DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

A extinção do crédito tributário mediante transação entre o Fisco e o sujeito passivo
Velocino Pacheco Filho

O art. 171 do Código Tributário Nacional (CTN) dispõe que “a lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em terminação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário”. O parágrafo único do mesmo artigo acrescenta que “a lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso”.

A aplicação da transação, portanto, requer a presença concomitante dos seguintes requisitos: (i) expressa previsão em lei; (ii) existência de litígio e (iii) concessões mútuas.
Embora prevista no CTN, a transação é pouco utilizada e, nos poucos casos em que se procurou disciplinar o instituto, acabou-se por designar como transação o parcelamento ou a dação em pagamento o que, é óbvio, não constituem transação.

Segundo Aliomar Baleeiro, a transação exige da autoridade fazendária “critério elevado e prudência acurada”. Isto por que só pode ser celebrada, “com relativo discricionarismo administrativo na apreciação das condições, conveniência e oportunidade, se a lei lhe faculta e dentro dos limites e requisitos por ela fixados”.

Já a apreciação de Eduardo Marcial Ferreira Jardim é mais radical. Segundo este autor, não há, nos lindes da tributação, lugar para a transação. Argumenta que “o aludido instituto afigura-se incompatível com as premissas concernentes à tributação, dentre elas a necessária discricionariedade que preside a transação e a vinculabilidade que permeia toda função administrativa relativa aos tributos”.

Com efeito, nos termos do art. 3º do CTN, a obrigação tributária é “cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” e o parágrafo único do art. 142 determina que “a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.

O problema todo, portanto, reside nas “concessões mútuas” que, no caso da Fazenda Pública, se choca com o princípio da indisponibilidade do crédito tributário: a administração tributária não teria competência para dispor discricionariamente do crédito tributário.

Segundo Paulo de Barros Carvalho, “o princípio da indisponibilidade dos bens públicos impõe seja necessária previsão normativa para que a autoridade competente possa entrar no regime de concessões mútuas, que é da essência da transação”.

Na lição de Diógenes Gasparini, os bens, direitos, interesses e serviços públicos não estão à livre disposição dos órgãos públicos, “a quem cabe apenas curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública”. O crédito tributário é público e indisponível: “somente a lei pode dele dispor”, sentencia Sacha Calmon Navarro Coêlho.

No entanto, apesar das bem ponderadas objeções de Ferreira Jardim, o legislador previu, entre as modalidades de extinção do crédito tributário, a transação celebrada pelos sujeitos ativo e passivo. Ora, não é permitido à Administração afastar a aplicação de dispositivo integrante do ordenamento jurídico, sem que tenha sido declarada a sua incompatibilidade com o ordenamento pelo Poder competente.

O problema, como dito, reside nas concessões por parte da Fazenda, frente à indisponibilidade do crédito tributário. Ora, a indisponibilidade do crédito tributário decorre da presunção de certeza e liquidez que lhe é atribuída. Essa presunção é que torna a Certidão de Dívida Ativa um título executivo extrajudicial, dispensando, na execução fiscal, o prévio processo de conhecimento. Contudo, essa presunção não é absoluta. Há valores que compõe o crédito tributário que abrigam alguma incerteza: é o caso do arbitramento da base de cálculo pela autoridade fiscal. Outras incertezas podem envolver a alíquota aplicável, a penalidade e sua graduação, a correção monetária ou ainda tratamentos tributários diferenciados, tais como o regime do Simples Nacional, as isenções, créditos presumidos, substituição tributária etc.

Pelo simples fato do agente notificante exigir determinada soma do contribuinte, à título de crédito tributário, não quer dizer que não possa haver alguma margem de incerteza e, portanto, não podemos falar, nesse caso, de indisponibilidade da coisa pública como um absoluto.

Com efeito, o ordenamento jurídico tributário reconhece ao sujeito passivo o direito de impugnar o crédito tributário exigido, desencadeando o processo de verificação da legalidade dessa exigência.

Temos aqui amplo espaço para a transação. Se a base de cálculo do imposto não se baseia em documentos que revelam o real valor da operação, mas foi arbitrada pela autoridade administrativa, entendo perfeitamente possíveis concessões por parte da Fazenda, sem ferir o princípio da indisponibilidade do crédito tributário. O arbitramento compreende certa margem de discricionariedade da autoridade fazendária na escolha dos critérios e parâmetros adotados. O próprio art. 148 do CTN prevê o direito do sujeito passivo à avaliação contraditória, no caso de contestação administrativa ou judicial.

