por Fabiano Ramalho
Que vivemos em tempos difíceis, já não é novidade para ninguém. Na verdade, a noção de crise parece mesmo estar se confundindo com a normalidade da vida cotidiana. Para muitos, esse fenômeno caracteriza o esgotamento do modelo capitalista de produção, que, com uma velocidade maior do que nunca, necessita se redefinir constantemente para não definhar, ou seja, sob o império do princípio da "inovação constante" ou radical, como defendida, há cerca de um século, pelo economista Joseph A. Schumpeter. Para outros, no entanto, a crise nada mais é do que a imensa incapacidade de reciclar o “lixo” político, social e econômico produzido pela sociedade dita pós-moderna, cujo descarte tem se apresentado como um dilema de difícil solução.
Eu gostaria de desenvolver um pouco essa segunda concepção de crise e transportá-la para o eixo do Direito e, especialmente, do Direito Tributário, para que possamos refletir um pouco sobre as contradições atuais desse majestoso e tradicional ramo do Direito. Quando estudamos os fundamentos de uma sociologia do Poder Fiscal percebemos que o que empresta legitimidade ao imposto é a crença que os contribuintes possuem quanto à sua necessidade e justiça. Quanto maior essa crença, mais legítimo será o imposto. Em outras palavras, o imposto é legítimo, do ponto de vista sociológico, se o contribuinte puder enxergar nele uma relação direta com as necessidades do Estado e, mais além, se a sua proporcionalidade atende aos anseios daquilo que podemos chamar de justiça fiscal ou de imposto justo.
Ora, não é difícil de perceber que, tradicionalmente, temos, então, no Direito Tributário, assim como em qualquer ramo do Direito, uma determinada moral, traduzida por valores que lhe outorgam validade e eficácia, balizada por uma ética mais ou menos robusta, que, em última análise, lhe outorga uma certa sustentabilidade moral. Estamos falando, portanto, de um campo das ciências humanas que costumeiramente valora condutas segundo um certo juízo moral vigente, o qual tende ou tendia a se perpetuar, como forma de estabilizador das relações sociais.
Ocorre que, no mundo contemporâneo, com a derrocada do pensamento moderno e, consequentemente, com o surgimento da visão pós-moderna de mundo, esses paradigmas começaram a se transformar progressivamente, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, quando começaram a desmoronar os modelos científicos e racionais de sociedade. A pós-modernidade, como todos sabem, prega como valor fundamental a liberdade dos indivíduos, “libertando-os” do ônus de qualquer valor moral que possa servir de âncora e contrapeso nas relações sociais, políticas e, principalmente, econômicas, como forma de reagir ao fracasso das certezas e da racionalidade do mundo moderno sucumbente. É de tal forma poderoso esse locus de assepsia do dever moral que importa agora tão somente despir-se de qualquer princípio rígido de conduta para “vestir” a moral mais apropriada para cada ocasião. É o que muitos chamam de “moral à la carte” ou, como prefere Zygmunt Bauman, “moral líquida”.
Agora temos, então, o homem pós-moderno, ou mais especificamente para o nosso estudo, o contribuinte pós-moderno, que, com sua moral de cabide, começa a permear as infraestruturas e superestruturas sociais com esse “novo jeito de ser”, ao ponto de desenvolver um verdadeiro organismo social antipático aos valores tradicionais. Isso não demorou muito para começar a se traduzir em normas legais, desfigurando nosso ordenamento jurídico de matriz Kelseniana para alguma coisa que gravita o universo de Nietzsche.
Não vamos aqui aprofundar o debate sobre essa nova sociedade que se formou com os fundamentos da visão de mundo pós-moderna, para não fugir do foco da questão fiscal. Mas espero que eu esteja conseguindo contextualizar um cenário social que se reflete no Direito e o transforma de uma forma particularmente paradoxal, pois que tenta retirar dele, se não todo, pelo menos uma parte do seu sistema de valores.
Desde então, em matéria de Direito Tributário, temos encontrado cada vez mais dificuldade de solucionar dilemas relacionados com a legitimidade sociológica do Poder Fiscal, com suas bases morais relacionadas com os juízos de necessidade e justiça. Isso porque, num Direito Tributário Pós-Moderno, esses valores já não são mais tão importantes e tendem mesmo a desaparecer. Na medida em que o cidadão pós-moderno se transforma, pouco a pouco, num modelo minimalista de si mesmo, vivendo de aparências ou, o que dá no mesmo, de metaparadigmas forjados a todo instante pelas Leis do Mercado (únicas que não saem de moda), esse Direito passa a não se comportar fundamentalmente como um sistema de moral, embora ainda o seja, mas, sim, como instrumento de garantia de liberdades extremas. Uma espécie de sistema virtual de moralidade, de moralidade líquida, de moralidade à la carte, que muitas vezes se rege por condutas negativas do tipo “é proibido proibir”.
O mais irônico é que esse “modus operandi” do Direito acaba desembocando nas velhas concepções de moral e da ética, reinventando um consequencialismo jurídico perverso, ainda que disfarçado com outros nomes e rótulos. Ou seja, tudo se justifica se o resultado final for aquele que era esperado. Essa é a verdadeira natureza do homo post-modernus, pois, para ele, se for para alcançar a máxima liberdade, os fins justificam os meios. O problema é que nem ele sabe qual é esse fim e, no fundo, pouco se importa se é legítimo, pois, logo mais, alguém inventará um novo "fim", uma nova meta, um novo padrão, uma inovação, descartando a aventura anterior sem que houvesse chance de reagir à mesma.
