala de “um poder real do Estado capaz de obrigar a respeitar a ordem jurídica estabelecida, independentemente de ser justa ou legítimo o poder que a aplica e garante”. Sintetiza esse autor, dizendo que “é pela coação que o Direito se faz efetivo”.

Aplica-se a sanção porque a ordem jurídica foi rompida e para quer não torne a ser rompida. Esse, o efeito intimidativo/preventivo da sanção. “A sanção jurídica efetiva a ordem jurídica , quando lesada, e é imposta ou pelo menos garantida pela força do Estado (coerção estatal)”. 

Não é diferente no direito tributário. A realização do fato jurígeno previsto na lei faz nascer em favor do Estado o crédito tributário, que corresponde a um débito para o sujeito passivo tributário. Caso não cumpra o dever de pagar o tributo ou descumpra os deveres instrumentais impostos pela legislação tributária, serão aplicadas ao infrator sanções que, dependendo das circunstâncias, poderão ser exclusivamente fiscais ou sanções fiscais cumulativas com sanções penais.

Entende, entretanto, o autor que no Brasil, a infração tributária não pode gerar o perdimento e confisco dos bens, vedado que é pela Constituição. Segundo ele, a infração tributária pode ocasionar penas pecuniárias, mas não o confisco ou pena de perdimento dos bens, “que exige lei específica tipificante e um processo de execução especial”. Assim, uma multa excessiva que ultrapasse o razoável, para dissuadir ações ilícitas e punir os transgressores caracterizaria uma maneira de burlar a proibição  constitucional  do confisco.

Entendimento semelhante é defendido por Zelmo Denari (Infrações Tributárias e Delitos Fiscais – Parte 1: Direito Tributário Penal). Poderá ser aplicada a pena de perdimento de bens, sempre que forem detectados danos causados ao erário público, decorrentes de atos ilícitos. Então, a pena de perdimento de bens encontra-se ligada às prescrições normativas próprias do direito tributário. Com efeito, a legislação prevê o perdimento de bens, para sancionar tipos penais tributários, dentre os quais o contrabando, o descaminho e a apropriação indébita, todos da mais alta nocividade social. Trata-se de modalidade de sanção ínsita ao nosso sistema penal tributário e que, por seu caráter confiscatório, não pode ser utilizada para reprimir infrações tributárias. 

A conclusão não parece ser muito coerente, já que a inadimplência constitui, efetivamente, um dano causado ao erário. Por outro lado, a pena de perdimento, nos casos de contrabando e descaminho, é aplicada pelas autoridades administrativas federais, descaracterizando assim o seu caráter de sanção penal.

Posição diversa é defendida por Hugo de Brito Machado, que ressalta a distinção entre multa (a ilicitude é essencial à definição da hipótese de incidência das multas) e tributo (cuja hipótese de incidência é necessariamente um ato lícito). As finalidades também são distintas, cabendo ao tributo suprir os recursos financeiros de que o Estado necessita, enquanto a multa tem por fim desestimular o comportamento que configura a sua hipótese de incidência (o inadimplemento da obrigação tributária). Por isso mesmo, a receita de multas é classificada como receita extraordinária ou eventual, ao contrário do tributo que constitui receita ordinária.

O tributo, portanto, deve ser um ônus suportável para o cidadão sem sacrifício de seu bem estar. Essa a razão da vedação ao confisco. 

A multa, por outro lado, deve representar um ônus suficientemente pesado para desestimular o comportamento ilícito. A multa tributária não pode ser algo tão insignificante que o contribuinte tenha vantagem em sonegar (e.g. a aplicação do valor do tributo no mercado financeiro proporcione um retorno superior à multa).

Não é sem razão que o art. 150, IV, da Constituição Federal, refere-se apenas à utilização de “tributo com efeito de confisco”. A vedação ao confisco não pode ser ampliada, além do que dispõe a Constituição, para abranger as multas, que têm finalidade diversa dos tributos. A limitação a que estão sujeitas as multas, segundo o mestre cearense, é o da proporcionalidade entre o valor da multa e a gravidade da ofensa cometida. Mas, se para inibir a sonegação, for preciso adotar uma multa confiscatória, que assim seja. O que é inconstitucional não é o efeito confiscatório das multas, mas exigir multas elevadas para infrações que não causam dano ao direito da Fazenda de arrecadar o tributo.

Estender a vedação ao confisco, acrescenta o eminente professor, é reconhecer que o sujeito passivo teria o direito de sonegar o tributo.

Isto por que a vedação ao confisco visa proteger o direito de propriedade e a livre iniciativa. Não é o caso da multa que visa o efeito punitivo e inibidor do descumprimento da lei tributária. O que se espera das multas é que não sejam desproporcionais em relação à gravidade das infrações que buscam inibir.

Em suma, punir infrações leves com excessiva severidade ou cominar a mesma pena a infrações leves e infrações graves constitui iniquidade que deve ser reprimida. Nesse sentido, e somente nesse, é que se pode falar em efeito confiscatório das multas. 

“Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesma inflige exceda o bem que nasce do delito” (Cesare Beccaria).