Esse último ponto nos leva a uma última indagação: a transação somente pode ser invocada em sede de processo judiciário ou pode ser utilizada na fase de impugnação administrativa do crédito tributário (controle da legalidade dos atos da administração)? No entendimento de Hugo de Brito Machado, a transação somente pode ter lugar na discussão perante o Poder Judiciário, pois, como os órgãos de julgamento integram a própria Administração Pública, o processo administrativo fiscal representa apenas um controle interno da legalidade do lançamento, não restando caracterizada ainda a pretensão da Fazenda, a ensejar uma lide.


Em qualquer hipótese, a transação, se utilizada com critério, pode tornar-se um instrumento eficiente para a solução rápida de conflitos tributários e, por via de conseqüência, para o ingresso de recursos no Erário.

sexta-feira, 24 de maio de 2013


O ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa
Velocino Pacheco Filho

Dispõe o art. 12, I, da Lei Complementar 87/1996 (que dispõe sobre normas gerais relativas ao ICMS) que considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular.

O § 4º do art. 13 da mesma Lei dispõe sobre a base de cálculo do imposto, na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular.
Parece claro que o legislador complementar considerou como tributadas pelo ICMS as transferências de mercadorias entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo contribuinte.
Contudo, não tem sido este o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: albergando tese majoritária na doutrina nacional, considera que “para a ocorrência do fato imponível é imprescindível a circulação jurídica da mercadoria com a transferência da propriedade” (Agravo Regimental em Recurso Especial 45.856 MG, Primeira Turma, Revista Dialética de Direito Tributário 212, p. 208, maio de 2013).

Trata-se, na verdade, de jurisprudência sumulada: Súmula STJ 166: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento”.

Com efeito, a doutrina nacional tem rejeitado a tese de que a simples saída física da mercadoria do estabelecimento, seja a que título for, constitui fato gerador do tributo. Nas palavras de Sacha Calmon Navarro Coelho (Curso de Direito Tributário Brasileiro, 2012, p. 461), a tese “está hoje inteiramente superada”. Prossegue o mesmo autor dizendo que “em seu lugar, contrapôs-se a tese doutrinariamente unânime e juridicamente adequada que entende não haver circulação sem a transferência de propriedade das mercadorias.

Estamos diante de um impasse que precisa ser solucionado. Por um lado, a tese “fiscalista”, adotada pela Lei Complementar 87/96, de um fato gerador amplo, abrangendo qualquer saída da mercadoria do estabelecimento, inclusive para estabelecimento do mesmo contribuinte. Por outro, a tese desenvolvida pela doutrina e acolhida pelo STJ de que a caracterização do fato gerador implica necessariamente a transferência de propriedade das mercadorias.

A Lei Complementar está em vigor. Não foi declarada a exclusão do art. 12, I, e 13, § 4º, do ordenamento jurídico tributário. Os Estados estão impedidos de dispor de modo contrário à Lei Complementar 87, por força do § 4º do art. 24 da Constituição Federal (que trata da competência concorrente, inclusive em matéria tributária). O que temos é uma jurisprudência sumulada que nega aplicação a dispositivos da Lei Complementar, sem retirá-los do ordenamento tributário.

Sem dúvida, a forma mais prática de realizar o princípio da não-cumulatividade é tributar todas as movimentações de mercadorias, mesmo entre estabelecimentos do mesmo titular. Afinal, o mecanismo de transferência do “crédito” fiscal foi concebido, tendo por base o princípio da autonomia do estabelecimento (embora o estabelecimento não tenha personalidade jurídica própria, diversa do sujeito passivo tributário).

Uma conseqüência nefasta de considerar não-tributável as transferências entre estabelecimentos do mesmo titular está na aplicação da regra do art. 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal: “a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”. Assim, o “purismo” de não querer tributar as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte acarreta a anulação dos créditos no estabelecimento de origem e torna o imposto cumulativo naquela etapa.

