DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Os benefícios fiscais e o financiamento do Estado

Velocino Pacheco Filho

Um dois mais graves problemas com que se defronta o Estado moderno é o do financiamento do setor público. O Estado Democrático de Direito é fundamentalmente um Estado Fiscal, no sentido de ser financiado basicamente com receitas tributárias (a contribuição de todos, na medida da capacidade contributiva de cada um). No antigo regime, o Estado era financiado pelas rendas patrimoniais do príncipe; nas modernas democracias, o financiamento do Estado é um dever da cidadania.

Mas as receitas tributárias podem se revelar insuficientes para custear o setor público que se defronta com demandas sociais cada vez maiores e com a participação crescente dos direitos fundamentais no constitucionalismo moderno. Os direitos ditos de primeira geração – fruto da ideologia liberal – exigiam uma atitude omissiva do Estado. Mas, os direitos de segunda (direitos sociais), terceira (difusos e intersubjetivos) e quarta geração (relativos à democracia participativa), pedem ações do Estado que representam custos a serem cobertos pelos tributos. 

No caso de insuficiência de recursos, o Estado pode aumentar impostos ou cortar despesas (o que, de modo geral, recai sobre os programas sociais). São somente essas as alternativas?

Um caminho, é a busca da excelência na administração pública. O artigo 37 da Constituição da República consagra a “eficiência” como um dos princípios que informam a Administração Pública. Assim, o Estado tem o dever de ser eficiente. A ineficiência e o desperdício representam custos que terão de ser suportados por toda população, mediante pagamento de tributos. O tributo, como contribuição de todos para o custeio do Estado, não pode financiar a ineficiência ou o desperdício. Ser eficiente não é opção, é obrigação.

Outro caminho que a Administração tem se recusado a trilhar, é a revisão dos benefícios fiscais. Se todos são iguais perante a lei e o pagamento de tributos é um dever da cidadania, o que justifica que alguns sejam dispensados desse dever? O art. 150, II, da Constituição, veda instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Isto significa que todos devem ser atingidos igualmente pela tributação. O privilégio fiscal, dado a uns e negados à grande maioria é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Diante de um benefício fiscal, devemos perguntar: o que justifica esse tratamento privilegiado? Pode ser o próprio conceito de isonomia tributária: os contribuintes não estão em situação equivalente. Deve existir um traço desigualador que justifique a diferença de tratamento. Os fracos, os idosos, as crianças, os doentes merecem a proteção e o cuidado da sociedade. A dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) justifica, por exemplo, a isenção do mínimo vital. 

Por outro lado, não faz sentido tributar instituições sem fins lucrativos que atuam na educação, assistência social ou na saúde. Tais instituições colaboram com o Estado para a realização do bem comum.

A garantia do desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II) justifica o tratamento diferenciado e favorecido dispensado à microempresa e à empresa de pequeno porte. Também pode justificar esse tratamento, a busca do pleno emprego (CF, art. 170, VIII), considerando o potencial das pequenas empresas em absorver mão-de-obra.

O que não pode ser tolerado é o privilégio odioso, que beneficia apenas alguns, em detrimento da grande maioria. Ou dito de outra forma, o benefício dado aos poucos privilegiados supera em muito o eventual benefício social. É o caso do tratamento tributário mais benéfico dado a uma empresa, sob o pretexto de geração de emprego e renda. Contudo, o benefício não será justificado se o lucro proporcionado pelo empreendimento incentivado for muito maior que o trabalho e a renda gerados.

A lei tributária que institui isenções, reduções de base de cálculo, crédito presumido ou qualquer outra forma de tratamento desigual entre os contribuintes somente poderia ser admitida no ordenamento jurídico se tiver por fundamento algum valor prestigiado pela constituição que o justifique. Essa é uma diretriz que deve ser adotada pelo Legislativo, pela Administração Tributária e pelo Judiciário. 

Para ficar apenas em aspectos formais, se apenas fossem revogados os benefícios fiscais do ICMS, sem autorização por convênio, celebrado conforme art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal, já sobrariam recursos para implementar as políticas sociais. Por exemplo, o que justifica o art. 12, II, da Lei 10.297/1996, de Santa Catarina, que exclui da base de cálculo do ICMS “os acréscimos financeiros cobrados nas vendas a prazo a consumidor final”?

No caso de venda com intermediação financeira, o vendedor recebe de imediato o preço a vista, enquanto o acréscimo financeiro será onerado por outro imposto, de competência da União, sobre operações financeiras (IOF). Na verdade, são celebrados dois contratos simultaneamente, um de compra e venda e outro de financiamento. Mas, no caso de venda a prazo, bancada pelo próprio comerciante, a base de cálculo do ICMS deve ser o preço total cobrado do consumidor, inclusive o acréscimo financeiro, conforme remansosa jurisprudência do STJ. O dispositivo da legislação catarinense não passa de benefício fiscal não autorizado por convênio (i. e. inconstitucional), concebido para proteger certas empresas de concorrentes melhor organizados. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

ELEMENTOS PARA UMA ALTERIDADE DO PODER FISCAL DO ESTADO

por Fabiano Ramalho

Que vivemos em tempos difíceis, já não é novidade para ninguém. Na verdade, a noção de crise parece mesmo estar se confundindo com a normalidade da vida cotidiana. Para muitos, esse fenômeno caracteriza o esgotamento do modelo capitalista de produção, que, com uma velocidade maior do que nunca, necessita se redefinir constantemente para não definhar, ou seja, sob o império do princípio da "inovação constante" ou radical, como defendida, há cerca de um século, pelo economista Joseph A. Schumpeter. Para outros, no entanto, a crise nada mais é do que a imensa incapacidade de reciclar o “lixo” político, social e econômico produzido pela sociedade dita pós-moderna, cujo descarte tem se apresentado como um dilema de difícil solução.

Eu gostaria de desenvolver um pouco essa segunda concepção de crise e transportá-la para o eixo do Direito e, especialmente, do Direito Tributário, para que possamos refletir um pouco sobre as contradições atuais desse majestoso e tradicional ramo do Direito. Quando estudamos os fundamentos de uma sociologia do Poder Fiscal percebemos que o que empresta legitimidade ao imposto é a crença que os contribuintes possuem quanto à sua necessidade e justiça. Quanto maior essa crença, mais legítimo será o imposto. Em outras palavras, o imposto é legítimo, do ponto de vista sociológico, se o contribuinte puder enxergar nele uma relação direta com as necessidades do Estado e, mais além, se a sua proporcionalidade atende aos anseios daquilo que podemos chamar de justiça fiscal ou de imposto justo.

Ora, não é difícil de perceber que, tradicionalmente, temos, então, no Direito Tributário, assim como em qualquer ramo do Direito, uma determinada moral, traduzida por valores que lhe outorgam validade e eficácia, balizada por uma ética mais ou menos robusta, que, em última análise, lhe outorga uma certa sustentabilidade moral. Estamos falando, portanto, de um campo das ciências humanas que costumeiramente valora condutas segundo um certo juízo moral vigente, o qual tende ou tendia a se perpetuar, como forma de estabilizador das relações sociais.

Ocorre que, no mundo contemporâneo, com a derrocada do pensamento moderno e, consequentemente, com o surgimento da visão pós-moderna de mundo, esses paradigmas começaram a se transformar progressivamente, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, quando começaram a desmoronar os modelos científicos e racionais de sociedade. A pós-modernidade, como todos sabem, prega como valor fundamental a liberdade dos indivíduos, “libertando-os” do ônus de qualquer valor moral que possa servir de âncora e contrapeso nas relações sociais, políticas e, principalmente, econômicas, como forma de reagir ao fracasso das certezas e da racionalidade do mundo moderno sucumbente. É de tal forma poderoso esse locus de assepsia do dever moral que importa agora tão somente despir-se de qualquer princípio rígido de conduta para “vestir” a moral mais apropriada para cada ocasião. É o que muitos chamam de “moral à la carte” ou, como prefere Zygmunt Bauman, “moral líquida”.

Agora temos, então, o homem pós-moderno, ou mais especificamente para o nosso estudo, o contribuinte pós-moderno, que, com sua moral de cabide, começa a permear as infraestruturas e superestruturas sociais com esse “novo jeito de ser”, ao ponto de desenvolver um verdadeiro organismo social antipático aos valores tradicionais. Isso não demorou muito para começar a se traduzir em normas legais, desfigurando nosso ordenamento jurídico de matriz Kelseniana para alguma coisa que gravita o universo de Nietzsche.

