DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

SER OU NÃO SER: EIS A NOTIFICAÇÃO!

Fabiano Ramalho
 
 
Qual o limite entre ficção e realidade? É possível que o Direito seja tão perigosamente dramático? Eis que, senão de repente, vivemos um verdadeiro drama shakespeariano no sistema tributário catarinense. Me refiro à possibilidade do contribuinte pagar parcialmente o débito fiscal, no prazo para a apresentação da defesa prévia, aproveitando-se da redução de 70% da multa, nos termos do art. 68-A, da Lei n° 5.983/81.
Ou melhor, me refiro à impossibilidade de fruição desse benefício, posto que a norma em comento exige o pagamento integral do débito como pressuposto para que o contribuinte obtenha o desconto. Ou seja, se quiser garantir os 70% de redução da multa, terá que pagar integralmente o débito, inclusive a parte com a qual não concorda. Fica, então, num triste dilema entre pagar agora com desconto ou apresentar defesa prévia e correr o risco de pagar posteriormente, sem a benesse.
Ser ou não ser, eis a questão! Mas o que há de justo e perfeito em uma norma que impõe uma  escolha tão cruel? É verdade que o Direito é mais ou menos injusto, mas como aceitar que também possa ser mais ou menos inconstitucional? Há algo de podre no reino da Dinamarca, diria o dramaturgo inglês. Ora, se colocamos o contribuinte em conflito consigo mesmo, estimulando-o, na melhor das hipóteses, a abdicar do seu sagrado direito de defesa, em prol de uma vantagem imediata e prática, como prestaremos contas ao Constituinte originário, que positivou em norma fundamental o Direito de Petição (art. 5º, XXXIV, a) e o contraditório e a ampla defesa (art. 5°, LV)?
O contribuinte tem o direito de impugnar o crédito tributário, mas é seduzido de forma imoral e quase irresistível ao não exercício desse direito, por conta da tentação representada pelo elevado desconto, em caso de pagamento integral e imediato.
O sistema ideal, que se inspirasse verdadeiramente no “suum cuique tribuere” de Ulpiano, seria aquele em que a razão do contribuinte fosse inversamente proporcional à sua disposição de "pagar com desconto e não discutir". Mas não é o que temos aqui. Por conta das inseguranças jurídicas que nos permeiam e assombram constantemente, frutos do manicômio jurídico da nossa legislação do ICMS, as razões e certezas se esvaziam e se dissipam de forma dramática, forçando, por assim dizer, o contribuinte a fazer uma transação medíocre e estúpida com o Estado: “Eu pago tudo e desisto de me defender e, em troca, o Estado me deixa em paz”.
Se a vida de fato imita a arte, é certo que já tivemos dramas melhores. Fica aqui, portanto, um manifesto por uma ética tributária verdadeira, que estimule uma cidadania fiscal plena. Algo que seja menos fatalista e mais romântico. Era uma vez, então, no reino brazillis, uma dramaturgia meio justa e meio decente, que, de repente, se transformou numa tragédia shakespeariana, com perversas sutilezas, mas que nunca perdeu a esperança de redenção.