A situação pode se tornar mais complicada nas operações interestaduais em que a transferência de mercadorias ocorre entre estabelecimentos do mesmo contribuinte situados em diferentes unidades da Federação. Nesse caso, muda o próprio sujeito ativo tributário. Roque Antonio Carrazza (ICMS2005, p. 56) demonstrou sesibilidade para o problema: “quando a mercadoria é transferida para estabelecimento do próprio remetente, mas situado no território de outra pessoa política (Estado ou Distrito Federal), nada impede, juridicamente, que a filial venha a ser considerada ‘estabelecimento autônomo’, para fins de tributação por via do ICMS. Assim é para que não se prejudique o Estado (ou o Distrito Federal) de onde sai a mercadoria”.

Essa é uma situação que reclama dos doutos uma solução. O que não pode é os Estados continuarem a ignorar jurisprudência sumulada do STJ e este, por sua vez, continuara a declarar a não-incidência do ICMS nas operações de transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. Enquanto não for encontrada uma solução racional, continuará a ser agredido o valor segurança do direito e a presunção de completude do ordenamento jurídico.

quinta-feira, 23 de maio de 2013


Restituição do ICMS sobre as bonificações

Leandro Luis Daros

No final de abril de 2013 a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu nos autos do Recurso Especial 1.366.622-SP o direito da Danone Ltda à restituição do valor do ICMS pago sobre as saídas de mercadorias dadas em bonificação.

A Turma decidiu que os requisitos impostos pelo artigo 166 do Código Tributário Nacional (CTN) não se aplicam aos casos de pedido de creditamento dos valores pagos por bonificação incondicional – uma modalidade de desconto praticada por comerciantes que consiste na entrega de maior quantidade de produto em vez da redução no valor da venda. 

A respeito dos requisitos do art. 166 do CTN, eles estabelecem que “a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”. 

A decisão da Primeira Turma de fato garante o direito da restituição nas situações em que um contribuinte vende a um consumidor final ou a não contribuinte, e até mesmo a empresas do SIMPLES Nacional, ou seja, àqueles que não aproveitam créditos de ICMS destacados nas notas fiscais. Porém, é conflituosa se for generalizada para operações entre contribuintes, com a aplicação da não cumulatividade.

Não parece que a Danone Ltda realize operações com consumidores finais, mas sim com outros contribuintes (varejistas e atacadistas em geral). Como exemplo, suponha-se uma operação de venda entre contribuintes de 100 unidades a R$ 10 cada, total de R$ 1.000, com ICMS destacado de R$ 170. Junto a esta venda foram enviadas 10 unidades em bonificação, também com valor unitário de R$ 10 e com ICMS destacado de R$ 17. O destinatário, contribuinte de ICMS, recebeu, portanto, 110 unidades e pagou por elas R$ 1.000, afinal recebeu 10 como bonificação. Com base no documento fiscal que acoberta a transação, idôneo, emitido por um contribuinte inscrito, o destinatário registrou em sua contabilidade a entrada das 110 mercadorias em estoque e um crédito de ICMS de R$ 187 (170 + 17). Como o valor foi destacado na nota fiscal, o vendedor (contribuinte de direito) deve recolher o ICMS de R$ 187.

Com base na atual decisão do STJ o vendedor teria direito a restituição do ICMS sobre as bonificações (R$ 17), que foi creditado pelo comprador, abrindo uma lacuna na não cumulatividade, ou seja, o crédito aproveitado não foi pago, afinal, segundo o STJ, será restituído.

A decisão da corte diz que “se a mercadoria foi dada em bonificação, ou seja, foi entregue sem o pagamento de qualquer quantia pelo contribuinte final, e se sobre essas não incide qualquer tributo (não configura fato gerador tributário)”. Acredito que a expressão “contribuinte final” seja sinônima a “consumidor final ou não contribuinte” e ai sim acerta o STJ, já que para esse tipo de transação os créditos de ICMS não são aproveitados pelo destinatário. Porém, a ausência de comprovação da não repercussão, conforme previsto no art. 166 do CTN, em operações entre contribuintes abre espaço para o aproveitamento de créditos de ICMS que não foram pagos na origem (ou que serão restituídos). É necessário que a Primeira Turma esclareça sua decisão, ou seja, se ela se aplica tanto em operações entre contribuintes ou somente nas transações entre contribuintes e consumidores finais, para que haja segurança jurídica tanto para os empresários que utilizam a prática de bonificação, como para o Fisco nas emissões de atos fiscais.