Não vamos aqui aprofundar o debate sobre essa nova sociedade que se formou com os fundamentos da visão de mundo pós-moderna, para não fugir do foco da questão fiscal. Mas espero que eu esteja conseguindo contextualizar um cenário social que se reflete no Direito e o transforma de uma forma particularmente paradoxal, pois que tenta retirar dele, se não todo, pelo menos uma parte do seu sistema de valores.

Desde então, em matéria de Direito Tributário, temos encontrado cada vez mais dificuldade de solucionar dilemas relacionados com a legitimidade sociológica do Poder Fiscal, com suas bases morais relacionadas com os juízos de necessidade e justiça. Isso porque, num Direito Tributário Pós-Moderno, esses valores já não são mais tão importantes e tendem mesmo a desaparecer. Na medida em que o cidadão pós-moderno se transforma, pouco a pouco, num modelo minimalista de si mesmo, vivendo de aparências ou, o que dá no mesmo, de metaparadigmas forjados a todo instante pelas Leis do Mercado (únicas que não saem de moda), esse Direito passa a não se comportar fundamentalmente como um sistema de moral, embora ainda o seja, mas, sim, como instrumento de garantia de liberdades extremas. Uma espécie de sistema virtual de moralidade, de moralidade líquida, de moralidade à la carte, que muitas vezes se rege por condutas negativas do tipo “é proibido proibir”.

O mais irônico é que esse “modus operandi” do Direito acaba desembocando nas velhas concepções de moral e da ética, reinventando um consequencialismo jurídico perverso, ainda que disfarçado com outros nomes e rótulos. Ou seja, tudo se justifica se o resultado final for aquele que era esperado. Essa é a verdadeira natureza do homo post-modernus, pois, para ele, se for para alcançar a máxima liberdade, os fins justificam os meios. O problema é que nem ele sabe qual é esse fim e, no fundo, pouco se importa se é legítimo, pois, logo mais, alguém inventará um novo "fim", uma nova meta, um novo padrão, uma inovação, descartando a aventura anterior sem que houvesse chance de reagir à mesma.

 O perigo dessa forma de ser é que a sociedade moderna passa a fundir a moral com as leis de mercado, ao ponto de transformá-la do seu estado sólido de outrora para o estado líquido de agora, a fim de que ela se adapte aos nossos anseios de liberdade máxima. É a subversão do utilitarismo de Bentham, para criar como meta-axioma pós-moderno a “liberdade máxima para o maior número de indivíduos”, mas só que sem um conteúdo perene e efetivo. Ou seja, pouco importa o conceito e a efetividade dessa liberdade. Basta que, em determinado momento, ela seja desejada ou aparente existir. E, se é desejado, vale tudo para alcança-lo, mesmo que logo após já não interesse mais e seja necessário descartá-lo rapidamente.

Ora, se os fins justificam os meios, então pouco importa para o Direito Tributário ser justo aos olhos dos contribuintes. Basta que o Tributo seja instituído e majorado, nem sempre por meio do devido processo legislativo, para que seja exigido. E se, futuramente, após longa e penosa batalha judicial, onde o contribuinte consiga, enfim, demonstrar e inconstitucionalidade de determinada exigência fiscal, a Corte Constitucional "modula" os efeitos da decisão e determina que tudo o que foi exigido indevidamente pelo Estado até então, de forma contrária à Constituição, não pode ser restituído, valendo a decisão apenas para o futuro.

Com isso, mudamos a Constituição, suprimimos princípios fundamentais do nosso ordenamento, excepcionamos a segurança jurídica, relativizamos direitos e garantias consagrados e excomungamos, enfim, ao bel prazer de um Estado pragmático pós-moderno, todo e qualquer obstáculo à plena fruição de pseudo-valores que possam redefinir o Direito a todo instante, sempre que as condições de mercado e as conjunturas da “crise” assim o exigirem, sem o receio de ver declarada a nulidade com efeitos ex nunc pelo nosso sistema de controle de constitucionalidade.

E, nessa visão deturpada do Direito, é forjado o nosso Direito Tributário, que vai arrecadar não importa a que custo, não importa sobre quais direitos e garantias, não importa sobre que legitimidade, não importa sobre qual moral. O importante é arrecadar, transformando o Poder Fiscal em uma mera máquina arrecadatória. Negam-se direitos, marginaliza-se o planejamento tributário, pois, do contrário, impactaria na arrecadação, pouco importa se tais práticas caracterizam aumento disfarçado de tributos ou violação dos direitos e garantias do contribuinte. Vemos, por exemplo, a arbitrária criminalização do contribuinte do ICMS, quando deixa de recolher o tributo, embora o tenha declarado conforme a lei. De nada importa o fato da Constituição Federal determinar que não haverá prisão por dívida em casos tais, pois basta uma "interpretação" do fiscal, do Ministério Público ou mesmo do juiz, para permitir condenar à prisão o empresário inadimplente com o Fisco.

A meta é ser pragmático, e, nesse sentido, pouco importam os direitos de outrora e os princípios constitucionais que lhes dão forma, pois eles que se fluidifiquem, que se tornem líquidos e, assim, que se adequem às Medidas Provisórias e Decretos do Direito Tributário Pós-Moderno. E o pior é que nós, operadores do direito, passamos a nos conformar com essa visão e, muitas, vezes, adotamos um certo ar passivo diante dessas atrocidades jurídicas. Um certo casuísmo imediatizante nas contendas jurídico-tributárias em que atuamos, aceitando as maldades tributárias, os malfeitos da legislação, as arbitrariedades da administração fiscal, como um fato normal ou, quando muito, um fato contra o qual de nada adiante se opor.

O descaso com as instâncias sociais de debate e a vontade popular em matéria de tributação parece ser a tônica do momento. Os espaços éticos começam a virar campanhas de publicidade enganosa, como se fosse um selo autenticador de qualidade governamental, que, no fundo, é só aparência. Falar em planejamento tributário, nos dias atuais, deslocou-se do campo jurídico para o político, criando um clima de "caça às bruxas" quando o contribuinte busca otimizar o custo tributário de seus negócios. Muitas entidades representativas do setor produtivo passaram a estruturar verdadeiros comitês de negociação política, buscando os favores estatais de forma isolada, quando bastariam as garantias constitucionais para a fruição do benefício fiscal pretendido..

As soluções desses dilemas não são fáceis, mas certamente passam pelo aprimoramento do debate ético e sociológico em busca das respostas adequadas, especialmente para obtermos uma versão mais atualizado do conceito de Estado, de sociedade e de justiça fiscal. O que é certo é preciso recuperar a nossa modernidade. Temos, urgentemente, que resgatar uma racionalidade perdida nos fluxos do capital e do consumo; uma moral sólida e digna, que substitua aquela empenhada a juros extorsivos pela pós-modernidade, e que nos mantém reféns de um Estado injusto e paradoxal, cujo reflexo, na área Tributária, é o descolamento da carga tributária do retorno social esperado, gerando, assim, uma enorme injustiça fiscal.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

ICM ou ICMS?


Velocino Pacheco Filho

ICM e ICMS são impostos distintos ou um está compreendido no outro? Em outras palavras, justifica-se as referências na legislação ao “ICM e ICMS”, como se disposições sobre o ICMS não se aplicassem ao ICM (ainda em discussão ou em processo de execução).

O art. 23, II, da Constituição do Brasil de 1967, na redação dada pela Emenda Constitucional 1/69, dava competência aos Estados para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais ou comerciantes”.

Já a Constituição de 1988, art. 155, II, deu aos Estados competência para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”.

Com a extinção dos impostos únicos sobre combustíveis, lubrificantes e energia elétrica (art. 21, VIII, da CF/69) e sobre minerais (inciso IX), as operações de circulação dessas mercadorias passaram a ser tributadas pelo ICMS. No caso da tributação da energia elétrica, foi equiparada a coisa móvel pelo § 3º do art. 155 do Código Penal, a fim de ficar caracterizado como furto (“subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel”), o desvio de energia elétrica. Ora, entende-se por “mercadoria” a coisa móvel adquirida para revenda. Então, o fornecimento de energia elétrica caracteriza-se como operação de circulação de mercadoria e, portanto, sofre a incidência do ICMS.

Portanto, o ICMS nada mais é que o ICM acrescido dos serviços de transporte e comunicação. Em outros termos, o ICM está contido no ICMS. Assim, disposições relativas ao ICMS atingem também o ICM, já que “a natureza específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação” (CTN, art. 4º). Em síntese, a referência, na legislação, ao “ICMS e ao ICMS” é desnecessária e redundante.

