DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

A RETOMADA DA CONSCIÊNCIA DE CONTRIBUINTE


Fabiano Ramalho

As relações entre os dois polos da sujeição tributária (Estado-Fiscal e Cidadão-Contribuinte) têm merecido grande interesse dos intelectuais do Direito. Dentre estes, há os que, de uma maneira ou de outra, enxergam uma deterioração crescente da qualidade dessa relação, especialmente com a experiência pós-moderna do Direito Tributário, que parece denotar certo esvaziamento da plena consciência de contribuinte por parte do cidadão.

Pagar tributo virou quase uma obrigação automática, irrefletida, descolada de consequências político-sociais, e, o que é pior, parece assimilar aquilo que há de mais perverso no mundo atual, que é o imediatismo pragmático, o individualismo radical, a efemeridade de valores e o contratualismo moral.

Essa realidade surreal não veio da noite para o dia. É fruto do desenvolvimento mal sucedido da visão de mundo moderna, a partir do século XIX, com o desenvolvimento da ciência e do capitalismo e a crença num mundo estável, ordenado, seguro, coerente, limpo, sólido. Apesar dos progressos alcançados, essa crença colocou o homem numa espécie de armadilha cartesiana, onde a lógica subjuga os sentidos e a razão predomina sobre a emoção.

Não por acaso, a festa da Modernidade terminou com o fracasso da condição humana, representado pelas duas guerras mundiais, pelo colapso da economia global, pelos regimes totalitaristas e pela falácia do Estado do Bem-Estar Social, já na primeira metade do século XX.

Nesse cenário, a consciência humana parece ter sido perdida, substituída por uma forma de submissão voluntária, que transforma o homem em gado manso, educado e tranquilo, alheio ao mundo que o rodeia e desprovido de uma visão crítica da realidade. É, então, que surgem intelectuais dedicados a investigar essa realidade endêmica, como Nietzsche, Sartre, Heidegger, Foucault, Freud, dentre outros, todos ligados, de forma mais ou menos homogênea, a movimentos como o Existencialismo e o Humanismo.

Dentre eles, escolhi para ilustrar esse pequeno estudo o pensamento de Antoine de Saint-Exupéry, escritor, poeta, aviador, repórter francês e, por que não, filósofo, que viveu na primeira metade do século XX. Autor que ficou imortalizado pelo livro "O Pequeno Príncipe" (erroneamente interpretado como literatura infantil), mas que possui uma obra consagrada ao humanismo.

Ele defendia arduamente a retomada de consciência da condição humana, relacionada com a redescoberta do Ser Humano, tão afetado pelas mazelas do final do século XIX e do início do XX. A experiência das guerras, da vida (sobrevivência) no deserto, do vazio da vida moderna, do fracasso das promessas da modernidade, influenciariam fortemente Exupéry, fazendo-o identificar como consequência imediata uma perda da consciência humana, um vazio existencial. Ele escreveu em um de seus textos: "O Homem não tem mais sentido, é preciso absolutamente falar aos homens".[1]

Philippe Diolé[2], escritor francês contemporâneo de Exupéry, Ilustrou bem a preocupação da época vivida pelo autor de "Le Petit Prince": "Não é somente o cenário que é fabricado, elaborado neste século XX, também os sentimentos e a vida interior. Existências inteiras situam-se entre o metrô e o cinema e só se alimenta de imagens em conserva ou vozes gravadas e emoções fingidas [...] É preciso evitar toda essa falsa realidade para encontrar a verdadeira."

Max Picard, outro herdeiro da tradição humanista, dizia que "nada mudou tanto a natureza do homem quanto a perda do silêncio". Ele escreveu sobre a necessidade do silêncio da alma e o afastamento do seu contrário, o rumor cotidiano, na mesma linha de idéias de Saint-Exupéry: "A palavra não existe mais como espírito somente como rumor, como maneira acústica... Esse rumor é um vazio sonoro que recobre o vazio insonoro. A palavra autêntica, ao contrário, é plenitude sonora acima da superfície silenciosa do silêncio.[...] O rumor é pseudopalavra e pseudossilêncio, por sua vez: é dito alguma coisa e não há palavra; desaparece alguma coisa no rumor e não há silêncio."[3]

Em "O Pequeno Príncipe"[4], Saint-Exupéry condensou muitas de suas idéias sobre essa retomada de consciência, de uma forma por vezes lúdica, como na metáfora do deserto, que simbolizava o vazio da alma, por vezes poética e filosófica, como no ensinamento "o essencial é invisível aos olhos".

