DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Alcance e limites da interpretação gramatical


Velocino Pacheco Filho

Muito se tem falado sobre a precariedade da interpretação exclusivamente gramatical dos textos de direito positivo. Contudo, já ensinava Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 106) que “o primeiro esforço de quem pretende compreender pensamentos alheios orienta-se no sentido de entender a linguagem empregada”. Segundo esse autor, ainda surpreendentemente atual, o intérprete “graças ao manejo relativamente perfeito e ao conhecimento integral das leis e usos da linguagem, procura descobrir qual deve ou pode ser o sentido de uma frase, dispositivo ou norma”.

Desde que o povo veio a substituir o príncipe como titular da soberania, as leis são consideradas como expressão da vontade do povo, elaboradas e aprovadas por seus representantes eleitos. Então, os textos de direito positivo, resultado da atividade legislativa, têm um sentido e uma intenção que não podem ser ignorados pelo intérprete. Pelo contrário, eles são o ponto de partida do trabalho de interpretação, como observa Karl Larentz (Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed. Lisboa: Gulbenkian, 1997, p. 450): “Toda interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal”. O legislador dirige-se ao cidadão e deseja ser entendido por ele.

Não é outra a lição de Ricardo Lobo Torres (Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 327): “O método literal, gramatical ou lógico-gramatical é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir do texto”.

Mas, embora imprescindível, a interpretação não pode ater-se apenas à análise gramatical do texto. Ela é insuficiente. Por quê? 

As razões são várias. Em primeiro lugar, as imprecisões da própria linguagem humana, suas ambiguidades e a pluralidade de sentido das palavras. Os chamados “termos indeterminados” – dos quais não podemos prescindir – têm conteúdo semântico vago que deve ser precisado pelo intérprete, de forma compatível com o ordenamento jurídico.

Cada palavra pode ter mais de um sentido; e acontece também o inverso – vários vocábulos se apresentam com o mesmo significado; por isso, da interpretação puramente verbal resulta ora mais, ora menos do que se pretendeu exprimir. .... Em regra, só do complexo das palavras empregadas se deduz a verdadeira acepção de cada uma, bem como a ideia inserta no dispositivo (Maximiliano, op. cit. p. 109).

Ademais, o fato concreto com que se depara o intérprete e aplicador da lei – e que não pode furtar-se a dar uma solução (vedação ao non liquet) – não é exatamente o mesmo com que se defrontou o legislador. Sempre há traços peculiares ao caso concreto.

Outra dificuldade é que as leis resultam do debate parlamentar, ou seja, de acordos firmados entre grupos de parlamentares que representam distintos interesses e ideologias. Como o legislativo representa a sociedade, nele estão presentes – como não poderia deixar de ser – os diferentes segmentos que a compõe. Daí que não se pode esperar consistência no direito positivo que resulta de um consenso negociado.
Por outro lado, a interpretação gramatical estabelece os limites dos significados possíveis do texto do direito legislado; o balizamento além do qual o intérprete não pode ir. “A interpretação literal, em outro sentido, significa um limite para a atividade do intérprete. Tendo por início o texto da norma, encontra o seu limite no sentido possível daquela expressão linguística” (Torres, op. cit. p. 241).

A interpretação das leis serve à sua aplicação. A lei é interpretada para poder ser aplicada. “A aplicação não prescinde da hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose” (Maximiliano, op. cit. p. 8). Então, deve interpretar a lei todo aquele incumbido de aplicá-la. Essa tarefa é principalmente do Judiciário, mas pode incumbir também à Administração quando esta aplica a lei de ofício, como é o caso da atividade administrativa de constituição do crédito tributário (lançamento).

Todavia, em matéria de interpretação, a Administração não tem a mesma liberdade do Judiciário: a Administração não pode declarar a inconstitucionalidade de lei, ou negar vigência a decreto ou portaria de Secretário de Estado. A isso se opõe o princípio da hierarquia que informa a Administração. Já o judiciário não sofre tais limitações.

Vejamos, apenas como exemplo, a incidência do ICMS, de competência dos Estados, e do ISS, de competência dos Municípios. Abstraindo a questão das prestações de serviço de transporte e de comunicação, podemos resumidamente dizer que o fato gerador do ICMS consiste em obrigações de dar e o do ISS em obrigações de fazer. Mas pode acontecer que tenhamos um fato misto que compreenda tanto obrigação de dar quanto de fazer. Qual tributo deverá incidir? 

Dispõe o art. 146, I, da Constituição Federal, que “cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”.

Ora, a Lei Complementar 116/2003 (que trata do ISS), art. 1º, § 2º dispõe que ressalvadas as exceções expressas na lista de serviços, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva o fornecimento de mercadorias. A Lei Complementar 87/1996 (que trata do ICMS), art. 2º, IV e V, dispõe, por sua vez, que o imposto incide sobre o fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios ou quando, sujeitos ao imposto sobre serviço, a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.