Esse entendimento também é o do Supremo Tribunal Federal: no julgamento do Recurso Extraordinário 149.922 SP, o Tribunal Pleno entendeu que a competência deferida aos Estados pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), art. 34, § 8º, estava restrita às novas hipóteses de incidência acrescidas pela Constituição Federal de 1988. 

Diz o dispositivo referido que: “Se no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, b, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regulamentar provisoriamente a matéria”.

Cabe indagar, nesse ponto, em que momento se constitui a norma jurídica: quando o legislador edita o texto normativo ou quando ela é aplicada ao caso concreto? João Maurício Adeodato (Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica, 2011, p. 223), com espeque em doutrina de Fridrich Müller, sustenta que “só na norma decisória é que efetivamente se constituía norma jurídica”. Conforme esse autor:

O âmbito da norma se compõe dos fatos que, diante de um caso a ser resolvido e dos textos normativos a ele correspondentes, à luz de toda experiência jurídica acumulada, precisam ser considerados e não podem ser aleatoriamente escolhidos.

Já Miguel Reale (O Direito como Experiência, 1992, p. 31) ensina que a experiência jurídica “é antes a compreensão do ‘direito in acto’, como efetividade de participação e de comportamentos, sendo, pois, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, a concreta correspondência das formas de juridicidade ao sentir e querer, ou às valorações da comunidade”. Assim, “deve ser interpretado como real processo de aferição dos fatos em suas conexões objetivas de sentido”.

O sentido da norma, pois, será definido, entre a pluralidade de sentidos possíveis, pelo intérprete-aplicador da norma. Em nosso sistema jurídico, as decisões de órgão superiores são revistas, em um processo escalonado de eliminação de significados, até que, em matéria constitucional, a palavra final pertence ao Supremo Tribunal Federal.


Ora, os Estados celebraram o Convênio ICM 66/1988, conforme o rito previsto na Lei Complementar 24/1975, que dispôs sobre o tributo em sua totalidade, mesmo sobre o que correspondia estritamente ao fato gerador do ICM. A matéria foi submetida ao STF (Pleno, RE 149.922 SP, rel. Min. Ilmar Galvão, 1994) que decidiu o seguinte:

A competência delegada aos Estados, no art. 34, § 8º, do ADCT, para fixação por convênio, de normas destinadas a regular provisoriamente o ICMS, limita-se pela existência de lacunas na legislação. Se a base de cálculo em referência já se achava disciplinada pelo art. 2º, § 8º, do Decreto-lei 406/68, recepcionada pela nova carta com caráter de lei complementar, até então exibido (art. 34, § 5º do ADCT), não havia lugar para a nova definição que lhe deu o Convênio ICM 66/88 (art. 11), verificando-se, no ponto indicado, ultrapassagem do linde cravado pela norma transitória e consequente invasão do princípio constitucional da legalidade tributária.

Mais recentemente (2012), a Segunda Turma reiterou o entendimento do Tribunal, no julgamento do RE 488.448 RJ, rel. Min.  J. Barbosa:

Segundo o art. 34, §§ 5º e 8º do ADCT, os Estados e o Distrito Federal somente poderiam criar as normas gerais de transição estritamente necessárias para instituição do novo tributo, resultado da agregação dos serviços de comunicação e de transporte á circulação de mercadorias (ICM-S). Como as normas relativas à instituição do imposto relativo à circulação de mercadorias foram recepcionadas pela Constituição (DL 406/1968), o convênio 66/1988 não poderia modifica-las nem revogá-las.

O STF, nesses julgamentos, deixou claro que o ICMS não é um tributo totalmente distinto do ICM, mas compreende o ICM e as novas hipóteses de prestação de serviço de transporte e de comunicação. Por isso que a competência deferida aos Estados para legislar provisoriamente sobre normas gerais, mediante convênio, conforme ADCT, art. 34, restringiu-se às novas hipóteses de incidência, não podendo versar sobre operações de circulação de mercadorias, matéria sobre a qual permaneciam as disposições do Decreto-lei 406/1968. Somente lei complementar – e convênio não é lei, menos ainda lei complementar – poderia tratar o imposto integralmente, o que só veio a ocorrer com a edição da Lei Complementar 87/1996.

Portanto, não há sentido em distinguir entre ICM e ICMS, para fins de aplicação da legislação. As disposições relativas ao ICMS aplicam-se também ao ICM, já que este está contido naquele.       

terça-feira, 8 de setembro de 2015

SEMINÁRIO DA CET/SC: PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

No dia 29 de setembro de 2015, ás 19 horas no auditório da FIESC (Rod. Admar Gonzaga, 2765, Itacorubi, Florianópolis-SC), a Câmara de Ética Tributária do Estado de Santa Catarina (CET/SC) realizará mais uma edição do seu já consagrado seminário.
 
Nesta 3ª edição, o assunto será "Planejamento Tributário". O evento, que é voltado para empresários e profissionais da área jurídica, visa elucidar o que os tribunais judiciais e administrativos vêm decidindo acerca do planejamento tributário realizado pelas empresas, a fim de nortear a atuação dos empresários e evitar autuações fiscais.
 
As inscrições são gratuitas e podem ser realizadas nas formas indicadas no flyer abaixo. O evento contará com a participação dos autores do Blog DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE, Velocino Pacheco Filho e Fabiano Ramalho, o primeiro como um dos palestrantes e o segundo como representante da OAB/SC na Câmara de  Ética Tributária do Estado de Santa Catarina. Não deixem de participar!
 
 

domingo, 6 de setembro de 2015

A LEGITIMIDADE SOCIOLÓGICA DO PODER FISCAL

Fabiano Ramalho 

Sabemos que a legitimidade jurídica do imposto decorre de sua conformidade com ordenamento jurídico, especialmente com os princípios e regras jurídicas que norteiam a sua criação. Mas, além da legitimidade jurídica, o imposto precisa de uma legitimidade sociológica para alcançar sua plena eficácia. Vale dizer que a legitimidade jurídica do imposto repousa na sua legitimidade sociológica.

O imposto legítimo, do ponto de vista sociológico, é aquele que parece justo e necessário para o contribuinte. E ele vai parecer necessário na medida em que servir para fazer face às despesas do Estado, sendo que a preocupação, nesse caso, está em encontrar o tipo adequado de imposto a ser instituído, aqui incluída a reflexão sobre quais contribuintes deverão suportá-lo e em que medida. Para o contribuinte, necessário é imposto que é suficiente para a satisfação dessas despesas, e nada mais do que isso.

A grande dificuldade nesse ponto é definir o que é necessário e suficiente. Parece evidente que a definição desses conceitos deve passar pelas análises de eficiência e probidade administrativa, austeridade e responsabilidade econômica e fiscal, moralidade pública, etc. Conjugando todos esses fatores, teremos mais chance de acertar o que é efetivamente necessário e suficiente em termos de imposição tributária, na visão do contribuinte.

Mas tanto a necessidade quanto a suficiência, nessa versão qualificada, terão que adequar-se, ainda, a um limite lógico de imposição. Nesse sentido, é válida a fórmula encontrada na Curva de Laffer[1], que demonstra o tamanho máximo da carga tributária que o estado pode dispor para alcançar o máximo de receita possível. Parece lógico que a totalidade das despesas estatais tem que caber nesse limite máximo de receita tributária. Qualquer desajuste nessa fórmula acarretará ou numa arrecadação subdimensionada ou numa arrecadação sobredimensionada, sendo que, nesse último caso, teremos, muito além da diminuição da procura (no balanço da oferta e procura), do consumo e da poupança, a perda da legitimidade sociológica do imposto.



Perceba que nessa discussão sobre a necessidade do imposto, estamos definindo o contorno do próprio modelo de Estado que queremos (liberal, patrimonialista, social-democrata, etc.), pois o discurso daí resultante servirá como ideologia hegemônica para a justificação da atuação estatal e do poder político.

Talvez por isso é que, do ponto de vista da justiça fiscal, seja mais difícil de conceber o imposto ideal, já que não é possível estabelecer um consenso unitário sobre o modelo ideal de Estado e sua forma de atuação e organização. Talvez a melhor noção de justiça fiscal seja aquela que se apega majoritariamente ao princípio da igualdade fiscal, ou seja, a capacidade do sistema jurídico-tributário de tratar igualmente contribuintes que se encontrem em situações equivalentes.