O livro está recheado de um humanismo que permeava o imaginário de pensadores da época, todos preocupados com um ritmo de crescimento acelerado da ciência moderna e do capitalismo, que progressivamente descolavam o homem do Ser Humano (ou o Ente do Ser, na visão de Sartre) e que culminou com duas guerras mundiais e a criação da Bomba Atômica. Através das metáforas de “O Pequeno Príncipe”, Exupéry nos conta os seus dramas morais pessoais e a preocupação coletiva com relação ao futuro da humanidade, devolvendo uma certa realidade ao mundo, onde o homem é a única fonte de valor e de moralidade.

A retomada de consciência busca, portanto, reencontrar os caminhos da Existência, numa espécie de culto do Eu interior, na sua acepção de natureza humana, essencial para a salvação do Ser. É, de certa forma, uma luta pela “liberdade”, enquanto resultante da emancipação do pensamento, esse bem imaterial que parece ser perseguido pelo gênero humano desde os tempos mais longínquos.

Encontramos essa busca de uma consciência superior em plena era elisabetana, na obra de Shakespeare[5], quando o príncipe Hamlet encontra seu dilema existencial mais fundamental na Cena I, do 3° Ato, expresso no monólogo "ser ou não ser", cuja melhor interpretação denota a insatisfação do jovem príncipe com a futilidade de sua época, com a podridão do Reino da Dinamarca, onde as consciências se acovardavam ante as conveniências da Corte. Em outro momento da Peça, Hamlet, questionado por Polônio sobre o que estava lendo, responde, fingindo-se de louco: “palavras, palavras, palavras”, parafraseando a consciência da época, que não se importava verdadeiramente com nada.

Essa crise de consciência se agravou com o advento da pós-modernidade, embalada pela Guerra Fria e a ameaça constante de uma catástrofe nuclear durante boa parte da segunda metade do século XX. Uma nova consciência emerge, tutelada por um mercado capitalista ávido pelo consumismo, e que irá forjar aquilo que costumamos chamar de Sociedade do Consumo. Incerteza existencial, somada com globalização, banalização de costumes, supremacia da lógica do mercado e demandas culturais transgênicas formaram um amálgama de novos valores, descartáveis, temerários, individualistas e de pobreza intelectual, desprovidos de uma consciência crítica.

Zigmunt Bauman, sociólogo polonês, denuncia esse flagelo do homem pós-moderno em sua obra, especialmente em “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”[6]. Para ele, a marca da sociedade pós-moderna é a própria “vontade de liberdade”, com o abandono da crença de uma vida social estável, segura e ordenada, prometida pela falida Modernidade. Mas essa liberdade é determinada pelas Leis de mercado, flexível, transitória e infiel, moldando, portanto, uma moral “de ocasião”, descartável ao menor sinal de inadequação às novas demandas de consumo. 

O homem pós-moderno não pode criar vínculos duradouros, sob pena de ser excluído e descartado. O pertencimento à sociedade pós-moderna exige uma consciência adquirida em corredores de shoppings centers, um narciso fraco, uma moral de cabide, que pode ser vestida conforme a ocasião. Hoje, ética e moral viram mercadorias na sociedade de consumo.

Parece que o deserto humano pensado por Exupéry está cada vez mais vasto e perigoso. Em todas as instâncias da vida social e política, estamos sujeitos às forças de um mercado dominador e cada vez menos controlado, que transforma tudo que toca em mercadoria.

No Direito, isso não é diferente. As constantes perdas em matéria de segurança jurídica, a relativização de valores e princípios tradicionais, a desconstrução de sólidos fundamentos da ordem jurídica e a crescente invasão na esfera da vida privada dos indivíduos, são reflexos imediatos da nossa incapacidade de retomar uma consciência emancipatória e libertária, como forma de reação.

E, na esfera do Direito Tributário, essa deformação se manifesta de uma forma perigosa e pragmática: a da transformação social pelo tributo. Com centralização da arrecadação, reformas por Decretos e relativização de princípios como o da capacidade contributiva, da legalidade e da vedação do confisco, vemos crescer cada vez mais o uso do Direito Tributário como instrumento político de reformas sociais, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo. Estamos perdendo, aos poucos, a percepção do justo em matéria tributária, especialmente no que pertine à preservação da liberdade do contribuinte.

Denunciando essa deformação do Direito pelo mundo pós-moderno, Misabel Abreu Machado Derzi, afirma que “instalam-se, ao lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica, capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo legalidade são postos em dúvida”[7].

A defesa da liberdade do contribuinte, então, deve ser o ponto de partida para uma retomada de consciência da condição de contribuinte, na moderna sociedade de consumo. Deve ser a reação a toda vulgarização e relativização dos valores e princípios fundamentais do Direito Tributário, pois, tal e qual era para o humanismo, ela confere ao homem-contribuinte a prerrogativa de dialogar com o Poder Tributante e lutar pela criação de um imposto justo. Em última instância, a liberdade, enquanto pilar da consciência de contribuinte do cidadão, proporciona o estabelecimento de uma efetiva e eficiente ética tributária.