O perigo dessa forma de ser é que a sociedade moderna passa a fundir a moral com as leis de mercado, ao ponto de transformá-la do seu estado sólido de outrora para o estado líquido de agora, a fim de que ela se adapte aos nossos anseios de liberdade máxima. É a subversão do utilitarismo de Bentham, para criar como meta-axioma pós-moderno a “liberdade máxima para o maior número de indivíduos”, mas só que sem um conteúdo perene e efetivo. Ou seja, pouco importa o conceito e a efetividade dessa liberdade. Basta que, em determinado momento, ela seja desejada ou aparente existir. E, se é desejado, vale tudo para alcança-lo, mesmo que logo após já não interesse mais e seja necessário descartá-lo rapidamente.
Ora, se os fins justificam os meios, então pouco importa para o Direito Tributário ser justo aos olhos dos contribuintes. Basta que o Tributo seja instituído e majorado, nem sempre por meio do devido processo legislativo, para que seja exigido. E se, futuramente, após longa e penosa batalha judicial, onde o contribuinte consiga, enfim, demonstrar e inconstitucionalidade de determinada exigência fiscal, a Corte Constitucional "modula" os efeitos da decisão e determina que tudo o que foi exigido indevidamente pelo Estado até então, de forma contrária à Constituição, não pode ser restituído, valendo a decisão apenas para o futuro.
Com isso, mudamos a Constituição, suprimimos princípios fundamentais do nosso ordenamento, excepcionamos a segurança jurídica, relativizamos direitos e garantias consagrados e excomungamos, enfim, ao bel prazer de um Estado pragmático pós-moderno, todo e qualquer obstáculo à plena fruição de pseudo-valores que possam redefinir o Direito a todo instante, sempre que as condições de mercado e as conjunturas da “crise” assim o exigirem, sem o receio de ver declarada a nulidade com efeitos ex nunc pelo nosso sistema de controle de constitucionalidade.
E, nessa visão deturpada do Direito, é forjado o nosso Direito Tributário, que vai arrecadar não importa a que custo, não importa sobre quais direitos e garantias, não importa sobre que legitimidade, não importa sobre qual moral. O importante é arrecadar, transformando o Poder Fiscal em uma mera máquina arrecadatória. Negam-se direitos, marginaliza-se o planejamento tributário, pois, do contrário, impactaria na arrecadação, pouco importa se tais práticas caracterizam aumento disfarçado de tributos ou violação dos direitos e garantias do contribuinte. Vemos, por exemplo, a arbitrária criminalização do contribuinte do ICMS, quando deixa de recolher o tributo, embora o tenha declarado conforme a lei. De nada importa o fato da Constituição Federal determinar que não haverá prisão por dívida em casos tais, pois basta uma "interpretação" do fiscal, do Ministério Público ou mesmo do juiz, para permitir condenar à prisão o empresário inadimplente com o Fisco.
A meta é ser pragmático, e, nesse sentido, pouco importam os direitos de outrora e os princípios constitucionais que lhes dão forma, pois eles que se fluidifiquem, que se tornem líquidos e, assim, que se adequem às Medidas Provisórias e Decretos do Direito Tributário Pós-Moderno. E o pior é que nós, operadores do direito, passamos a nos conformar com essa visão e, muitas, vezes, adotamos um certo ar passivo diante dessas atrocidades jurídicas. Um certo casuísmo imediatizante nas contendas jurídico-tributárias em que atuamos, aceitando as maldades tributárias, os malfeitos da legislação, as arbitrariedades da administração fiscal, como um fato normal ou, quando muito, um fato contra o qual de nada adiante se opor.
O descaso com as instâncias sociais de debate e a vontade popular em matéria de tributação parece ser a tônica do momento. Os espaços éticos começam a virar campanhas de publicidade enganosa, como se fosse um selo autenticador de qualidade governamental, que, no fundo, é só aparência. Falar em planejamento tributário, nos dias atuais, deslocou-se do campo jurídico para o político, criando um clima de "caça às bruxas" quando o contribuinte busca otimizar o custo tributário de seus negócios. Muitas entidades representativas do setor produtivo passaram a estruturar verdadeiros comitês de negociação política, buscando os favores estatais de forma isolada, quando bastariam as garantias constitucionais para a fruição do benefício fiscal pretendido..
As soluções desses dilemas não são fáceis, mas certamente passam pelo aprimoramento do debate ético e sociológico em busca das respostas adequadas, especialmente para obtermos uma versão mais atualizado do conceito de Estado, de sociedade e de justiça fiscal. O que é certo é preciso recuperar a nossa modernidade. Temos, urgentemente, que resgatar uma racionalidade perdida nos fluxos do capital e do consumo; uma moral sólida e digna, que substitua aquela empenhada a juros extorsivos pela pós-modernidade, e que nos mantém reféns de um Estado injusto e paradoxal, cujo reflexo, na área Tributária, é o descolamento da carga tributária do retorno social esperado, gerando, assim, uma enorme injustiça fiscal.