min

Minerva e os tribunais administrativos
          Velocino Pacheco Filho

Um dos mais famosos casos submetidos ao Aerópago, o célebre tribunal de Atenas, foi o de Orestes, acusado de ter matado sua mão Clitemnestra. A sessão, presidida pela própria deusa Atena (Minerva para os romanos), resultou em empate que a deusa resolveu a favor do réu.
O chamado voto de Minerva, pois, não se confunde com o “voto de desempate”. Enquanto o voto de desempate pode ser a favor ou contra o acusado, o voto de Minerva desempata sempre a favor do acusado.
Nos tribunais administrativos tributários, o voto de presidente é meramente um voto de desempate ou constitui efetivamente voto de Minerva? O voto de desempate pode ser a favor ou contra o acusado, conforme a convicção pessoal do presidente. Mas, no caso do voto de Minerva, o presidente é obrigado a desempatar a favor do acusado, seja qual for a sua convicção pessoal. Trata-se do conhecido aforismo “in dubio pro réu”. No caso, a dúvida não é do presidente, mas do tribunal, evidenciada pela ocorrência de empate.
Uma orientação sobre o tema, encontramos no art. 112 do Código Tributário Nacional o qual dispõe que a lei tributária que define infrações ou lhes comina penalidades interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto (i) à capitulação legal do fato; (ii) à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; (iii) à autoria, imputabilidade ou punibilidade e (iv) à natureza da penalidade aplicável ou à sua graduação.
Assim, ao menos no que se refere a penalidades, o voto do presidente deve ser voto de Minerva e não simplesmente voto de qualidade. A dúvida fica caracterizada se metade dos membros do tribunal manifestar-se favoravelmente ao acusado. Nesse caso, o presidente, seguindo o exemplo dado por Minerva (que, não sem razão, é a deusa patrona da sabedoria), deve desempatar a favor do acusado. Conforme magistério de Luciano Amaro:
“De qualquer modo, o princípio in dubio pro réu, que informa o preceito codificado, tem uma aplicação ampla: qualquer que seja a dúvida, sobre a interpretação da lei punitiva ou sobre a valoração dos fatos concretos efetivamente ocorridos, a solução há de ser a mais favorável ao acusado”
Apesar de caber ao contribuinte inaugurar o contencioso tributário administrativo, ele não é o autor, mas o acusado. A interposição de reclamação pelo sujeito passivo nada mais é que a contestação do crédito tributário contra ele constituído (exigência de ofício do tributo pela Fazenda Pública). É direito do contribuinte, impugnar o crédito tributário junto à própria Administração Tributária. Com efeito, o art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição da República, assegura o direito de petição aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. O contencioso administrativo tributário consiste, pois, em um controle da legalidade dos atos da Administração.
O processo administrativo tributário não se confunde com o processo judiciário sobre a mesma matéria. Enquanto no processo judiciário estamos diante do exercício da tutela jurisdicional do Estado – acusador e acusado discutem a lide perante um terceiro neutro (o juiz) –, o processo administrativo existe em benefício do cidadão-contribuinte. Com efeito, no processo administrativo, as perguntas que devem ser respondidas são: (i) o crédito tributário exigido pela Administração é devido? (ii) algum direito do cidadão-contribuinte foi violado ou preterido? (iii) a Administração agiu com abuso de poder na constituição do crédito tributário?
O processo administrativo tributário insere-se na autotutela da Administração ou “o poder que tem a Administração de rever os próprios atos, para corrigir ou anular os ilegais, bem como revogar os inoportunos ou inconvenientes, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário” (Maria Sulvia Zanella Di Pietro). Nesse sentido, o Supremo Tribunal (Sumula 473) reconhece que “a administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”.
A doutrina distingue entre interesse público primário e interesse público secundário. O interesse primário é a realização do ordenamento jurídico. Por isso que o interesse secundário (a arrecadação) não pode prevalecer sobre o interesse primário. Ensina Hugo de Brito Machado (Comentários ao Código Tributário Nacional):
“.. na relação tributária o Estado, além do interesse público  primário que lhe cumpre defender, tem o interesse público secundário, ou interesse como pessoa jurídica titular imediato do erário para o qual os contribuintes recolhem  tributos.
Esse interesse público secundário em certas situações mostra-se mais forte do que o interesse público primário. Confunde-se até com o interesse dos governantes. Por isso não pode o contribuinte prescindir dos princípios fundamentais destinados a protegê-lo contra os abusos da autoridade”.

O empate caracteriza a dúvida do tribunal: o empate significa que ao menos metade dos membros do tribunal entendeu improcedente o crédito tributário constituído e deram razão ao impugnante. Como a deusa Minerva que, diante do empate, deu razão a Orestes, o presidente do tribunal deve proceder da mesma forma. 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Confaz

Os convênios Confaz e o princípio da reserva legal
          Velocino Pacheco Filho