Mas essa consciência não é desprovida de deveres. Ao contrário, ela exige um compromisso permanente com o coletivo, com a res publica e, em última análise, com o Estado. É algo como uma alteridade da condição de contribuinte, autoconsciente de seus direitos e deveres, de seu pertencimento ao Estado, que traduz a certeza da necessidade do imposto, enquanto fonte de financiamento do Estado, e dos limites e garantias desse poder fiscal. 

Significa, portanto, o abandono de uma visão da sujeição tributária meramente individualista e mesquinha, preocupada apenas com a obtenção de privilégios fiscais isolados ou com simulacros disfarçados de planejamento tributário, vícios próprios da consciência pós-moderna.

Na busca dessa consciência, o Estado também exerce um papel fundamental, não só pela conduta ética na relação tributária e na preservação da moralidade nos atos da Administração Pública, mas também pela consciência de seus agentes de que, ao lado de suas funções voltadas para a fiscalização e arrecadação de tributos, existe o dever constitucional de defender os direitos e garantias do contribuinte. Cabe aos agentes estatais contribuir para uma educação fiscal efetivamente emancipadora do contribuinte.

Sem esse esforço conjunto, dificilmente avançaremos em matéria de retomada de uma consciência superior de contribuinte, o que, paradoxalmente, provocaria o colapso do próprio sistema tributário, pois as mazelas da pós-modernidade do direito, acima comentadas, derrubariam de vez os fundamentos desse fabuloso edifício da Justiça. 

[1] BERT, J.-C, Saint-Exupéry, Éditions Universitaires, em Livres de France, Março de 1955, n° 3.
[2] O Mais Belo Deserto do Mundo, Ed.Albin Michel, 1955, p.70
[3] Le Monde du Silence, traduit de l'allemand par J.-J. Anstett, Ed. Presses Universitaires de France, 1954, pp. 134/139.
[4] Paris: Gallimard, 2007.
[5] Hamlet, tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, Bárbara Heliodora, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 168 e 182.
[6] Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[7] DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça Individual. In: Tributos e Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo: Dialética, 2004, p.262.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

REFORMA TRIBUTÁRIA E REVOLUÇÃO SILENCIOSA

Fabiano Ramalho

Por muito tempo se acreditou que seria possível criar um “pacote” de medidas capaz de reformar todo o sistema tributário de uma só vez. Era uma visão romântica, que hoje não existe mais, e que encarava o sistema de Direito Tributário do ponto de vista eminentemente técnico.

Não que seja impossível tal reforma ampla, mas as condições políticas atuais não só no Brasil, mas no mundo globalizado, são desfavoráveis. Atualmente, uma mudança desse porte se assemelharia mais a uma utopia, preterida em prol da concentração de esforços nas mudanças pontuais e setoriais, cada um segundo seu próprio conjunto de interesses públicos e/ou privados.

Parece que estamos perdendo, cada vez mais, a coragem de enfrentar essas mudanças, talvez distraídos pela imensa quantidade de regras tributárias vigentes, que transformam o dia-a-dia dos operadores do Direito Tributário numa corrida louca e incessante contra o descumprimento das obrigações principais e acessórias e, consequentemente, contra toda sorte de penalidade disponível no amplo cardápio da legislação tributária nacional.

É um cenário surreal, que transforma juristas em burocratas do Direito.

No entanto, tal realidade esconde um efeito perverso: na medida em que nos distanciamos de um debate amplo sobre a tributação e nos condicionamos a reagir marginalmente ao sistema, com preocupações pequenas e desconectadas, vamos, paulatinamente, perdendo a capacidade de preservar valores e princípios basilares do Direito Tributário, e passamos a assistir, impotentes, sua desconstrução sistemática.

A pós-modernidade, no conjunto de todos os seus males, não descuidou de abalar as estruturas do Direito, relativizando-as de tal sorte que beiramos a um estado de insegurança jurídica preocupante.

Misabel Abreu Machado Derzi, referindo-se às problemáticas mudanças da pós-modernidade do Direito, assevera que “instalam-se, ao lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica, capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo legalidade são postos em dúvida[1].

Vivemos como reféns das leis do mercado e viramos mesmo o protótipo ideal da sociedade de consumo. Nessa sociedade, o mercado tem pressa e não há tempo para conjecturas de ordem ética ou moral além dos limites do descarte e da reciclagem dos modelos e padrões sociais impostos. Ética e moral, via regra, viraram mercadorias na sociedade de consumo. O sociólogo Zigmunt Bauman vem dedicando sua vasta obra ao estudo dos dramas da pós-modernidade e como eles afetam e condicionam nossas propostas de futuro.