Merece menção que disposições semelhantes constavam dos §§ 1º e 2º do art. 8º do Decreto-lei 406/1958 que anteriormente regia essas matérias.

Em síntese: quando estiverem presentes, simultaneamente, operação de circulação de mercadorias e prestação de serviço, o ICMS incide apenas quando (i) o serviço não constar da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 ou (ii) a própria lista ressalvar a incidência do ICMS sobre as mercadorias empregadas.

Pois bem! Poderia a Administração Tributária estadual adotar outro critério – mais favorável aos Estados – que não o previsto nas LC 116/2003 e na LC 87/1996? Certamente que não! Se o fizesse, estaria não só invadindo a competência tributária dos Municípios, como também a competência privativa do legislador complementar federal para dirimir conflitos de competência. Além disso, estaria contrariando norma expressa de lei complementar federal.

Com efeito, leciona Karl Larentz (op. cit. 453): “o que está para além do sentido literal linguisticamente possível e é claramente excluído por ele, já não pode ser entendido, por via da interpretação, como o significado aqui decisivo deste termo”. Isto por que o significado literal da lei tem uma dupla missão: é não só o ponto de partida para a indagação judicial do sentido, como também traça os limites da atividade interpretativa. “Uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido”.

A adoção de critérios outros, além dos expressamente previstos pelo legislador complementar para demarcar as esferas de competência, respectivamente, de Estados e Municípios não constitui interpretação, mas inovação que é vedada à Administração. 

quinta-feira, 17 de março de 2016

O sigilo bancário e a defesa da privacidade: “o direito de sonegar”.

Velocino Pacheco Filho

Questão recorrente é saber se o Fisco tem direito de pedir informações diretamente às instituições financeiras sobre as movimentações de seus correntistas ou se tais informações dependem de autorização judicial. 

Conforme § 1º do art. 145 da Constituição, os impostos, sempre que possível terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. 

Então, o acesso da administração tributária a dados sobre o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte é garantido pela própria Constituição, desde que (i) venham conferir efetividade ao caráter pessoal e graduação segundo a capacidade econômica de cada um e (ii) sejam respeitados os direitos individuais.

Que esta disposição constitucional compreende informações bancárias, parece estar confirmada pelo art. 197, II, do Código Tributário Nacional, segundo o qual estão obrigados, mediante intimação escrita, a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades financeiras de terceiros, os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras. 

Bem verdade que o parágrafo único desse artigo dispõe que o dever de informações não abrange fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão. Estariam nesse caso as informações dos bancos sobre seus clientes? É pouco provável que o legislador tenha pretendido retirar no parágrafo o direito que concedeu no corpo do artigo.
O sigilo que as instituições financeiras devem observar quanto às movimentações de seus clientes foi tratado pela Lei Complementar 105/2001. Esse diploma legal, no entanto, ressalva o Fisco nos arts. 5º e 6º:

Art. 5º O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

Dito de outro modo: desde que haja processo administrativo em curso e que o seu exame seja considerado indispensável pela autoridade administrativa competente, é garantido ao Fisco o exame de documento, livros e registros, inclusive os referentes a contas de depósito e aplicações financeiras. Portanto, a autorização para o acesso do Fisco a informações bancárias dos contribuintes fica a cargo de autoridade administrativa e não do judiciário. O Fisco, no entanto, fica obrigado a guardar sigilo sobre essas informações, nos termos do art. 198 do CTN, respondendo criminalmente o agente do Fisco, no caso de divulgação das mesmas.

Comenta com pertinência Marcos Antônio P. Noronha (O Sigilo Bancário no Brasil. In: TÔRRES, Heleno Taveira et al. – coord. – Direito Tributário e Processo Administrativo Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 423): “descabe, completamente, a ideia de que o Fisco sairá utilizando indevidamente o sigilo bancário dos cidadão com base em infundadas suspeitas e que as informações obtidas poderão ser divulgadas”.

No entanto, parcela significativa da doutrina tem negado o direito do Fisco de acesso a informações bancárias do contribuinte. Mesmo a jurisprudência, ainda que não declarada a inconstitucionalidade dos arts. 5º e 6º da LC 105 ou do art. 197, II, do CTN, tem condicionado o acesso a tais informações à autorização do Judiciário. Esse entendimento está sendo revisto pelo Supremo Tribunal Federal.

Os que pretendem limitar o acesso do Fisco às informações bancárias fundamentam nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal: (i) o inciso X trata da proteção da privacidade e (ii) o inciso XII, do sigilo de dados. 