Diz o § 6º do art. 150 da Constituição Federal que qualquer subsídio ou isenção, reddução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica [...], sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g. O dispositivo citado diz que cabe à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. Trata-se do regime dos convênios celebrados no âmbito do Confaz, nos termos da Lei Complementar 24/75.
Contudo, qual o alcance da parte final do § 6º do art. 150 da CF? Os convênios suprem a necessidade de lei, para essa finalidade específica, ou o convênio é apenas uma condição para que a lei conceda o benefício fiscal. Na segunda hipótese, cada Estado somente poderia conceder benefício fiscal mediante lei, após prévia autorização do Confaz.
No entanto, a prática dos Estados não tem sido esta. Os Estados e o Distrito Federal celebram  convênio, dispondo sobre isenções, incentivos e demais benefícios fiscais, que são ratificados por decreto e introduzidos na legislação estadual mediante decreto (regulamento). A legislação de alguns Estados, como é o caso de Santa Catarina, exigem que os convênios sejam homologados pela Assembléia Legislativa.
Resultam, então, duas disciplinas distintas para a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais: (i) convênio, no caso do ICMS, celebrado conforme a LC 24/75; (ii) lei, no caso dos demais tributos.
Essa prática tem prevalecido, a despeito da jurisprudência em contrário do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, entende a Corte Suprema que todos os convênios Confaz são meramente autorizativos: “a Lei Complementar 24/75 não admite a distinção entre convênios autorizativos e convênios impositivos” (RE 98.952-8 SP, LEX 54:247, j. 26-11-82).
Além de prévio convênio autorizando a concessão do benefício fiscal, seria necessária a edição de lei, em sentido formal, concedendo o benefício. É o que diz o  Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 637.959 DF (Primeira Turma, relatado pelo Min. Luiz Fux, julgamento em 19-2-2013):
“A elaboração do convênio entre os entes federados deve preceder à edição da lei que conceda os benefícios fiscais, pouco importando em qual momento haverá a produção de efeitos plenos da norma. Isso porque a deliberação prévia dos Estados-membros e do Distrito Federal é requisito constitucional de validade do benefício, cuja observância acaba por inquiná-lo desde o nascedouro”.
Também o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 630.705 MT, relatado pelo Min. Dias Toffoli (Primeira Turma, 11-12-2012) reconheceu a impossibilidade de o benefício fiscal ser implementado à margem da participação do Poder Legislativo. Esclarece o acórdão:
“Os convênios são autorizações para que o Estado possa implementar um benefício fiscal. Efetivar o beneplácito no ordenamento interno é mera faculdade, e não obrigação. A participação do Poder Legislativo legitima e confirma a intenção do Estado, além de manter hígido o postulado da separação de poderes concebido pelo constituinte originário”.
Convivemos, então, com as seguintes possibilidades: (i) benefícios autorizados por convênio e introduzidos na legislação tributária estadual mediante decreto; (ii) benefícios concedidos por lei, sem terem sido autorizados por convênio; e (iii) benefícios introduzidos na legislação por decreto, sem lei e sem convênio autorizativo.
Todas as três possibilidades padecem do vício de inconstitucionalidade. Na hipótese (i), por falta de lei em sentido formal: as exonerações tributárias estão sob reserva absoluta da lei que não pode ser suprida pelo convênio ou pelo decreto. Na hipótese (ii), falta a imprescindível autorização prévia por convênio, como exigido expressamente pela Constituição. E, finalmente, na hipótese (iii) estamos diante de decreto autônomo – não permitido pelo ordenamento tributário brasileiro – que inova o ordenamento, extrapolando os limites da regulamentação das leis, conforme dispõe o art. 84, IV, in fine, da Constituição da República. Essas três possibilidades abarcam a totalidade dos benefícios fiscais em vigor no Estado, relativos ao ICMS.

As isenções, incentivos e benefícios fiscais, relativos ao ICMS, dependem, pois, cumulativamente (i) da celebração de convênio autorizativo, na forma da LC 24/75 e (ii) da edição de lei pelo Estado-membro concedendo o benefício. 

brindes

Qual deveria ser o tratamento tributário dos brindes?
          Velocino Pacheco Filho