No seu livro “Vida Líquida”[2], por exemplo, citando Adorno e Pierre Bourdieu, ele sustenta que, na moderna sociedade de consumo, “os indivíduos são reduzidos à mera sequência de experiências instantâneas que não deixam traço, ou então cujo traço é odiado como irracional, supérfluo ou suplantado no sentido literal do termo. [...] pessoas que não têm nem um pequeno ponto de apoio no presente (e não o têm, dadas as experiências notoriamente voláteis e disformes, fragmentadas em pequenos e rápidos episódios) não reunirão a coragem exigida para se apoiar no futuro”.

Hannah Arendt enxerga uma certa neo-idade das trevas nos tempos pós-modernos, caracterizada “por um discurso que não revela o que é, mas varre seus atributos para baixo do tapete, por exortações morais ou de qualquer outro tipo que, sob o pretexto de sustentar antigas verdades, rebaixam toda verdade à trivialidade sem sentido”.[3]

É tamanha a desconstrução de valores e princípios que, nesse ritmo, logo não restarão vestígios do mundo moderno nem para fins de arqueologia moral. O que não percebemos é que esse estado de coisas adota práticas revolucionárias e, de forma orgânica, promove um verdadeiro golpe às instituições sociais, políticas e jurídicas, minando aos poucos nossa capacidade de resistência e fragmentando nossos esforços. Retiram nossas armas e, depois, nossa consciência moral.

E, na esfera do Direito Tributário, essa revolução encontra uma nova e poderosa ferramenta: a da transformação social pelo tributo. Enquanto esperávamos por uma reforma tributária completa, pronta e acabada, assistimos passivamente um governo, supostamente influenciado por ideais sociais, promover, a conta-gotas e via decreto, mini-reformas na legislação, centralizando fortemente a arrecadação no Governo Federal e criando mecanismos que corroem os princípios e garantias constitucionais dos contribuintes, como, por exemplo, a capacidade contributiva, a legalidade e a vedação do confisco.

No mesmo contexto, políticas de transferência de renda mal engendradas e o insustentável peso dos tributos começam a comprometer a legitimidade sociológica do tributo (sobre o assunto, ler o artigo deste Blog "A Legitimidade Sociológica do Poder Fiscal", disponível aqui).

Thomas Piketty defende abertamente o uso do Tributo como instrumento de mudança social. Em seu livro “Por Uma Revolução Fiscal”, ele diz que “o imposto não é apenas uma questão técnica: ele implica numa questão eminentemente política, que pode contribuir para remodelar as relações entre as pessoas e os grupos sociais.[4].

Como se percebe, muito além de uma reforma fiscal, ele defende uma revolução social por meio do tributo. Não é comum esse nível de literalidade tão agudo em intelectuais desse calibre. Piketty defende uma série de mudanças no imposto sobre a renda e sobre o patrimônio na França, preocupado não só com um tributo mais justo e proporcional, mas sobretudo com uma redistribuição de renda mais agressiva e um controle maior do Estado sobre a economia (e os mais ricos). Suas bandeiras são: individualização do imposto, progressividade e equidade.

Sob o prisma da individualização, ele defende, por exemplo, a eliminação dos privilégios fiscais da Declaração Conjunta de I.R. para casais (quotient conjugal), visando uma maior emancipação econômica e profissional da mulher, afetando, assim, o planejamento familiar, para privilegiar (e incentivar) o crescimento das "novas" famílias, experiências transgênicas e voláteis adequadas ao mercado consumidor.

Não nos interesse nesse artigo aprofundar o debate sobre as teorias de Piketty, pelo que recomendamos a leitura do artigo publicado em maio de 2015, por Velocino Pacheco, disponível aquiMas a referência à sua obra serve para ilustrar melhor aquilo que estamos defendendo aqui, que é o uso do Direito Tributário como instrumento político de reformas sociais, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo. 

               Vivemos, no Brasil, uma revolução silenciosa, em parte promovida pela manipulação do sistema tributário, remodelando valores, princípios e dogmas tanto do Direito Público como do Privado. O famoso lema da Revolução Francesa, enredo da Marseillaise, aux armes, citoyens!, parece agora adaptado para a realidade brasileira como aux impôts, citoyens!