Nessa concepção, os impostos ditos indiretos, como aqueles que incidem sobre o consumo, seriam os que possuem uma aritmética mais confortável para demonstrar essa justiça, pois incidem na exata medida em que o contribuinte consome, modelo que comumente denominamos de justiça distributiva. Thomas Hobbes já dizia, no seu Léviathan, que “quando os impostos são assentados sobre aquilo que as pessoas consomem, cada um paga igualmente por aquilo que usa e a República não se frustra pelo desperdício de certos particulares”. Afinal, Hobbes se perguntava “por qual razão aquele que trabalha muito e que, poupando os frutos do seu trabalho, consome pouco, sofreria ele maior imposição do que aquele que, vivendo sem fazer nada, tem poucos rendimentos e os gasta integralmente?[2]   

Mas a igualdade fiscal comporta ainda os impostos ditos diretos, como aqueles que incidem sobre a renda e o patrimônio. Aqui cada um contribui de forma proporcional ao seu status social, segundo a riqueza que ostenta. Quanto maior essa riqueza, maior será a imposição fiscal, o que se alcança por meio da aplicação de alíquotas progressivas, modelo que comumente denominados de justiça distributiva.

Não é difícil de perceber que essa forma de estabelecer a igualdade, e, portanto, a justiça fiscal, apresenta enormes dificuldades, estando não raras vezes vinculada às lutas de classes e à própria ideologia política reinante, pois traz para o universo tributário elementos de uma justiça social determinada, que não é necessariamente unânime entre os contribuintes.

É por isso que, como sugerimos acima, a legitimidade sociológica do imposto depende e condiciona a legitimidade do poder político vigente, assumindo, em certo aspecto, a função de instrumento de dominação social pelo controle da distribuição das riquezas.

Perceba que o debate não é simples, principalmente se levarmos em consideração que o mesmo Estado que estabelece o modelo de tributação que se espera legítimo, não é, ele mesmo, capaz de estabelecer um conjunto de princípios legítimos para o exercício do poder político. Ou seja, a legitimidade sociológica do imposto será maior ou menor, segundo a ética política reinante.

Mas, pressupondo um Estado legítimo e eficiente no desenvolvimento de princípios hegemônicos, nossa preocupação ficaria, portanto, restrita ao aprimoramento da justiça fiscal. É nesse aspecto que surge com maior relevância a necessidade de manter amplos e permanentes espaços de debate, onde seja possível compartilhar as diferentes noções de justiça presentes nos mais distintos grupos de contribuintes, a fim de dotar de dinâmica e movimento a questão da legitimidade do imposto. Afinal, Direito, Estado e Sociedade são conceitos vivos, que estão em constante mudança, sobretudo no nosso mundo globalizado.

Mais do que isso, é preciso dar efetividade às soluções que são encontradas nesses espaços, traduzindo-as em normas jurídicas que aperfeiçoem, por assim dizer, a imposição tributária. Ou seja, a legitimidade sociológica do imposto será maior ou menor, segundo a ética tributária reinante.

Eu poderia continuar desenvolvendo esses argumentos, mas eu espero que a essa altura você já tenha percebido que a questão da justiça tributária e, consequentemente, da legitimidade sociológica do imposto é complexa e está intimamente relacionada com os valores políticos, jurídicos e sociais vigentes. A sua equalização e parametrização com base nesses valores é condição essencial para o aperfeiçoamento e validade do poder fiscal e, por extensão, do próprio Estado e da Sociedade.

E, talvez, a melhor forma de garantir que essa tarefa seja bem sucedida seja dotar de eficácia e efetividade os fóruns de debate multissetoriais que têm por finalidade o desenvolvimento e o aprimoramento da ética tributária. Não há imposto justo que sobreviva à falta de uma ética tributária consistente, o que nos leva a crer que a razão da legitimidade sociológica do imposto é diretamente proporcional à qualidade da ética tributária.






[1] LAFFER, Arthur Betz. The Ellipse: An Explication of the Laffer Curve in a Two-Factor Model, Sydney: Grenwood Press, 1986.
[2] HOBBES, Thomas. Léviathan, Paris: Sirey, 1971.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Inteligência do § 6º do art. 150 da Constituição

Velocino Pacheco Filho

Dispõe a Constituição Federal, art. 150, § 6º que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a tributos somente pode ser concedido mediante lei específica, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g.

O dispositivo referido atribui à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

A regra do § 6º coloca as exonerações tributárias sob reserva de lei. Porém, no que se refere ao ICMS, a exigência de lei não deve prejudicar o disposto no art. 155, § 2º, XII, g, ou seja, a necessidade de convênio celebrado no âmbito do Confaz, nos termos da Lei Complementar 24/1975. Temos duas interpretações possíveis:

a) o convênio supre a necessidade de lei – interpretação adotada pelos Estados – caso em que os convênios podem ser implementados por decreto na legislação de cada Estado;

b) o convênio seria uma condição para os Estados concederem – por lei – exoneração do tributo, expressando a concordância das demais unidades da Federação.

Nesse último caso, o convênio apenas autoriza a concessão do benefício fiscal, mas não prescinde de lei para implementá-lo na legislação de cada Estado. Afinal, porque apenas o ICMS não estaria sujeito à reserva legal? Enquanto para todos os outros tributos é exigida lei, o ICMS dependeria apenas de convênio?

Por outro lado, porque seria exigido convênio autorizando a exoneração apenas para o ICMS? Essa é fácil! As exonerações em matéria de ICMS – por ser tributo não cumulativo – pode afetar a arrecadação das demais unidades da Federação, razão pela qual o constituinte exige a prévia concordância dos outros Estados e do Distrito Federal.

As exonerações tributárias exigem lei – em sentido formal – porque se trata, o crédito tributário, de coisa pública indisponível. A Administração não pode dispor a seu bel prazer do crédito tributário – vocacionado especialmente ao financiamento do setor público. A destinação do crédito tributário somente pode ser feita por lei (de acordo com o orçamento).


Apenas a lei, em sentido formal, expressa a vontade da maioria, através de seus representantes eleitos. A dispensa de crédito tributário deve ser discutida e votada pelo Legislativo e sancionada e publicada pelo Executivo. Deve haver a participação de ambos os poderes, Legislativo e Executivo.

Já os decretos tem origem apenas no Executivo; não se submetem à discussão e votação pelos representantes do povo – por definição, o titular da soberania. Conforme art. 84, IV, “in fine”, da Constituição, os decretos são expedidos para a fiel execução das leis. Ou seja, não podem ampliar ou restringir o disposto nas leis – apenas dispõe sobre como as leis serão cumpridas. São auxiliares em relação às leis.

Assim sendo, como se poderia admitir que os decretos suprissem a necessidade de leis? Da mesma forma, os convênios Confaz não passam de acordos entre os Executivos dos Estados e o do Distrito Federal. Também não são submetidos ao exame pelos representantes do povo, reunidos em parlamento. Convênio não é lei e não pode suprir a necessidade de lei.

A exigência de lei, no caso das exonerações tributárias, é uma imposição do princípio democrático: “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Mas, a exigência de convênio, no caso de exonerações do ICMS, fundamenta-se no princípio da Federação e na igualdade essencial de todos os Estados e do Distrito Federal. São princípios distintos que devem ser buscados concomitantemente, sem que um prevaleça sobre o outro. Se o art. 1º da Constituição diz que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, devemos entender que a exigência de convênios (em nome do princípio federativo) não afasta, nem pode afastar a exigência de lei em sentido formal (para realizar o princípio democrático).