Para início de conversa, o que é brinde? Há consenso em que se caracteriza como brinde a mercadoria adquirida pela empresa com a finalidade de distribuição gratuita aos seus clientes, fornecedores etc. A saída de brindes do estabelecimento é geralmente considerada tributada pelo ICMS, adotando-se como valor da operação (base de cálculo do imposto) o valor de aquisição, já que a sua distribuição é gratuita.
Um caso que tem relação com o dos brindes é o da bonificação em mercadorias, ou seja, unidades da mercadoria acrescentadas gratuitamente à compra pelo vendedor. A diferença é que, no caso dos brindes, as mercadorias doadas não são normalmente comercializadas pela empresa, enquanto, na bonificação, as unidades doadas ao cliente são de mercadoria que a empresa normalmente comercializa.
De modo semelhante ao que ocorre com os brindes, os Estados costumavam tributar as mercadorias dadas em bonificação, imputando-lhes um valor (o da aquisição) como base de cálculo do imposto. Esse entendimento verificou-se equivocado, como demonstra Hugo de Brito Machado (Aspectos Fundamentais do ICMS):
“Quando o vendedor de cem unidades de medicamento dá em bonificação dez unidades, na verdade ele está vendendo cento e dez unidades pelo preço das cem. Não importa que as cem unidades tenham sido vendidas, e as dez tenham sido doadas. Há, nestes casos, evidente relação de dependência entre a doação e a venda, de sorte que sem esta aquela não existiria”.
Ou seja, as mercadorias dadas em bonificação correspondem a um “desconto incondicionado” e, como tal, devem ser excluídas da base de cálculo do ICMS. Esse entendimento foi adotado pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, conforme decidido no julgamento do Recurso Especial 1.111.156 SP:
“A bonificação é uma modalidade de desconto que consiste na entrega de uma maior quantidade de produto vendido em vez de conceder uma redução do valor da venda. Dessa forma, o provador das mercadorias é beneficiado com a redução do preço médio de cada produto, mas sem que isso implique redução do preço do negócio”.
Para que não restassem dúvidas, acrescentou o tribunal que a literalidade do art. 13 da Lei Complementar 87/96 permite concluir que a base de cálculo do ICMS, nas operações mercantis, é a efetivamente realizada, não se incluindo os descontos incondicionais, como é o caso das bonificações em mercadorias.
Retornando ao caso dos brindes, é lícito ao Estado imputar um valor à saída de brindes e sobre ele cobrar ICMS? Conforme arts. 12, I, e 13, I, da LC 87/96, a base de cálculo do imposto, na saída de mercadoria do estabelecimento do contribuinte é o valor da operação. Ora, os brindes são distribuídos gratuitamente, logo a operação de saída do estabelecimento não teria valor, salvo se o valor for imputado pelo Fisco. Ele está autorizado a fazê-lo?
Outro aspecto do problema envolve a caracterização do fato gerador do ICMS: deve tratar-se de operação de circulação de mercadorias. Decompondo o fato gerador, devemos identificar o que é mercadoria e o que é circulação de mercadorias. Conforme regra do art. 110 do Código Tributário Nacional, o conceito de mercadoria deve ser pesquisado no direito privado.
Considera-se mercadoria o bem móvel adquirido para fins de revenda. Assim, toda mercadoria é um bem, mas o bem pode ou não ser mercadoria, dependendo da intenção com que foi adquirido. Se houve intenção de revenda, o bem se caracteriza como mercadoria; se foi adquirido para uso ou consumo, não será mercadoria. Um mesmo bem pode ser mercadoria em um momento e não sê-lo em outro.
Ora, o brinde não foi adquirido para ser revendido, mas para distribuição gratuita. Com isso podemos entender que perdeu a condição de mercadoria? Embora a distribuição de brindes atenda a um propósito comercial (marketing), é razoável o entendimento de que não se trata mais de mercadoria? A propósito, não só as empresas comerciais distribuem brindes, mas também os estabelecimentos financeiros, os prestadores de serviços, etc.
Por outro lado, entende-se que a operação é de circulação de mercadoria quando a impulsiona no sentido do produtor para o consumidor final. Além disso, não se caracteriza com o seu mero deslocamento, mas é necessária a mudança de titularidade do bem. Nesse caso, a distribuição de brindes representa uma mudança de titularidade e a operação destina o bem ao consumidor final.