[1] DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça Individual. In: Tributos e Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo: Dialética, 2004, p.262.
[2] BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[3] ARENDT, Hannah. Man in Dark Times. Haarcourt Brace, 1983, p.8.
[4] PIKETTY, Thomas. Pour Une Révolution Fiscale. Un Impôt sur le Revenu pour le XXIe Siècle. Seuil, 2011. P.67.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Inteligência do art. 43 da Lei 10.297/1996 de Santa Catarina

Velocino Pacheco Filho

Dispõe o § 7º do art. 150 da Constituição Federal que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão somente pode ser concedido mediante lei da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g, ou seja, no caso do ICMS, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, na forma prevista em lei complementar.

Entretanto, o art. 43 da Lei 10.297/1996, de Santa Catarina, autoriza o Poder Executivo, sempre que outro Estado ou o Distrito Federal conceder benefícios fiscais ou financeiros de que resulte redução ou eliminação, direta ou indiretamente, de ônus tributário, com inobservância do disposto na lei complementar  de que trata o art. 155, § 2°, XII, “g”, da Constituição Federal, a tomar as medidas necessárias para a proteção dos interesses da economia catarinense.

O dispositivo depende, para sua aplicação, de ser demonstrado que: (i) outro Estado ou o Distrito Federal concedeu benefício fiscal, do qual resultou redução ou eliminação do ônus tributário; (ii) o benefício não foi autorizado por convênio Confaz, contrariando o art. 155, § 2°, XII, “g”, da Constituição Federal; (iii) o benefício em questão trouxe prejuízo à economia catarinense.

Por outro lado, o dispositivo não pode ser entendido como autorização para Santa Catarina, por sua vez, conceder benefícios fiscais não autorizados pelo Confaz, como retaliação. Nada justifica o descumprimento da Constituição.

Considerando que no Estado Democrático de Direito todos têm o dever de contribuir para com o financiamento do setor público, na medida de sua capacidade contributiva (Estado Fiscal), qualquer dispensa de tributo deve ser justificada. A justificativa pode ser com base no próprio princípio da igualdade ou em razões de extrafiscalidade. Se, nos termos do art. 150, II, é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontram em situação equivalente, então, a contrario sensu, deve ser dado tratamento diferenciado entre contribuintes que não se encontram em situação equivalente. 

A extrafiscalidade como justificativa para tratamento tributário diferenciado não se limita a induzir comportamentos, mas deve estar voltada para a realização de valores albergados pela Constituição, do bem comum e do interesse público. A extrafiscalidade deve estar alinhada com os objetivos fundamentais da República. Caso contrário, se o tratamento tributário diferenciado visa apenas beneficiar alguns, estamos diante do “privilégio odioso”, repudiado pela moral e pelo direito.

Um exemplo de mau uso do art. 43 encontramos no art. 196 do Anexo 3 do Regulamento do ICMS de Santa Catarina.  Ele diz que “poderá” ser concedido crédito presumido a medicamentos etc., na saída subsequente à sua importação, calculado sobre o valor da operação própria, “de acordo com a faixa de receita bruta anual auferida pelo beneficiário”. 

O que justifica esse benefício? Mais ainda, o que justifica a sua graduação em função da receita bruta anual?

Além disso, conforme dispõe o § 1º do mesmo artigo, o benefício depende de concessão de regime especial pelo Secretário de Estado da Fazenda e de um “protocolo de intenções” firmado com o Estado. Ora, crédito tributário, por definição, é indisponível. Ou seja, A Administração, inclusive o titular da Pasta da Fazenda, não é “dona” do tributo; não pode dispor livremente do crédito tributário. Não há poder discricionário para conceder ou não benefício fiscal. A autoridade pode apenas verificar se estão presentes os requisitos previstos em lei para a sua fruição. Em caso afirmativo, ele deve ser concedido. O art. 37 da Constituição elege, entre os princípios que informa a Administração Pública, o da impessoalidade: a Administração não pode demonstrar preferências; todos são iguais perante a Administração.

Porque o crédito tributário é indisponível ele não pode ser objeto de acordos, contratos ou protocolos de intenções. O crédito tributário rege-se apenas pela lei.

Além disso, o benefício é condicionado a que o beneficiário contribua com o Fundosocial – Fundo de Desenvolvimento Social, instituído pela Lei 13.334/2005, destinado a financiar programas e ações de desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão e promoção social, no campo e nas cidades, no Estado de Santa Catarina, inclusive nas áreas da cultura, esporte e turismo, educação especial e educação superior. 

Contudo, o art. 167, IV, da Constituição, veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a destinação de recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino e de outras hipóteses que enumera. Uma “contribuição” sem a qual o contribuinte não consegue o benefício não é voluntária, mas compulsória. À evidência, não passa de uma forma de burlar a vedação contida no art. 167, IV, da Constituição. Apenas no que se refere à educação especial e educação superior podemos considerar como aceitável esse desvio de recursos tributários. Isto por que somente a lei orçamentária pode definir a alocação da receita tributária.