A concessão de isenções ou de benefícios fiscais, em matéria de ICMS, portanto, depende de prévio convênio autorizativo e também de expedição de lei pelo Estado ou pelo Distrito Federal.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A CÂMARA DE ÉTICA TRIBUTÁRIA

Fabiano Ramalho
 
Nos últimos anos, temos visto o surgimento por todo o país de uma nova entidade no universo do Direito Tributário. Trata-se das Câmaras de Ética Tributária, criadas por Lei, com atribuições específicas em matéria de direitos e deveres dos contribuintes.
Desde então, muita confusão se faz sobre a natureza dessa entidade, resultando, muitas vezes, em perda de efetividade e baixo índice de maturidade do órgão, provocando um lamentável prejuízo ao sistema tributário como um todo, que poderia ter na Câmara de Ética uma ferramenta para o seu desenvolvimento contínuo.
No geral, nos diversos Estados da Federação, os modelos adotados pelas Câmaras de Ética pouco diferem, mantendo sua essência de modo mais ou menos uniforme. Por isso, para esse estudo, vamos tomar como paradigma o modelo adotado pelo legislador catarinense.
Criada pela Lei Complementar n° 313/2005, a Câmara de Ética Tributária do Estado de Santa Catarina veio para compor o assim chamado “Sistema Estadual de Ética Tributária”, para a “defesa das relações tributárias”. Atualmente, a Câmara catarinense é composta por 14 entidades, que representam os mais diversos setores da sociedade, como comércio, indústria, serviços, entidades de classe e setor público.
Dentre as diversas atribuições legais previstas, consta que compete à Câmara de Ética:
I - planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a política estadual de proteção ao contribuinte;
II - receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por contribuintes ou entidades representativas dos contribuintes;
[omissis]
IV - sugerir à Administração Tributária procedimentos e ações tendentes a coibir práticas evasivas.
 
Malgrado o fato de carecer da melhor técnica legislativa, o texto legal aponta com razoável clareza a que se destina a Câmara de Ética, dando os contornos daquilo que se espera seja sua função prática. E aqui destaco o primeiro corte metodológico da nossa análise: a Câmara de Ética nasceu para tratar de questões macro-tributárias e não micro.
Ou seja, não interessa à Câmara advogar em defesa de determinado contribuinte ou de determinado órgão fazendário, mas sim em prol das relações tributárias como um todo. Não lhe interessa o singular, mas sim o plural. Não lhe interessa o litígio individual, mas o coletivo.
Isso já responde a muitos questionamentos que frequentemente são feitos sobre a necessidade (ou desnecessidade) de uma Câmara de Ética para “receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por contribuintes ou entidades representativas dos contribuintes” (art. 50, II), como diz a Lei, se, para isso, já existe o processo administrativo fiscal, com suas instâncias recursais aptas a cumprir esse mister.
Ou ainda, para que a existência de tal instituição com a função de “planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a política estadual de proteção ao contribuinte” (art. 50, I), se já existem os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que cumprem esse papel com mais força do que qualquer outro ente público?
Percebam que existem ainda outros questionamentos que, cada qual, fulminam a idéia de uma Câmara de Ética voltada para os interesses individuais dos sujeitos da relação jurídico tributária. Eis, aqui o principal obstáculo a ser superado pelas Câmaras de Ética espalhadas pelo país, encontrar seu diferencial, segundo a dicção legal, e poder, assim, coexistir com eficácia com os diversos instrumentos e formas de controle fiscal existentes.
Numa visão metafórica, poderíamos dizer que a Câmara de Ética Tributária tangencia cada um desses instrumentos e formas de controle, emprestando-lhes substância na medida em que se propõe ao seu aperfeiçoamento constante.
Donde surge o nosso segundo corte metodológico: a Câmara de Ética não é uma instância de julgamento administrativo das relações tributárias, mas sim de construção e desenvolvimento de procedimentos e princípios aplicáveis às mesmas. É, por assim dizer, um ambiente amplo e representativo de debate, para que possamos encontrar hoje soluções melhores que as de ontem para os nossos problemas em matéria de relações tributárias.
Essa é a função essencial da Câmara de Ética e foi nesse contexto que foi criada. Sem essa correta compreensão de seus operadores e representantes, jamais alcançará seus objetivos, tornando-se inoperante e ineficaz.
A partir de sua larga representatividade, a Câmara reúne as condições necessárias para encontrar novos caminhos para o desenvolvimento e a evolução das relações tributárias, por meio de um amálgama de saberes distintos que são próprios das experiências individuais de cada setor da economia e da sociedade.
E é assim que, quando a lei atribui a competência de “receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por contribuintes ou entidades representativas dos contribuintes”, está, na verdade, autorizando a Câmara de Ética a promover um debate geral sobre o conjunto dessas consultas, denúncias ou sugestões, a fim de investigar e encontrar o ponto convergente comum entre todas elas, como uma forma de conferir-lhe repercussão geral e, a partir daí, formular soluções, nos termos do art.50, I, da LC. 313/2005. Isso é do que se ocupa a Ética Tributária.
Talvez alguém me pergunte: “É possível encontrar uma boa ética tributária?” A resposta, por óbvio, é não. A ética, em si mesma, não é boa nem má. Ela é apenas um caminho, dentro do qual nós pretendemos dar valor ao sistema. Por isso, trago aqui o terceiro e último corte metodológico: Já existe uma ética tributária em nosso sistema, e já existia mesmo antes de qualquer Câmara de Ética ter sido criada. Mas, então, qual a necessidade de se instituir tal Câmara?
A resposta está nas linhas que vimos acima, ou seja, na necessidade de colocar a ética tributária em evidência com o momento presente, de confrontá-la com os valores vigentes, de aferir a sua eficácia diante das necessidades jurídicas atuais, de submetê-la constantemente a um amplo ambiente de debate. É, em suma, afastar-lhe do rigor do tempo e do peso da inércia.
É um trabalho muito mais principiológico do que jurisdicional, revestido de uma espécie de sociologia jurídica que investiga qual o ponto de mutação necessário para a melhoria do sistema tributário; qual a melhor solução para caminharmos rumo a um sistema tributário coeso, justo e eficaz, que seja a justa medida entre a necessidade do Estado em arrecadar e a disposição do contribuinte em pagar.
Assim, estabelecidas as premissas de um correto funcionamento das Câmaras de Ética Tributária, espero ter contribuído para uma melhor compreensão dessa importante instituição jurídica, que veio no contexto de um sistema de proteção das relações tributárias que parece estar muito além do nosso tempo, daí porque a necessidade de um esforço maior para alcançarmos sua real utilidade prática.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

As peculiaridades do diferimento

Velocino Pacheco Filho

Diz-se que o imposto relativo a determinada operação é diferido quando a sua exigibilidade transfere-se para etapa ou etapas posteriores do ciclo de comercialização. O recolhimento do tributo fica a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro (Sacha C. N. Coelho). Nessa última hipótese, o diferimento caracteriza substituição tributária relativa a operações antecedente ou “para trás”.

Porém, se a operação subsequente for promovida pelo mesmo contribuinte (e.g. o contribuinte importa a mercadoria e, em seguida dá saída para o mercado interno) ocorre apenas diferimento, sem caracterizar substituição tributária.

Importante observar que o diferimento não pode resultar em eliminação ou redução do ICMS devido. Apenas o recolhimento do tributo que fica transferido para momento futuro. Trata-se, pois, de “mero adiamento do recolhimento do valor devido, não implicando qualquer dispensa do pagamento do tributo ou outra forma de benefício fiscal” (ADI 2.056/MS, Tribunal Pleno, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe de 17/8/07).

Por não representar exoneração tributária, o diferimento pode ser instituído por decreto (regulamento) e não por lei. Pelo mesmo motivo, não necessita de prévia autorização por convênio.

Contudo, por não ter havido recolhimento de tributo, a mercadoria recebida com diferimento do ICMS não permite apropriação de crédito do imposto. “Não tendo sido pago o tributo quando da aquisição da sucata, o qual foi diferido para incidir sobre o produto já industrializado, não tem o industrial direito ao crédito referente à compra” (STF, RE 94.807-4/SP, 2ª T, j. 19/03/82, LEX 43: 158).

Com efeito, nos termos do art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal, o crédito do ICMS nada mais é senão o imposto que onerou a mesma mercadoria em etapas anteriores do ciclo de comercialização (princípio da não-cumulatividade). Então, na operação subsequente, promovida por quem recebeu a mercadoria com imposto diferido, não há crédito para deduzir do imposto devido. Desse modo, o imposto a recolher resulta simplesmente da aplicação da alíquota sobre o valor da operação, compreendendo tanto o imposto correspondente àquela operação, como o que foi diferido da antecedente. Diz-se que o imposto diferido subsome-se na operação subsequente.
Se a operação subsequente for tributada – não ocorre a subsunção – o contribuinte deve recolher o ICMS que foi diferido.

Ora, suponhamos que o imposto a recolher naquela operação (= aplicação da alíquota sobre o valor respectivo) foi inferior ao imposto diferido na operação anterior. Nesse caso, deve ser recolhida a diferença, sob pena de dispensar parte do tributo correspondente à operação anterior (diferida). Nesse caso, o diferimento transmuda-se em benefício fiscal, sem previsão em lei e sem autorização por convênio.