Assim, a questão resume-se em saber se o brinde caracteriza-se como mercadoria ou não. Se for mercadoria, a operação sofre a incidência do ICMS, calculado sobre base de cálculo imputada pelo Fisco e poderá ser utilizado o crédito relativo à sua entrada no estabelecimento. Porém, se não for mercadoria, além de não ser devido o ICMS, na saída do estabelecimento, também não poderá ser apropriado o crédito correspondente à sua entrada, já que o adquirente seria o consumidor final dos brindes.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Efeito de confisco e eficácia das multas fiscais
          Velocino Pacheco Filho

Muito se tem discutido se o princípio da vedação ao efeito de confisco, previsto no art. 150, IV, da Constituição Federal, aplica-se às multas. Trabalho recente de Balthazar & Machado faz referência a “diagnóstico precipitado” da doutrina, o que tem acarretado “conceitos superficiais e desprovidos de substrato jurídico”.
Mas, afinal, o que é confisco? Entende-se como tal o ato do Estado de apossar-se dos bens de um particular (no todo ou em parte). Segundo Antônio Roberto Sampaio Dória, seria “a absorção da propriedade particular, pelo Estado, sem justa indenização”. O confisco, normalmente, é a conseqüência de crime ou contravenção, como, no campo tributário, é a aplicação da pena de perdimento, nos casos de contrabando ou descaminho. Ainda conforme Balthazar & Machado, “o confisco constitui modalidade de penalidade que (como todas) deve conter uma previsão jurídica”.
Parece claro que o tributo não pode ser confiscatório, pois, segundo a definição contida no art. 3º do CTN, o tributo “não constitui sanção de ato ilícito”.
Mas, quanto ao “efeito de confisco” o que seria? Por suposto, confisco e “efeito de confisco” não se confundem. Para caracterizar o confisco, o bem deve passar do patrimônio do particular para o patrimônio do Estado. Já no efeito de confisco, esse requisito não seria necessário para sua caracterização.
Entende-se que há efeito de confisco quando a norma tributária representa um obstáculo ao exercício de um direito fundamental, como no caso do direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII) ou da garantia do mínimo vital (CF, art. 1º, III). A proibição ao uso do tributo com efeito de confisco, portanto, impõe um limite ao poder de tributar que o Estado não pode ultrapassar, representado pelos direitos que a Constituição garante ao cidadão. Desse ponto o Estado não pode passar.
Para a caracterização do confisco, devem ser fixados critérios objetivos para cada tributo separadamente. Uma alíquota que pode ser considerada confiscatória, no caso dos impostos sobre a propriedade, pode não o ser nos impostos sobre o consumo. Já nos impostos de vocação extra fiscal, como o IPI, pode-se admitir alíquotas superiores a 100%.
Mas qual seria o conteúdo do “efeito de confisco” no caso das multas tributárias? É da natureza das multas ter caráter confiscatório. “Em havendo penalidade tipificada, deixa-se de falar em efeito de confisco do tributo, mas sim em critérios de mensuração da penalidade” (Balthazar & Machado). Com efeito, o art. 5º, XLVI, b, da Constituição Federal, prevê a perda de bens, entre as penas que a lei pode adotar.
A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança 29.302 GO (2009) decidiu que não configura confisco “a aplicação de multa de 100% sobre o débito de IPVA, visto que a alíquota deste imposto, incidente sobre o valor venal do veículo, atinge parcela pouco expressiva do bem”. Quer dizer que, apesar da multa ser de 100% do valor do imposto, ela não ameaça o exercício do direito de propriedade.
Conforme Sampaio Dória (Direito Constitucional Tributário e Due Processo of Law) o direito de propriedade “se subordina ao poder de tributar” e o que distingue o imposto constitucional de um gravame confiscatório “é mera diferença de grau”.
Já o Supremo Tribunal Federal, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 523.471, em que foi relator o Min. Joaquim Barbosa (2010), depois de afirmar que “o princípio da vedação ao efeito de confisco aplica-se às multas”, decidiu o seguinte: “A mera alusão à mora, pontual e isoladamente considerada, é insuficiente para estabelecer a relação de calibração e ponderação necessárias entre a gravidade da conduta e o peso da punição”.
Então, o critério para identificar efeito confiscatório nas multas tributárias envolve a proporcionalidade que deve haver entre a severidade da penalidade aplicada e a gravidade da ofensa cometida.
Para que a multa fiscal seja considerada confiscatória, ensina Sampaio Dória, “é necessário que inexista qualquer conexão entre a penalidade imposta e a infração cometida, ou que a pena seja desproporcionada ao delito ou infração tributários praticados”.
Por outro lado, a multa não pode ser tão branda que torne atraente para o sujeito passivo o cometimento de infrações tributárias. Para que a multa seja eficaz, ou seja, para que cumpra o seu fim de desencorajar a sonegação, deve-se considerar o risco para o contribuinte de ser apanhado e a remuneração das aplicações financeiras.
O fisco não tem condições materiais de verificar todos os contribuintes. Por conseguinte, ele trabalha por amostragem. Ao tomar a decisão de sonegar, o contribuinte irá avaliar qual a probabilidade de ser fiscalizado, considerando os recursos humanos (quantitativamente e qualitativamente) e tecnológicos à disposição do Fisco. Além do risco, irá considerar qual a melhor alternativa: pagar o tributo ou aplicar no mercado financeiro. Se o risco for baixo e o mercado remunerar bem, o sonegador racional irá preferir aplicar e não pagar o tributo.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