O Fundosocial poderia ser justificado nos termos do parágrafo único do art. 204 da Constituição que autoriza os Estados a vincular a programas de apoio à inclusão e promoção social até 0,5% da receita tributária líquida? Não. O conceito de receita tributária líquida somente faz sentido em relação ao orçamento (receita de todos os tributos de competência dos Estados diminuído da parcela transferida aos Municípios). Não pode simplesmente ser subtraída para essa finalidade uma parcela do ICMS devido.

Chega? Tem mais! O benefício fiscal também é condicionado a uma contribuição – inominada – à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico Sustentável, sem qualquer suporte em lei. Se a lei não pode vincular receita de impostos, menos ainda pode o decreto que é expedido pelo Executivo para a fiel execução das leis, conforme art. 84, IV, in fine, da Constituição Federal.

Não seria mais fácil cumprir a Constituição e não ficar construindo legislações tortuosas? 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A indisponibilidade do crédito tributário

Velocino Pacheco Filho

O art. 150, § 6º da Constituição da República dispõe que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g”.

A exigência, pela Constituição, de lei (em sentido formal) para a concessão de exonerações tributárias tem por fundamento a indisponibilidade do crédito tributário que, conforme magistério de Diógenes Gasparini (Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 17-18), não se acham “os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública”. 

Aqueles e este não são seus senhores ou donos, cabendo-lhes por isso tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa finalidade é o Estado.

Contudo, o art. 13 da Lei catarinense 14.264, de 21 de dezembro de 2007, autoriza o Poder Executivo a “renovar e prorrogar benefícios fiscais concedidos por regimes especiais”. Tratando-se de matéria reservada à lei, benefícios fiscais podem ser concedidos, renovados ou prorrogados por regime especial (ato unilateral do agente público)?

O agente público – seja ele quem for – não tem o poder de inovar o ordenamento jurídico-tributário. Ele deve apenas zelar pelo fiel cumprimento da lei, esta sim o instrumento adequado para conceder benefícios fiscais. Sobre o tema, discorre Aurélio Pitanga Seixas Filho (Discricionariedade da Autoridade Fiscal. RDDT nº 183, p. 28):

Se não pode o administrador fiscal dispor dos direitos públicos, concedendo uma isenção ou redução de impostos para incentivar uma determinada atividade, pode, entretanto, receber do legislador o poder-dever de reconhecer o direito de uma determinada pessoa usufruir de um “incentivo fiscal” em razão de preencher um requisito técnico ou científico em razão de suas características, mais apropriadamente deve ser aferido pelo administrador do que pelo legislador.

Mas, poder-se-ia argumentar, é a própria lei que está delegando ao Poder Executivo (à Administração Pública) o poder de conceder, renovar ou prorrogar benefícios fiscais. Então a pergunta deve ser: a lei pode delegar ao Executivo o poder de dispor do crédito tributário? Estamos tratando do assim chamado “princípio da reserva legal” e a resposta é não. Caso contrário, qual seria a função da separação dos poderes?

Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199) distingue entre princípio da legalidade e princípio da reserva legal: o primeiro é de abrangência mais ampla. “Por ele fica certo que qualquer comando jurídico que impõe comandos forçados há de provir de uma das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional”. Já o princípio da reserva legal é mais restrito, incidindo apenas sobre os campos materiais especificados pela Constituição.

Se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei. Este é, portanto, de menor abrangência, mas de maior densidade ou conteúdo, visto exigir tratamento de matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo.

O mesmo autor, ilustrando a aplicação do princípio da reserva legal, cita decisão da Segunda turma do STJ, no R. Esp. 101.774 SP, em que foi relator o Min. Ari Pargendler (DJ, 9-12-1997, p. 64.661):

Tributário. Substituição Tributária. Princípio da legalidade. A definição do sujeito passivo da obrigação tributária está sujeita ao princípio da reserva legal, não podendo a lei cometê-la ao regulamento (CTN, art. 97, III)

No mesmo sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 

Com efeito, no julgamento da ADI/MC 1.296 PE, relator Min. Celso de Mello (DJ 10-8-1995, p. 23554), de cidiu o tribunal:

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE OUTORGA AO PODER EXECUTIVO A PRERROGATIVA DE DISPOR, NORMATIVAMENTE, SOBRE MATÉRIA TRIBUTARIA - DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA - MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO - POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PRINCÍPIO DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI EM SENTIDO FORMAL - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - CONVENIENCIA DA SUSPENSÃO DE EFICACIA DAS NORMAS LEGAIS IMPUGNADAS - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

A Corte reafirma a lei como instrumento decisivo da garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria tributária. Assim, na visão do tribunal, a transferência ao Executivo da competência normativa primária revela-se irrita e desvestida de qualquer eficácia jurídica no plano constitucional. 

Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponivel prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado - como o Poder Executivo - produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar.

Conclui o Supremo que configura ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa do Poder Legislativo.

Mais recentemente, o Supremo reiterou sua posição no julgamento da ADI 2.688 PR, relator Min. Joaqueim Barbosa (DJe 164, div. 25-8-2011, Pub. 26-8-2011; RDDT 194: 207)

Ementa: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL E INTERESTADUAL. ISENÇÃO CONCEDIDA A TÍTULO DE AUXÍLIO-TRANSPORTE AOS INTEGRANTES DA POLÍCIA CIVIL E MILITAR EM ATIVIDADE OU INATIVIDADE. AUSÊNCIA DE PRÉVIO CONVÊNIO INTERESTADUAL. PERMISSÃO GENÉRICA AO EXECUTIVO. INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 13.561/2002 DO ESTADO DO PARANÁ.

1. A concessão de benefício ou de incentivo fiscal relativo ao ICMS sem prévio convênio interestadual que os autorize viola o art. 155, § 2º, XII, g da Constituição. 

2. Todos os critérios essenciais para a identificação dos elementos que deverão ser retirados do campo de incidência do tributo (regra-matriz) devem estar previstos em lei, nos termos do art. 150, § 6º da Constituição. A permissão para que tais elementos fossem livremente definidos em decreto do Poder Executivo viola a separação de funções estatais prevista na Constituição. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.

Por fim, resta uma última indagação: a concessão, renovação ou prorrogação de benefício fiscal por regime especial, considerando tratar-se de matéria sob reserva legal, pode caracterizar ato de improbidade administrativa, nos termos do inciso VII do art. 10 da Lei 8.429, de 2 de junho de 1992?

Dispõe o dispositivo citado que “constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie”.


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

ICMS-importação e redução de base de cálculo

Velocino Pacheco Filho

A redação dada pela EC 33/2001 à alínea “i” do inciso XII do § 2º do art. 155 da CF, não só veio constitucionalizar a regra de que o ICMS integra sua própria base de cálculo, mas determinou que também as importações obedeceriam à mesma regra. A razão disso é simples: se as mercadorias importadas não foram oneradas pelo ICMS, a simples aplicação da alíquota sobre o valor da importação resultaria em tributação inferior à da mercadoria nacional similar o que representaria uma vantagem para o produto importado em relação ao similar nacional.

Exemplo: suponhamos uma operação interna por R$ 120,00, tributada pela alíquota de 17%, o imposto será de R$ 20,40. Mas, em uma importação, em que não houve incidência do imposto, o valor da importação será B’ = B – I = R$ 120,00 – R$ 20,40 = R$ 99,60. Aplicando a alíquota de 17% sobre o valor da importação teremos R$ 16,93 < R$ 20,40. 

Então, temos de trazer o imposto para dentro da base de cálculo do produto importado. Podemos dizer que a base de cálculo (B) será o valor da importação (B’) acrescido do imposto:

B = B’ + I

O imposto, como sabido, é o resultado da aplicação da alíquota (i) sobre a base de cálculo, resultando em:

I = iB = i(B’ + I)

Resolvendo para I, teremos:

I = (i/1-i)B’

Exemplo: utilizando os mesmos dados do exemplo anterior, temos:

I = (0,17/0,83) x R$ 99,60 = R$ 20,40

Com efeito, a tributação do produto importado será a mesma do similar nacional.

Mas, suponhamos que a mercadoria seja beneficiada internamente com redução da base de cálculo. Conforme dispõe o art. 98 do CTN, “os tratados e convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. Ora, muitos tratados internacionais de que o Brasil é signatário preveem igualdade de tratamento tributário entre as mercadorias importadas e as similares nacionais. Portanto, a mercadoria importada deve beneficiar-se da mesma redução de base de cálculo concedida ao similar nacional. 

Seja (r) a parcela tributada da base de cálculo. Então, como a alíquota deve incidir sobre a base de cálculo reduzida, temos:

I = i(rB)

Exemplo: Com os mesmos dados, vamos supor uma redução da base de cálculo de 40%. Portanto, a parcela tributável da base de cálculo será de 60% ou r = 0,6. Então,

I = 0,17 x 0,6 x R$ 120,00 = R$ 12,24

No caso da importação, considerando que B = B’ + I, temos: 

I = ir(B’ + I)

Donde, resolvendo para I, o ICMS-importação será:

I = (ir/1-ir)B’

Exemplo: 

I = (0,102/0,898) x R$ 107,76 = R$ 12,24

Novamente, o ICMS devido na importação é o mesmo que onera a operação interna. 

