Velocino Pacheco Filho
Muito se tem falado sobre a precariedade da interpretação exclusivamente gramatical dos textos de direito positivo. Contudo, já ensinava Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 106) que “o primeiro esforço de quem pretende compreender pensamentos alheios orienta-se no sentido de entender a linguagem empregada”. Segundo esse autor, ainda surpreendentemente atual, o intérprete “graças ao manejo relativamente perfeito e ao conhecimento integral das leis e usos da linguagem, procura descobrir qual deve ou pode ser o sentido de uma frase, dispositivo ou norma”.
Desde que o povo veio a substituir o príncipe como titular da soberania, as leis são consideradas como expressão da vontade do povo, elaboradas e aprovadas por seus representantes eleitos. Então, os textos de direito positivo, resultado da atividade legislativa, têm um sentido e uma intenção que não podem ser ignorados pelo intérprete. Pelo contrário, eles são o ponto de partida do trabalho de interpretação, como observa Karl Larentz (Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed. Lisboa: Gulbenkian, 1997, p. 450): “Toda interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal”. O legislador dirige-se ao cidadão e deseja ser entendido por ele.
Não é outra a lição de Ricardo Lobo Torres (Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 327): “O método literal, gramatical ou lógico-gramatical é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir do texto”.
Mas, embora imprescindível, a interpretação não pode ater-se apenas à análise gramatical do texto. Ela é insuficiente. Por quê?
As razões são várias. Em primeiro lugar, as imprecisões da própria linguagem humana, suas ambiguidades e a pluralidade de sentido das palavras. Os chamados “termos indeterminados” – dos quais não podemos prescindir – têm conteúdo semântico vago que deve ser precisado pelo intérprete, de forma compatível com o ordenamento jurídico.
Cada palavra pode ter mais de um sentido; e acontece também o inverso – vários vocábulos se apresentam com o mesmo significado; por isso, da interpretação puramente verbal resulta ora mais, ora menos do que se pretendeu exprimir. .... Em regra, só do complexo das palavras empregadas se deduz a verdadeira acepção de cada uma, bem como a ideia inserta no dispositivo (Maximiliano, op. cit. p. 109).
Ademais, o fato concreto com que se depara o intérprete e aplicador da lei – e que não pode furtar-se a dar uma solução (vedação ao non liquet) – não é exatamente o mesmo com que se defrontou o legislador. Sempre há traços peculiares ao caso concreto.
Outra dificuldade é que as leis resultam do debate parlamentar, ou seja, de acordos firmados entre grupos de parlamentares que representam distintos interesses e ideologias. Como o legislativo representa a sociedade, nele estão presentes – como não poderia deixar de ser – os diferentes segmentos que a compõe. Daí que não se pode esperar consistência no direito positivo que resulta de um consenso negociado.
Por outro lado, a interpretação gramatical estabelece os limites dos significados possíveis do texto do direito legislado; o balizamento além do qual o intérprete não pode ir. “A interpretação literal, em outro sentido, significa um limite para a atividade do intérprete. Tendo por início o texto da norma, encontra o seu limite no sentido possível daquela expressão linguística” (Torres, op. cit. p. 241).
A interpretação das leis serve à sua aplicação. A lei é interpretada para poder ser aplicada. “A aplicação não prescinde da hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose” (Maximiliano, op. cit. p. 8). Então, deve interpretar a lei todo aquele incumbido de aplicá-la. Essa tarefa é principalmente do Judiciário, mas pode incumbir também à Administração quando esta aplica a lei de ofício, como é o caso da atividade administrativa de constituição do crédito tributário (lançamento).
Todavia, em matéria de interpretação, a Administração não tem a mesma liberdade do Judiciário: a Administração não pode declarar a inconstitucionalidade de lei, ou negar vigência a decreto ou portaria de Secretário de Estado. A isso se opõe o princípio da hierarquia que informa a Administração. Já o judiciário não sofre tais limitações.
Vejamos, apenas como exemplo, a incidência do ICMS, de competência dos Estados, e do ISS, de competência dos Municípios. Abstraindo a questão das prestações de serviço de transporte e de comunicação, podemos resumidamente dizer que o fato gerador do ICMS consiste em obrigações de dar e o do ISS em obrigações de fazer. Mas pode acontecer que tenhamos um fato misto que compreenda tanto obrigação de dar quanto de fazer. Qual tributo deverá incidir?
Dispõe o art. 146, I, da Constituição Federal, que “cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”.
Ora, a Lei Complementar 116/2003 (que trata do ISS), art. 1º, § 2º dispõe que ressalvadas as exceções expressas na lista de serviços, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva o fornecimento de mercadorias. A Lei Complementar 87/1996 (que trata do ICMS), art. 2º, IV e V, dispõe, por sua vez, que o imposto incide sobre o fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios ou quando, sujeitos ao imposto sobre serviço, a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.
Merece menção que disposições semelhantes constavam dos §§ 1º e 2º do art. 8º do Decreto-lei 406/1958 que anteriormente regia essas matérias.
Em síntese: quando estiverem presentes, simultaneamente, operação de circulação de mercadorias e prestação de serviço, o ICMS incide apenas quando (i) o serviço não constar da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 ou (ii) a própria lista ressalvar a incidência do ICMS sobre as mercadorias empregadas.
Pois bem! Poderia a Administração Tributária estadual adotar outro critério – mais favorável aos Estados – que não o previsto nas LC 116/2003 e na LC 87/1996? Certamente que não! Se o fizesse, estaria não só invadindo a competência tributária dos Municípios, como também a competência privativa do legislador complementar federal para dirimir conflitos de competência. Além disso, estaria contrariando norma expressa de lei complementar federal.
Com efeito, leciona Karl Larentz (op. cit. 453): “o que está para além do sentido literal linguisticamente possível e é claramente excluído por ele, já não pode ser entendido, por via da interpretação, como o significado aqui decisivo deste termo”. Isto por que o significado literal da lei tem uma dupla missão: é não só o ponto de partida para a indagação judicial do sentido, como também traça os limites da atividade interpretativa. “Uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido”.
A adoção de critérios outros, além dos expressamente previstos pelo legislador complementar para demarcar as esferas de competência, respectivamente, de Estados e Municípios não constitui interpretação, mas inovação que é vedada à Administração.