isonomia tributária, benefícios fiscais e privilégio odioso

Isonomia tributária, benefícios fiscais e privilégio odioso
          Velocino Pacheco Filho

          “Todos são iguais perante a lei”, dispõe o art. 5º da Constituição Federal. O art. 150, II, mais explicitamente, veda “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”. Já o art. 37 impõe à Administração Pública que deve tratar todos os administrados da mesma forma, sem favoritismos nem perseguições (princípio da impessoalidade): todos são iguais perante a Administração.
          Esclarece Celso A. Bandeira de Mello que o princípio da igualdade não proíbe a discriminação, apenas obriga que o tratamento diferenciado tenha relação com a desigualdade já existente entre os administrados: “tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada”.
          Ora, o Anexo 6 do Regulamento do ICMS do Estado de Santa Catarina dispõe que: “Nos casos em que as peculiaridades da organização do contribuinte possam suprir plenamente as exigências fiscais e nos casos em que a modalidade das operações realizadas impossibilite o cumprimento de obrigação tributária acessória, poder-se-á adotar regime especial que concilie os interesses do fisco com os do contribuinte”. Esse regime especial, no entanto, restringe-se às obrigações tributárias acessórias (prestações positivas ou negativas, previstas no interesse da fiscalização e arrecadação de tributos) e tem por objetivo conciliar os interesses do fisco com os do contribuinte. Trata-se da aplicação às obrigações tributárias acessórias dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade. Não significa favorecimento de um contribuinte em detrimento dos demais.
          Situação muito diferente é a do regime especial, concedido individualmente, que dispense ou reduza obrigação tributária principal (a obrigação de recolher o tributo). É o caso, por exemplo, do crédito presumido previsto no art. 15, XXIII, do Anexo 2 do RICMS-SC, que, conforme § 22 do mesmo artigo, depende de regime especial concedido pelo Secretário de Estado da Fazenda, que “dentre outras condições, poderá limitar o montante do crédito presumido a ser utilizado em cada período de apuração”.
          O que justifica o benefício fiscal ser concedido, caso a caso, mediante regime especial? Porque não pode o mesmo benefício ser dado a todos os que satisfaçam as mesmas condições? Porque o Secretário da Fazenda teria o poder discricionário de graduar o benefício, estabelecendo diferenças tributárias entre contribuintes?
          Regimes especiais como este não são compatíveis com a limitação ao poder de tributar a que se refere o art. 150, II, da Constituição, porque representam o exercício de um poder arbitrário pelo titular da pasta da Fazenda. Regimes como este são ilegais, inconstitucionais e também imorais.
          O já mencionado art. 37 da Constituição, além da impessoalidade, consagra o princípio da moralidade administrativa (os atos administrativos, além de legais, devem ser morais). A moralidade administrativa não é compatível com a instituição de tratamento tributário individualizado, a critério do titular da pasta da Fazenda. Ele abre caminho para a negociata, para a troca de favores, para o peculato ou para a prevaricação.
          Regimes especiais como este correspondem na sua integralidade ao chamado “privilégio odioso” que Ricardo Lobo Torres define como a “permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba como alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais”. O privilégio odioso, prossegue o mesmo autor, “implica sempre discriminação contra o contribuinte excluído do privilégio, que vai suportar a carga tributária do beneficiário do tratamento favorecido”.

          Qualquer regime especial que envolva obrigação tributária principal é suspeito. Qualquer beneficio fiscal dado a apenas um contribuinte e que não seja extensível aos demais contribuintes é imoral. Regimes especiais dessa natureza são incompatíveis com a Constituição da República e deveriam ser eliminados da legislação tributária.