No entanto, se calcularmos primeiramente o imposto incluído na base de cálculo, para depois calcularmos a redução, o resultado já não será o mesmo, pois a redução da base de cálculo afeta o próprio montante do imposto. Na verdade estar-se-ia onerando mais a mercadoria importada que a similar nacional o que seria contrário ao acordado nos tratados.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Taxa ou tarifa?

Velocino Pacheco Filho

Afinal, qual a diferença entre taxa e tarifa? São a mesma coisa?

Não, taxa e tarifa são coisas muito diferentes: a tarifa tem natureza de preço, enquanto a taxa é espécie do gênero tributo, conforme CF, art. 145, II. Por se tratar de tributo, as taxas somente podem ser instituídas ou aumentadas por lei, enquanto as tarifas não têm essa restrição.

As tarifas são preços administrados pelo poder público concedente, para remunerar serviços públicos prestados em regime de concessão. Assim, as tarifas diferem dos preços dos demais bens por não serem determinados pelo mercado. Ao fixar o valor da tarifa, o poder concedente leva em conta fatores outros, econômicos e sociais, visando a consecução do bem comum.

As taxas, por sua vez, são tributos que têm como fato gerador uma atividade estatal relativa ao contribuinte. Compreendem dois tipos: (a) taxas pela prestação, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível; e (b) taxas pelo exercício regular do poder de polícia, entendido como a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiente, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas etc.

Porém, as taxas pelo exercício regular do poder de polícia diferem das taxas de serviço por não poderem ser cobradas pela utilização potencial. Não basta serem postas à disposição do contribuinte. O exercício regular do poder de polícia – a fiscalização, a vistoria etc. – deve ser efetivamente prestado, como condição para a cobrança da taxa. Conforme esclarecedor magistério de Hugo de Brito Machado (Comentários ao Código Tributário Nacional. Vol. I, São Paulo: Atlas, 2003, pg. 683):

Sem o efetivo exercício do poder de polícia, que se refere mediante uma atividade de fiscalização, não se justifica a cobrança de taxa. Não basta a existência de um aparato administrativo capaz de agir. É necessária a existência de uma atividade administrativa efetiva, ainda que não se deva tê-la como contraprestação.

À evidência, a taxa pode ser um dos elementos que irão compor a tarifa.

Mas, qual deverá ser o valor das taxas? O legislador é livre para fixar qualquer valor que julgue conveniente?  Misabel Derzi, em sua competente atualização da obra de Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 542), leciona que a base de cálculo das taxas “deve mensurar o custo de atuação do Estado, proporcionalmente a cada obrigado”, não podendo variar em função daquilo que for próprio do contribuinte. Acrescenta a ilustre jurista mineira que taxas que elegem base de cálculo diversa do custo da atuação estatal relativa ao contribuinte não passam de impostos disfarçados, instituídos ao arrepio das regras constitucionais. Com efeito, o § 2º do art. 145 da CF proíbe que as taxas tenham base de cálculo própria de impostos.

No mesmo sentido, ensina Aurélio Pitanga Seixas Filho (Dimensão jurídica do tributo vinculado. RDDT nº 195, p. 37) que a “taxa, do ponto de vista financeiro, tem a função de recuperar o custo específico e mensurável de uma atividade governamental relacionada diretamente com o contribuinte”.

Não é diferente o magistério de Humberto Ávila (As Taxas e sua Mensuração. RDDT nº 204, setembro de 2012, p. 37): “sendo a causa da instituição das taxas a atividade estatal, a sua base de cálculo deverá ser medida com base nessa atividade, não em elementos residentes nos contribuintes”. Esse autor admite que a base de cálculo das taxas possa conter elementos relacionados aos contribuintes, mas se e somente se tais elementos representarem e mensurarem a atuação estatal.

Assim, permanecem estranhas à base de cálculo das taxas considerações sobre a isonomia entre os serviços prestados ou a situação socioeconômica dos usuários.  Tais cogitações são válidas na determinação do valor da tarifa, mas não da taxa.

O valor da taxa deve ser determinado em função do custo da atividade estatal exercida, seja ela a prestação de serviço público específico e divisível ou o exercício regular do poder de polícia. O valor da taxa deve ser determinado levando em conta fatores como material utilizado, depreciação do ativo, tempo gasto (medido em homem/hora, conforme a remuneração do servidor que executa o serviço) etc.

Em síntese, as taxas não devem ser vistas como fonte de receita para o Estado, mas como ressarcimento do custo de atividade estatal realizada em função de contribuinte determinado.