             

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Taxas estaduais e direito de petição

Velocino Pacheco Filho

O art. 4º da Lei 7.541/1988, de Santa Catarina, define o fato gerador da taxa de serviços gerais como a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, ou o exercício regular de atividades inerentes ao poder de polícia. O § 1º do mesmo artigo diz que os serviços e atividades sujeitas à taxa são os especificados no anexo da Lei.

O referido anexo, item 4, prevê que nas reclamações e recursos ao Tribunal Administrativo Tributário (TAT), a taxa será de 0,5% (meio por cento) do valor do litígio, não podendo ser inferior a R$ 7,72 ou superior a R$ 81,84.

Ora, entende-se que o direito do contribuinte apresentar impugnações e recursos perante a Administração Tributária reside no direito de petição. Com efeito, dispõe a Constituição Federal, art. 5º, XXXIV, “a”, que são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

O direito de petição exerce-se, por conseguinte, (i) em defesa de direitos, (ii) contra ilegalidade ou (iii) contra abuso de poder. À evidência, trata-se de (i) direitos ameaçados pela Administração Pública, (ii) ilegalidade cometida pela Administração Pública e (iii) abuso de poder pela Administração Pública. Para tanto, a Constituição proíbe a cobrança de taxas.

As reclamações e recursos administrativos são modalidades do direito de petição, na medida que se voltam para a defesa do direito do contribuinte de pagar apenas o tributo previsto em lei ou contra o tributo exigido ilegalmente. Embora tais reclamações e recursos dependam da iniciativa do contribuinte, existe o interesse da Administração em cumprir o ordenamento jurídico, conforme Súmula 473 do STF: “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. Por isso o contencioso administrativo tributário nada mais faz que o controle da legalidade dos atos da Administração Tributária.

Não se trata, portanto, a impugnação da constituição do crédito tributário, de exercício de direito subjetivo, invocando a tutela jurisdicional do Estado, mas de direito de petição. 

A taxa cobrada para o contribuinte impugnar administrativamente o crédito tributário constituído, além de vedada pela Constituição, por tratar-se de direito de petição, não caracteriza utilização efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, nem tampouco exercício regular de atividades inerentes ao poder de polícia. Permitir ao contribuinte que discuta a legalidade da exigência do tributo não é nenhum serviço prestado ao contribuinte. Também não se trata de exercício do poder de polícia, como definido pelo art. 78 do CTN.

De fato, o Poder Público não está limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, em razão de interesse público concernente à segurança, higiene, ordem, costumes, disciplina da produção e do mercado, exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização, tranquilidade pública ou respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Ainda que fosse possível a cobrança de taxas, resta ainda discutir o valor cobrado a título de taxa, calculado como percentual do valor do litígio (i.e. do crédito tributário reclamado). É a própria Constituição do Estado, art. 125, § 4º que veda cobrar taxas em valor superior ao custo de seus fatos geradores ou ter base de cálculo própria de impostos. 

Misabel Derzi, comentando a obra de Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro) esclarece que o núcleo da hipótese de incidência das taxas é o “atuar do ente estatal relacionado ao obrigado, que sofre aquela atuação”. Portanto, a base de cálculo das taxas necessariamente “deve mensurar o custo de atuação do Estado, proporcionalmente a cada obrigado”. Taxas com base de cálculo diversa, como o valor da causa – acrescenta – não passam de impostos disfarçados, além dos autorizados pela Constituição Federal.

A cobrança de taxa, nesse caso, serve apenas ao propósito de desencorajar o  contribuinte a exercer o direito de impugnar administrativamente o crédito tributário ilegalmente exigido.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Livre concorrência e unanimidade das decisões do Confaz

Velocino Pacheco Filho

Dispõe o art. 155, § 2º, XII, da Constituição da República que compete à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. A matéria foi regulada pela Lei Complementar 24/1975 cujo art. 1º condicionou esses tratamentos excepcionais a convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal. Conforme § 2º do art. 2º, a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados. 

Essa disposição tem recebido inúmeras críticas. “Se nem as emendas constitucionais”, alegam, “exige unanimidade, porque seria ela exigida para a concessão de isenções”? Ora, o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), órgão onde são discutidas as propostas de convênios, não é um corpo legislativo, mas apenas um colegiado de secretários de fazenda dos Estados. Os convênios em si mesmos não concedem isenções, mas constituem uma condição para que os Estados o façam. 

Outro argumento baseia-se no art. 151, I, da CF/88 que veda a instituição de tributo que não seja uniforme em todo território nacional, ressalvada a concessão de incentivos fiscais “destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País”. Então, concluem, a concessão de incentivos fiscais é permitida para estimular o desenvolvimento das regiões mais pobres. Embora a afirmativa seja verdadeira, essa disposição, no entanto, é dirigida expressamente à União e ao tratamento dos impostos federais. Poderia ser estendida ao ICMS?

O argumento mais forte apela para os princípios constitucionais: entre os objetivos fundamentais da República, conforme dispõe o art. 3º, III, da CF/88, está a redução das desigualdades regionais. Assim, a exigência de unanimidade no Confaz estaria contrariando a realização desse objetivo fundamental. 

No entanto, os princípios constitucionais – principalmente os que encerram valores – devem ser interpretados em harmonia com outros princípios. É o caso da livre concorrência que, entre outros princípios, informa a ordem econômica, a teor do disposto no art. 170, IV: a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deve observar, entre outros, o princípio da livre concorrência. A relevância desse princípio é demonstrada pelos instrumentos constitucionais postos à disposição do legislador para a defesa da livre concorrência. Desse modo, o § 4º do art. 173 determina que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Por outro lado, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, faculta à lei complementar “estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”.

Livre concorrência significa dar condições para que as empresas concorram no mercado em igualdade de condições, de modo a favorecer a mais eficiente. Isto requer, por parte do Estado, uma tributação neutra sobre o consumo, de modo a que a tributação não interfira na tomada de decisões pelos agentes econômicos. As empresas em concorrência devem ser indiferentes à tributação. Em outras palavras, para cumprir a Constituição – de construir uma economia baseada na livre concorrência – não deve haver tratamentos tributários favorecidos. Uma tributação plurifásica não-cumulativa, como é o caso do IVA ou do ICMS, atende ao princípio da neutralidade, na medida que cada um deve recolher na proporção do valor que adiciona em cada fase do ciclo de comercialização. 

Conforme lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr., o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, não pode desigualar concorrentes em condições de igualdade, criando situações de privilégio de uns sobre outros. Isto por que um mercado, regido pelo princípio da livre concorrência, significa um mercado que se autorregula, pois, é no mercado que se formam os preços conforme as suas próprias regras e é no mercado que se dá a boa alocação dos recursos.

Livre concorrência, acrescenta o mesmo autor, implica a neutralidade do Estado, no sentido de atuação imparcial em face dos agentes concorrentes com seus interesses privados em um mercado livre, ou pela não-interferência estatal, no sentido de que ela não deve ser criadora de privilégios. O Estado, como agente normativo e regulador, atua em nome do interesse comum, nunca em nome de interesses privados e, ao atuar, deve guardar a imparcialidade própria do interesse comum. “A neutralidade concorrencial garante, pois, a igualdade de chances para os agentes econômicos”.

Então o princípio da neutralidade concorrencial deve impedir a criação de privilégios (i.e. de vantagens desigualadoras). Se a atuação estatal, pondera o mesmo jurista, interfere na relação entre concorrentes, mesmo argüindo motivos relevantes (outros princípios, como proteção ao meio ambiente, ao consumidor etc.), ela não pode vir a privilegiar certos concorrentes contra outros, afastando-os do mercado ou retirando-lhes a possibilidade de competir.

A neutralidade dos tributos decorre ainda da proibição de tratamento desigual a contribuintes que estão em situação equivalente (CF, art. 150, II), pois, livre mercado significa que os concorrentes competem, em princípio, dentro de um quadro tributário que marca a estratégia concorrencial de cada um. De outro, porém, e por isso mesmo, esse quadro não pode ser discriminatório, nem criar condições competitivas diferentes entre eles. Assim, o princípio da isonomia, garantido pela neutralidade dos tributos diante da concorrência, será vulnerado na medida em que a relação concorrencial entre empresas for afetada pela tributação, de tal modo que esta favoreça umas e desfavoreça outras.

Não discrepa dessa doutrina, Gilmar Ferreira Mendes para quem a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos cogentes da autoridade administrativa, mas sim do livre jogo das forças de mercado em disputa da clientela na economia de mercado. Pois, o modelo de economia de mercado, adotado pelos constituintes de 88, só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de qualquer interferência, seja do Estado ou do capital monopolista. 