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Repetição do indébito e moralidade administrativa

Velocino Pacheco Filho

O art. 165 do CTN assegura ao sujeito passivo da relação jurídico-tributária a restituição total ou parcial do tributo indevido pago ou pago a maior que o devido. No entanto, o art. 166 condiciona a restituição, no caso de impostos indiretos (“que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”), à prova de não ter repassado o ônus do tributo ao adquirente ou, tendo repassado, estar por este autorizado a pedir a restituição. O dispositivo leva em conta a distinção entre contribuinte “de direito” (aquele que recolhe o tributo) e contribuinte “de fato” (quem sofre a repercussão financeira do tributo).

Em outras palavras, o legislador presume que o tributo repercute sobre o contribuinte “de fato”. Mas, essa é uma presunção “juris tantum”, ou seja, admite prova em contrário. Cabe ao contribuinte “de direito” provar que suportou o ônus tributário e que não o repassou ao contribuinte “de fato”.

Ora, isso deixa o Fisco em posição muito cômoda para recusar a restituição: se é pleiteada pelo contribuinte “de fato”, o Fisco dirá que não tem legitimidade para fazê-lo; se pelo contribuinte “de direito”, o Fisco exigirá a prova da não repercussão do tributo sobre o contribuinte “de fato”. Essa é uma prova nada fácil de obter.

Resta ainda, dirá o leitor, o recurso de estar autorizado pelo contribuinte “de fato” a pleitear a restituição. No caso de venda a varejo, também não é fácil de obter.

Porém, para além da obtenção de provas ou do direito à restituição – se o tributo pago é indevido, deve haver alguma restituição a alguém – o Fisco beneficia-se do dilema criado pela própria legislação, descurando de buscar alguma solução.

O art. 37 da vigente Constituição diz que a administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios obedecerá ao princípio, entre outros, da moralidade administrativa. Pergunta-se: o comportamento do Fisco, neste caso, é moral?

Devemos pesquisar qual o conteúdo da moralidade administrativa. O que dizem os doutos? Para Diva Malerbi, “a moralidade administrativa é princípio desdobrado da confiança que o povo depositou no poder e na legitimidade da atividade administrativa em relação à gestão da coisa pública”.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”. O que encontra eco em Antônio da Silva Cabral para quem “entre o fisco e o contribuinte deve existir uma relação de mútua confiança e colaboração”. Para Gilmar Ferreira Mendes, “em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente inatacável”. 

Tércio Sampaio Ferraz Jr., a seu turno, ensina que “a obediência à moralidade é princípio constitucional. Não se trata de regra difusa ou de regra sobre regras, mas de regra imanente aos atos administrativos. Ou seja, configura o ato, não a norma que o autoriza. Nesse sentido, não se confunda legalidade com moralidade. Legalidade é requisito da norma, não do ato que a emana. Assim, uma norma pode ser legal, sem ser moral o ato que a estabelece. Ao que arremata Celso Ribeiro Bastos, para quem o ato administrativo “ofende a moralidade na medida em que, apesar da atuação ser prevista em lei, prejudicar os particulares”. 

Na mesma senda anda José Afonso da Silva para quem “a lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar ou de favorecer alguém deliberadamente, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente ofensivo à moralidade administrativa”.

Por fim, aproximando-se da concepção de Lavinas, conclui Marco Aurélio Greco que a “conduta imoral não é a que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém. Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é destinatário da conduta”. Prossegue esse autor dizendo que o princípio da moralidade “não olha para o interior do Ser Humano, mas sim para o seu exterior, onde se encontram os destinatários da sua ação, ou seja, aqueles que poderão sofrer as injustiças da sua conduta”.

Então, o que caracteriza a imoralidade administrativa? Klaus Tipke distingue entre a moralidade tributária do Estado e a da Administração Pública. A primeira ele faz derivar do princípio da capacidade contributiva. Essa é a moralidade da lei. Mas nos interessa no momento a moralidade da Administração. Essa moralidade reside nos atos administrativos e não na regra jurídica que lhes serve de fundamento.

Então estamos falando de imoralidade dos atos administrativos, ou seja, atos praticados com astúcia e eivados de malícia e que representem uma violação da confiança depositada pelo povo no poder público e na gestão da coisa pública. A Administração, que existe para bem servir ao cidadão e garantir-lhe o exercício de seus direitos constitucionais, não procede com base na confiança mútua e na colaboração. Pelo contrário, age de modo a deliberadamente prejudicar ou favorecer alguém.

A imoralidade, nesse caso, não é subjetiva; não se trata de foro íntimo ou de consciência própria. A imoralidade administrativa é objetiva, devendo ser identificada nos destinatários do ato, aptos a sofrer a injustiça dele decorrente.

Voltando à restituição do indébito tributário, a posição cômoda do Fisco caracteriza, com efeito, imoralidade administrativa, na medida em que representa a apropriação, pela Fazenda Pública, de valores recebidos que não correspondem a tributo devido – enriquecimento sem causa do Erário. A má fé é evidenciada pela recusa fácil de devolver, a qualquer um, os valores recolhidos a título de tributo e que foi demonstrado serem indevidos.

Além disso, a não devolução dos valores indevidamente pagos, seja ao contribuinte de “direito”, seja ao contribuinte de “fato”, corresponde a um prejuízo, não reparado, de quem pagou o tributo ou de quem o suportou. Assim, o indeferimento do pedido pela Administração, apesar de legal, é imoral, sendo incompatível com o conceito de justiça (alterum nom laedare).