Ora, nesse ponto devemos perguntar: que privacidade está sendo protegida? A do crime organizado? A dos corruptos? A dos sonegadores? O Estado brasileiro, em particular o Poder Judiciário, está protegendo a lavagem de dinheiro proveniente de atividades ilegais como o tráfico de drogas, a prostituição, a corrupção, a sonegação?

A Constituição não garante expressamente o sigilo bancário. Apenas por interpretação – discutível – podemos enxergá-la inserida na proteção à privacidade ou do sigilo de dados. No esclarecido magistério de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri SP: Manole, 2007, p. 181), “o sigilo bancário, embora tenha a ver com privacidade, não conhece uma subsunção imediata na Constituição, embora esta, tendo em vista a inviolabilidade do direito à privacidade, exija do legislador a máxima cautela com a publicidade das relações privadas”.

Em particular, com base no art. 5º da LC 105, foi firmado acordo entre Brasil e os EUA para permitir o intercâmbio de informações fiscais no âmbito do Foreign Account Tax Compliance Act, aprovado pelo Decreto Legislativo 146/2015, no que se refere às instituições financeiras brasileiras. Para dar-lhe efetividade, foi editada a Instrução Normativa RFB 1.571/2015, tornando obrigatória para as instituições financeiras a prestação de informações sobre as operações financeiras de seus clientes.

Entre os argumentos contrários à medida, apelou-se para o risco de “compartilhar essas informações personalíssimas com outros países que não se comprometem com os direitos e garantias estabelecidos na Constituição Federal, dentre os quais, a necessidade de prévia autorização judicial”. Os países que causam tanta preocupação, por não terem compromisso com os direitos e garantias constitucionais, são os Estados Unidos, a França, a Inglaterra, a Alemanha e outros onde tem se desenvolvido a teoria dos direitos e garantias constitucionais que o Brasil tem copiado tão aplicadamente.

A solicitação, pela Administração Tributária, de informações sobre operações bancárias do contribuinte é um ato administrativo vinculado que visa realizar a função precípua do Fisco, outorgada pela Constituição, que é o poder de tributar, dentro do qual está inserido o de fiscalizar, e, portanto, deve dispensar autorização judicial prévia para ser praticado, estando no âmbito de competência da própria administração que representa o Poder Executivo (Noronha, op. cit. p. 422).

A seu turno, Gilmar Ferreira Mendes e outros (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 375), reconhece que a LC 105 atribuiu aos agentes do Fisco, no exercício do seu poder de fiscalização, o poder de requisitar informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras, independentemente de autorização judicial: 

O direito ao sigilo bancário, entretanto, não é absoluto, nem ilimitado. Havendo tensão entre o interesse do indivíduo e o interesse da coletividade, em torno do conhecimento de informações relevantes para determinado contexto social, o controle sobre os dados pertinentes não há de ficar submetido ao exclusivo arbítrio do indivíduo.

A fiscalização é uma função típica de Estado, razão por que é permitido ao Fisco acesso a informações bancárias do contribuinte, sem que para isso, precise de prévia autorização judicial, pois nada mais estará fazendo que cumprir sua função. O poder de tributar e de fiscalizar é inerente ao poder de polícia do Estado, que deve ser considerado normal em um país democrático, onde esteja presente o estado de direito. Cuida-se do condicionamento da liberdade do indivíduo ao bem estar social que consiste, no caso, em melhor distribuição de renda e não sobrecarga  de uns em favor de outros (Mendes, op. cit. p. 424).

O próprio Superior Tribunal de Justiça já vinha sinalizando a relativização do sigilo bancário (AgRg no AgIn 1.329.960 SP; Luiz Fux; Primeira Turma; DJe 22/02/2011):

12. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 facultou à Administração Tributária, nos termos da lei, a criação de instrumentos/mecanismos que lhe possibilitassem identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, respeitados os direitos individuais, especialmente com o escopo de conferir efetividade aos princípios da pessoalidade e da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º).

13. Destarte, o sigilo bancário, como cediço, não tem caráter absoluto, devendo ceder ao princípio da moralidade aplicável de forma absoluta às relações de direito público e privado, devendo ser mitigado nas hipóteses em que as transações bancárias são denotadoras de ilicitude, porquanto não pode o cidadão, sob o alegado manto de garantias fundamentais, cometer ilícitos. Isto porque, conquanto o sigilo bancário seja garantido pela Constituição Federal como direito fundamental, não o é para preservar a intimidade das pessoas no afã de encobrir ilícitos.

Em suma, não se justifica dificultar o acesso do Fisco às informações bancárias dos contribuintes, mesmo por que elas permanecerão protegidas pelo sigilo a que estão obrigadas as autoridades fiscais, conforme art. 198 do Código Tributário Nacional. O que não se pode admitir é utilizar o sigilo bancário como escudo protetor de atividades ilícitas. Já é tempo do Brasil deixar de ser o país da impunidade.