José Afonso da Silva, a seu turno, vê no princípio da livre concorrência, prestigiada no inciso IV do art. 170 da Constituição uma manifestação da liberdade de iniciativa. O art. 170, IV e o § 4º do art. 173, no entendimento do prestigiado professor, “complementam-se no mesmo objetivo”, ou seja, tutelar o sistema de mercado e proteger a livre concorrência “contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista”.

Por fim, segundo Fernando L. Weiss, “a tributação do século XX tem a solidariedade como fundamento, uma vez que todos são igualmente titulares do Estado e devem custeá-lo na medida de suas possibilidades, e representam a retribuição à sociedade em razão do sucesso em obter, fazer circular ou acumular riquezas. A capacidade contributiva é a medida desse sucesso”. Conforme esse autor, é “inaceitável que a tributação oprima a atividade econômica, salvo se houver uma finalidade pública não tributária a ser atendida”.

Desse modo, a concordância unânime dos Estados por meio de convênio, exigida pela Lei Complementar 24/1975, para que um Estado crie incentivos em matéria de ICMS, é mecanismo para evitar a transferência ou repartição dos ônus financeiros deles decorrentes. Em homenagem ao princípio da Federação, nenhum Estado deve ser obrigado a suportar ônus resultante de benefícios fiscais concedidos por outro. O convênio garante validade à lei local, conclui Weiss, mas não acarreta renúncia de receita por parte dos demais Estados.

Podemos concluir, pois, que a exigência de unanimidade na aprovação dos convênios pelo Confaz, vem atender (i) ao princípio da livre concorrência, (ii) ao tratamento isonômico entre contribuintes e (iii) a garantia de que nenhum Estado deva suportar o ônus de benefício fiscal concedido por outro. A redução das desigualdades regionais não é um valor absoluto que se sobreponha a outros princípios constitucionais como a livre concorrência, a isonomia ou a federação. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Qual o cabimento da multa de mora em matéria tributária?

Velocino Pacheco Filho

O tributo não pago no seu vencimento é acrescido de multa, juros e correção monetária. Os juros (moratórios) tem a função de indenizar o Estado, recompondo o patrimônio lesado pelo não recebimento a tempo do tributo. A correção monetária, por sua vez, atualiza o poder de compra da moeda, corroído pela inflação.

A taxa Selic, criada em 1979, incide sobre os financiamentos com prazo de um dia útil (overnight), lastreados por títulos públicos registrados no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia. “A Taxa Selic compreende juros de mora e correção monetária, sendo vedada sua utilização cumulativa com qualquer outro índice de juros ou correção”(AgRg no REsp 976127 / SP, Segunda Turma, DJe 07/10/2008).

Costuma-se classificar as multas em punitivas e moratórias. As multas punitivas correspondem a uma violação da legislação tributária, tendo caráter essencialmente intimidativo. Já as multas moratórias decorrem do simples inadimplemento da obrigação tributária. Têm caráter indenizatório. Além disso, as multas punitivas devem ser constituídas pela autoridade, em prévio ato administrativo. As multas moratórias, por sua vez, não dependem de constituição, sendo aplicadas pela Administração Tributária, por força da lei.

Jurisprudência dos tribunais superiores, no entanto, não tem feito distinção entre multas moratórias e punitivas. Assim, a Segunda Turma do STJ, no R. Especial 1.009.897 (DJe 28/5/2008) decidiu que a denúncia espontânea afasta a multa moratória, “até porque inexiste distinção entre esta e a multa punitiva”. Com efeito, o art. 138 do CTN dispõe que a responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, “acompanhada do pagamento do tributo e dos juros de mora”. Não é feita referência à multa de mora. 

Já no R. Especial 169.877 SP (DJ de 24.08.1998), decidiu o tribunal que “a multa moratória constitui penalidade resultante de infração legal, sendo inexigível no caso de denúncia espontânea, por força do artigo 138, mesmo em se tratando de imposto sujeito a lançamento por homologação”.

A Primeira Turma do STJ, no R. Especial 177.076 RS (DJ 1-7-1999, p. 126), esclarece que “a multa moratória foi concebida como forma de punir o atraso no cumprimento das obrigações fiscais, tornando-o mais oneroso. Seu escopo final é intimidar o contribuinte, prevenindo sua mora. Inegável sua natureza punitiva. O ressarcimento pelo atraso fica por conta dos juros e eventual correção monetária”.

Em sede de doutrina, leciona Sacha Calmon Navarro Coelho (Teoria e Prática das Multas Tributárias, Forense, 1992, p. 73) que “em direito tributário é o juro que recompõe o patrimônio estatal lesado pelo tributo não recebido a tempo. A multa é para punir, assim como a correção monetária é para garantir, atualizando-o, o poder de compra da moeda. Multa e indenização não se confundem”.

Além disso, as multas moratórias distinguem-se das punitivas pelo seu menor valor e por serem proporcionais ao atraso no pagamento. Multas muito altas, independentemente do tempo que o contribuinte ficou sem efetuar o pagamento do crédito tributário, são típicas de punição. 

Em Santa Catarina, a Lei 10.297/1996 pune com multa de 50% do valor do imposto exigido por notificação fiscal a falta de recolhimento do imposto (art. 51), enquanto o pagamento a destempo, antes de qualquer procedimento administrativo, é acrescido de multa diária de 0,3% do valor do imposto, até o limite de 20% (art. 53). A multa do art. 51 é claramente punitiva e a do art. 53, claramente indenizatória.  

Ainda assim, persiste a indagação: se tanto os juros quanto a multa de mora tem natureza indenizatória, não estaria o contribuinte sendo compelido a reparar duas vezes o Estado pela mesma coisa? Poderiam os juros e a multa de mora ser cobrados cumulativamente?

Por outro lado, o inadimplemento da obrigação tributária não pode representar vantagem para o contribuinte – forma barata de fazer capital de giro. Contudo, se o objetivo da multa é desincentivar o inadimplemento, estamos falando de multa punitiva e não moratória. 

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A eficácia das multas administrativas

Velocino Pacheco Filho

O direito, como ordem normativa da sociedade, seleciona comportamentos e impõe regras de conduta cujo descumprimento acarreta aplicação de sanções sobre o infrator. 

Sacha Calmon Navarro Coêlho (Teoria e Prática das Multas Tributárias) fala de “um poder real do Estado capaz de obrigar a respeitar a ordem jurídica estabelecida, independentemente de ser justa ou legítimo o poder que a aplica e garante”. Sintetiza esse autor, dizendo que “é pela coação que o Direito se faz efetivo”.

Aplica-se a sanção porque a ordem jurídica foi rompida e para quer não torne a ser rompida. Esse, o efeito intimidativo/preventivo da sanção. “A sanção jurídica efetiva a ordem jurídica , quando lesada, e é imposta ou pelo menos garantida pela força do Estado (coerção estatal)”. 

Não é diferente no direito tributário. A realização do fato jurígeno previsto na lei faz nascer em favor do Estado o crédito tributário, que corresponde a um débito para o sujeito passivo tributário. Caso não cumpra o dever de pagar o tributo ou descumpra os deveres instrumentais impostos pela legislação tributária, serão aplicadas ao infrator sanções que, dependendo das circunstâncias, poderão ser exclusivamente fiscais ou sanções fiscais cumulativas com sanções penais.

Entende, entretanto, o autor que no Brasil, a infração tributária não pode gerar o perdimento e confisco dos bens, vedado que é pela Constituição. Segundo ele, a infração tributária pode ocasionar penas pecuniárias, mas não o confisco ou pena de perdimento dos bens, “que exige lei específica tipificante e um processo de execução especial”. Assim, uma multa excessiva que ultrapasse o razoável, para dissuadir ações ilícitas e punir os transgressores caracterizaria uma maneira de burlar a proibição  constitucional  do confisco.

Entendimento semelhante é defendido por Zelmo Denari (Infrações Tributárias e Delitos Fiscais – Parte 1: Direito Tributário Penal). Poderá ser aplicada a pena de perdimento de bens, sempre que forem detectados danos causados ao erário público, decorrentes de atos ilícitos. Então, a pena de perdimento de bens encontra-se ligada às prescrições normativas próprias do direito tributário. Com efeito, a legislação prevê o perdimento de bens, para sancionar tipos penais tributários, dentre os quais o contrabando, o descaminho e a apropriação indébita, todos da mais alta nocividade social. Trata-se de modalidade de sanção ínsita ao nosso sistema penal tributário e que, por seu caráter confiscatório, não pode ser utilizada para reprimir infrações tributárias. 