sexta-feira, 17 de maio de 2013


Os convênios Confaz e o princípio da legalidade
Velocino Pacheco Filho

          Conforme art. 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal, os Estados não têm competência para conceder, unilateralmente, isenções, incentivos e benefícios fiscais, relativamente ao ICMS. O Estado precisa ser previamente autorizado pelos demais Estados. O fórum de debate é o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e a autorização é dada mediante celebração de convênio entre os Estados, na forma prevista pela Lei Complementar 24/1975.
          A disciplina dos Convênios é o remédio adotado pelo constituinte para prevenir a assim chamada “guerra fiscal” que tanto prejuízo tem causado às receitas dos Estados federados. O problema que tem desafiado a Federação é a concessão de benefícios fiscais sem que tenha sido autorizada por convênio.
          Que penalidade pode ser aplicada ao Estado infrator? Quem tem competência para aplicá-la? O art. 8º, I, da LC 24/1975 dispõe que a sua inobservância acarretará a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria.
          No entanto, o Supremo Tribunal Federal tem desautorizado a glosa dos créditos fiscais, no caso do Estado de origem da mercadoria ter concedido benefício fiscal não autorizado pelo Confaz. Muito bem, se os Estados não podem aplicar o art. 8º, I, quem poderá fazê-lo? Estaríamos diante de uma ineficácia técnico-semântica da norma?
          Contudo, o foco da discussão mais recente tem sido no sentido da facilitação da autorização de benefícios pelo Confaz. O § 2º do art. 2º da LC 24/75 exige unanimidade para autorizar benefícios, o que se justifica pelo princípio da Federação: os Estados devem poder se posicionar contra benefícios concedidos por outro Estado e que lhe sejam prejudiciais.
          Argumenta-se que não é exigida unanimidade para aprovar uma emenda constitucional. Ora, são coisas diferentes e lógicas diferentes. As emendas constitucionais são votadas pelos representantes do povo brasileiro, como poder constituinte derivado. As decisões do Confaz são tomadas pelos representantes dos Executivos estaduais. Não representam os Estados, mas apenas um dos Poderes. Além do mais, não têm a legitimidade que é conferida pelo mandato popular. Como já foi lembrado, o Confaz é uma reunião de demissíveis ad nutum.
          Por outro lado, há matérias na Constituição que não podem nem ao menos ser objeto de deliberação, quanto mais aprovação, mesmo por unanimidade. Estou falando das “cláusulas pétreas”, contempladas no § 4º do art. 60 da Constituição.
          Mas o verdadeiro cerne do problema está no exercício de atividades legislativas por entidade que não pertence ao poder legislativo, nem seus integrantes foram legitimados pelo voto popular. Com efeito, a exoneração tributária está sob reserva absoluta da lei: o art. 97, I, do Código Tributário Nacional, dispõe que somente a lei pode estabelecer a extinção de tributos.
          A própria Constituição Federal, art. 150, § 6º, determina que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de anistia ou remissão, relativo a impostos, taxas ou contribuições, só pode ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, “g”.
          A ressalva refere-se exatamente ao regime dos convênios para concessão de benefícios fiscais. Como devemos interpretá-la? Que os benefícios do ICMS, diferentemente dos demais tributos, não está sujeita à reserva legal, mas podem Sr concedidos por decreto do Executivo, desde que autorizado por convênio? O que justificaria semelhante privilégio concedido ao ICMS?
          Pelo contrário, o convênio não dispensa a lei, nem se substitui à lei. O convênio é apenas uma condição para que o benefício seja concedido, mas sempre por ato do legislativo. Essa a interpretação que foi adotada pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 630. 705 MS, relator Min. Dias Toffoli (DJe 028, Pub. 13-2-2013). O acórdão enfatiza a “imprescindibilidade de lei em sentido formal”. O benefício fiscal não pode ser concedido “à margem da participação do Poder Legislativo”. Acrescenta ainda que:
          “Os convênios são autorizações para que o Estado possa implementar um benefício fiscal. Efetivar o beneplácito no ordenamento interno é mera faculdade, e não obrigação. A participação do Poder Legislativo legitima e confirma a intenção do Estado, além de manter hígido o postulado da separação de poderes concebido pelo constituinte originário”.
                Os legislativos estaduais não podem furtar-se ao cumprimento do mandato popular de que se acham investidos: os representantes eleitos do povo devem decidir sobre todas as matérias, inclusive sobre exoneração de tributos. O interesse público assim o exige.

quarta-feira, 8 de maio de 2013


Transporte de bens por não-contribuinte do ICMS: é obrigatória a emissão de documento fiscal?  
          Velocino Pacheco Filho
         
          “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, conforme enunciado do inciso II do art. 5º da Constituição Federal (princípio da legalidade). Esse princípio informa todo o ordenamento jurídico, inclusive o direito tributário.
          Assim, ninguém é obrigado a pagar tributo ou cumprir obrigação acessória senão em virtude de lei. O princípio da legalidade na tributação é confirmado pelo art. 150, I, da Lei Maior que veda às pessoas políticas de direito público interno “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”.
          No caso das obrigações acessórias, admite-se que não é necessária lei em sentido estrito, mas que podem ser instituídas pela legislação tributária, entendida no sentido que lhe dá o art. 99 do Código Tributário Nacional, ou seja, compreendendo decretos e regulamentos.
          Com efeito, dispõe o art. 115 do mesmo diploma normativo que o “fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal”.
          Vejamos um caso prático. O deslocamento físico, entre estabelecimentos de mesma titularidade, de bens móveis (e.g. equipamentos de escritório) por não contribuinte do ICMS (e.g. instituição financeira) é obrigado a ser acompanhado de documento fiscal?
          A propósito, entende-se por mercadoria o bem móvel adquirido para fins de revenda. Por conseguinte, um mesmo bem pode ser mercadoria ou não, conforme o fim a que se destina. Como o ICMS incide apenas sobre operações de circulação de mercadorias, então a situação descrita acima não constitui hipótese de incidência desse imposto.
          Ainda assim, o transporte dos equipamentos de escritório de um para outro estabelecimento da instituição financeira pode ser obrigado a estar acompanhado de documento fiscal, desde que a legislação tributária assim o exija.
          Conforme disposição do parágrafo único do art. 194 do CTN, a legislação tributária que trata da competência e dos poderes das autoridades administrativas aplica-se inclusive aos não-contribuintes. A legislação tributária pode exigir a emissão de documento fiscal, ainda que se trate de não-contribuinte do imposto e que o bem transportado não se caracterize como mercadoria.
          Esse entendimento foi corroborado pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça – que reúne as turmas de direito público – no julgamento do Recurso Especial 1.116.792 PB, como representativo de controvérsia, tendo como Relator o Min. Luiz Fux:
          Entendeu o tribunal que o “ente federado legiferante pode instituir dever instrumental .... ainda que o sujeito passivo da aludida ‘obrigação acessória’ não seja contribuinte do tributo ... desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ínsitos no ordenamento jurídico”. Isto por que os “deveres instrumentais, previstos na legislação tributária, ostentam caráter autônomo em relação à regra matriz de incidência do tributo”, devendo ser cumpridos “até mesmo por não contribuintes, desde que constituam instrumento relevante para o pleno exercício do poder-dever fiscalizador da Administração Pública Tributária, assecuratório do interesse público na arrecadação”.
          No caso dos autos, revelou-se incontroverso, mediante norma inserta no Regulamento do ICMS, que o Estado-membro envolvido “instituiu o dever instrumental consistente na exigência de nota fiscal para circulação de bens do ativo imobilizado e de material de uso e consumo entre estabelecimentos de uma mesma instituição financeira”.
          Mas, se não houver norma expressa exigindo o porte de documento fiscal por não-contribuinte, estará este obrigado a portá-la?  Pelo princípio da legalidade, ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O não-contribuinte estará obrigado à emissão de documento fiscal se, e somente se, a legislação tributária o exigir expressamente.
          Ora, suponhamos que o Estado-membro, titular da competência para exigir o ICMS, tenha instituído “nota fiscal avulsa eletrônica” que poderia servir para documentar o transporte de bens por não-contribuinte. Pode-se dizer que “implicitamente” está instituída a obrigação acessória de portar o referido documento?
          Obrigação tributária não se deduz. Ou a lei quis e disse ou não quis e guardou silêncio. Não existe obrigação tributária implícita.
          A legislação tributária pode, de fato, exigir que o não-contribuinte faça acompanhar o transporte de documento fiscal. Contudo, se a legislação for silente a esse respeito, não se pode exigir do não-contribuinte a emissão de documento fiscal. Ninguém está obrigado a cumprir obrigação não prevista na legislação.
          Nessa hipótese, seria insubsistente o ato administrativo de imposição de multa pelo transporte de bens desacompanhados de documento fiscal. Ninguém pode ser punido quando a conduta em questão (emitir documento fiscal) não é obrigatória.