A conclusão não parece ser muito coerente, já que a inadimplência constitui, efetivamente, um dano causado ao erário. Por outro lado, a pena de perdimento, nos casos de contrabando e descaminho, é aplicada pelas autoridades administrativas federais, descaracterizando assim o seu caráter de sanção penal.

Posição diversa é defendida por Hugo de Brito Machado, que ressalta a distinção entre multa (a ilicitude é essencial à definição da hipótese de incidência das multas) e tributo (cuja hipótese de incidência é necessariamente um ato lícito). As finalidades também são distintas, cabendo ao tributo suprir os recursos financeiros de que o Estado necessita, enquanto a multa tem por fim desestimular o comportamento que configura a sua hipótese de incidência (o inadimplemento da obrigação tributária). Por isso mesmo, a receita de multas é classificada como receita extraordinária ou eventual, ao contrário do tributo que constitui receita ordinária.

O tributo, portanto, deve ser um ônus suportável para o cidadão sem sacrifício de seu bem estar. Essa a razão da vedação ao confisco. 

A multa, por outro lado, deve representar um ônus suficientemente pesado para desestimular o comportamento ilícito. A multa tributária não pode ser algo tão insignificante que o contribuinte tenha vantagem em sonegar (e.g. a aplicação do valor do tributo no mercado financeiro proporcione um retorno superior à multa).

Não é sem razão que o art. 150, IV, da Constituição Federal, refere-se apenas à utilização de “tributo com efeito de confisco”. A vedação ao confisco não pode ser ampliada, além do que dispõe a Constituição, para abranger as multas, que têm finalidade diversa dos tributos. A limitação a que estão sujeitas as multas, segundo o mestre cearense, é o da proporcionalidade entre o valor da multa e a gravidade da ofensa cometida. Mas, se para inibir a sonegação, for preciso adotar uma multa confiscatória, que assim seja. O que é inconstitucional não é o efeito confiscatório das multas, mas exigir multas elevadas para infrações que não causam dano ao direito da Fazenda de arrecadar o tributo.

Estender a vedação ao confisco, acrescenta o eminente professor, é reconhecer que o sujeito passivo teria o direito de sonegar o tributo.

Isto por que a vedação ao confisco visa proteger o direito de propriedade e a livre iniciativa. Não é o caso da multa que visa o efeito punitivo e inibidor do descumprimento da lei tributária. O que se espera das multas é que não sejam desproporcionais em relação à gravidade das infrações que buscam inibir.

Em suma, punir infrações leves com excessiva severidade ou cominar a mesma pena a infrações leves e infrações graves constitui iniquidade que deve ser reprimida. Nesse sentido, e somente nesse, é que se pode falar em efeito confiscatório das multas. 

“Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesma inflige exceda o bem que nasce do delito” (Cesare Beccaria).

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Repetição do indébito e moralidade administrativa

Velocino Pacheco Filho

O art. 165 do CTN assegura ao sujeito passivo da relação jurídico-tributária a restituição total ou parcial do tributo indevido pago ou pago a maior que o devido. No entanto, o art. 166 condiciona a restituição, no caso de impostos indiretos (“que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”), à prova de não ter repassado o ônus do tributo ao adquirente ou, tendo repassado, estar por este autorizado a pedir a restituição. O dispositivo leva em conta a distinção entre contribuinte “de direito” (aquele que recolhe o tributo) e contribuinte “de fato” (quem sofre a repercussão financeira do tributo).

Em outras palavras, o legislador presume que o tributo repercute sobre o contribuinte “de fato”. Mas, essa é uma presunção “juris tantum”, ou seja, admite prova em contrário. Cabe ao contribuinte “de direito” provar que suportou o ônus tributário e que não o repassou ao contribuinte “de fato”.

Ora, isso deixa o Fisco em posição muito cômoda para recusar a restituição: se é pleiteada pelo contribuinte “de fato”, o Fisco dirá que não tem legitimidade para fazê-lo; se pelo contribuinte “de direito”, o Fisco exigirá a prova da não repercussão do tributo sobre o contribuinte “de fato”. Essa é uma prova nada fácil de obter.

Resta ainda, dirá o leitor, o recurso de estar autorizado pelo contribuinte “de fato” a pleitear a restituição. No caso de venda a varejo, também não é fácil de obter.

Porém, para além da obtenção de provas ou do direito à restituição – se o tributo pago é indevido, deve haver alguma restituição a alguém – o Fisco beneficia-se do dilema criado pela própria legislação, descurando de buscar alguma solução.

O art. 37 da vigente Constituição diz que a administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios obedecerá ao princípio, entre outros, da moralidade administrativa. Pergunta-se: o comportamento do Fisco, neste caso, é moral?

Devemos pesquisar qual o conteúdo da moralidade administrativa. O que dizem os doutos? Para Diva Malerbi, “a moralidade administrativa é princípio desdobrado da confiança que o povo depositou no poder e na legitimidade da atividade administrativa em relação à gestão da coisa pública”.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”. O que encontra eco em Antônio da Silva Cabral para quem “entre o fisco e o contribuinte deve existir uma relação de mútua confiança e colaboração”. Para Gilmar Ferreira Mendes, “em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente inatacável”. 

Tércio Sampaio Ferraz Jr., a seu turno, ensina que “a obediência à moralidade é princípio constitucional. Não se trata de regra difusa ou de regra sobre regras, mas de regra imanente aos atos administrativos. Ou seja, configura o ato, não a norma que o autoriza. Nesse sentido, não se confunda legalidade com moralidade. Legalidade é requisito da norma, não do ato que a emana. Assim, uma norma pode ser legal, sem ser moral o ato que a estabelece. Ao que arremata Celso Ribeiro Bastos, para quem o ato administrativo “ofende a moralidade na medida em que, apesar da atuação ser prevista em lei, prejudicar os particulares”. 

Na mesma senda anda José Afonso da Silva para quem “a lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar ou de favorecer alguém deliberadamente, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente ofensivo à moralidade administrativa”.

Por fim, aproximando-se da concepção de Lavinas, conclui Marco Aurélio Greco que a “conduta imoral não é a que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém. Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é destinatário da conduta”. Prossegue esse autor dizendo que o princípio da moralidade “não olha para o interior do Ser Humano, mas sim para o seu exterior, onde se encontram os destinatários da sua ação, ou seja, aqueles que poderão sofrer as injustiças da sua conduta”.

Então, o que caracteriza a imoralidade administrativa? Klaus Tipke distingue entre a moralidade tributária do Estado e a da Administração Pública. A primeira ele faz derivar do princípio da capacidade contributiva. Essa é a moralidade da lei. Mas nos interessa no momento a moralidade da Administração. Essa moralidade reside nos atos administrativos e não na regra jurídica que lhes serve de fundamento.

Então estamos falando de imoralidade dos atos administrativos, ou seja, atos praticados com astúcia e eivados de malícia e que representem uma violação da confiança depositada pelo povo no poder público e na gestão da coisa pública. A Administração, que existe para bem servir ao cidadão e garantir-lhe o exercício de seus direitos constitucionais, não procede com base na confiança mútua e na colaboração. Pelo contrário, age de modo a deliberadamente prejudicar ou favorecer alguém.

A imoralidade, nesse caso, não é subjetiva; não se trata de foro íntimo ou de consciência própria. A imoralidade administrativa é objetiva, devendo ser identificada nos destinatários do ato, aptos a sofrer a injustiça dele decorrente.

Voltando à restituição do indébito tributário, a posição cômoda do Fisco caracteriza, com efeito, imoralidade administrativa, na medida em que representa a apropriação, pela Fazenda Pública, de valores recebidos que não correspondem a tributo devido – enriquecimento sem causa do Erário. A má fé é evidenciada pela recusa fácil de devolver, a qualquer um, os valores recolhidos a título de tributo e que foi demonstrado serem indevidos.

Além disso, a não devolução dos valores indevidamente pagos, seja ao contribuinte de “direito”, seja ao contribuinte de “fato”, corresponde a um prejuízo, não reparado, de quem pagou o tributo ou de quem o suportou. Assim, o indeferimento do pedido pela Administração, apesar de legal, é imoral, sendo incompatível com o conceito de justiça (alterum nom laedare).