segunda-feira, 6 de maio de 2013


ICMS: saldo credor e saldo credor acumulado  
          Velocino Pacheco Filho
         
          O crédito do ICMS corresponde à operacionalização do princípio da não-cumulatividade do imposto (CF, art. 155, § 2º, I), ou seja, trata-se de ICMS que onerou a mesma mercadoria (ou os insumos utilizados em sua fabricação) em etapas anteriores do seu ciclo de comercialização. Esse crédito cumpre “exclusivamente” a função de compensar o imposto devido em cada operação de circulação de mercadorias.
          Estamos tratando de operações de circulação de mercadorias, mas o mesmo se aplica às prestações de serviço de transporte e de comunicação, tributados pelo ICMS.
          Trata-se de um crédito especificamente vocacionado para a compensação do ICMS devido. Portanto, quando não há ICMS a compensar, o “crédito” perde sua razão de ser e deve ser estornado. É o que dispõe o inciso II, “a” do dispositivo citado: “a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes”.
          Assim, não havendo imposto a compensar na operação seguinte e a legislação for silente a respeito, o crédito correspondente deve ser estornado. Para que o crédito seja mantido, é necessário que a legislação tributária o diga expressamente.
          É o que ocorre nas exportações para o exterior do País: conforme CF, art. 155, § 2º, X, “a”, o ICMS não incide sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, “assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”.
          Então, no caso da mercadoria ser exportada, não só não incide o ICMS, como também o crédito correspondente (que onerou a entrada da mercadoria) poderá ser mantido e a Constituição assegura que seja “aproveitado”. O objetivo é reduzir o custo da exportação, tornando a mercadoria mais competitiva no mercado internacional, mediante uma completa desoneração do ICMS, não só o que incidiria na exportação, mas também o que onerou a mercadoria em operações anteriores (permitindo a manutenção do crédito). Mas, para que a medida seja eficaz, não basta assegurar a manutenção do crédito: é preciso que seja “aproveitado”, compensando o ICMS relativo a outras saídas tributadas.
          Se o contribuinte não tiver outros débitos a serem compensados, deve ser assegurada a sua transferência a outros contribuintes que tenham débitos do imposto, conforme art. 25, § 1º, II, da Lei Complementar 87/1996, “mediante emissão, pela autoridade competente de documento que reconheça o crédito”.
          Esse é o “crédito acumulado” de que fala a legislação e que pode ser transferido a terceiros (com ou sem deságio, conforme acordarem as partes). Com efeito, o § 2º do art. 31 da Lei 10.297/1996 define crédito acumulado, para fins de transferência, “os saldos credores decorrentes de manutenção expressamente autorizada de créditos fiscais relativos a operações ou prestações subseqüentes isentas ou não tributadas” – a Lei 14.605/2008 ampliou o tratamento para abranger também as hipóteses de diferimento do imposto para etapa posterior de circulação da mercadoria.
          A manutenção do crédito é da natureza do diferimento – há incidência do imposto, mas o recolhimento é postergado para operação subseqüente. A regra, no caso, aplica-se à transferência do crédito.
          A simples ocorrência de saldo credor, porque as entradas foram superiores às saídas e não por causa de disposição legislativa que permite a manutenção de créditos, sem a qual deveriam ser estornados, não autoriza a transferência de créditos para terceiros ou mesmo para outro estabelecimento do contribuinte.
          É o que acontece quando o contribuinte está fazendo estoques, como no comércio de confecções quando termina uma estação. Promove-se uma liquidação em que os saldos de mercadorias são vendidos abaixo do custo, para dar lugar às novas coleções. Para fins de transferência a terceiros, não se considera como “saldo credor acumulado”.
          São coisas distintas: saldo credor, crédito acumulado (devido a expressa manutenção de crédito que sem ela deveria ser estornado) e transferência de créditos. Assim, podemos ter crédito acumulado, mas não ser permitida a sua transferência. Apenas no caso da exportação para o exterior, à manutenção de crédito deve seguir a autorização para sua transferência a terceiros, por expressa disposição constitucional. Em todos os demais casos, depende de previsão expressa na legislação infraconstitucional.