DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

ELEMENTOS PARA UMA ALTERIDADE DO PODER FISCAL DO ESTADO

por Fabiano Ramalho

Que vivemos em tempos difíceis, já não é novidade para ninguém. Na verdade, a noção de crise parece mesmo estar se confundindo com a normalidade da vida cotidiana. Para muitos, esse fenômeno caracteriza o esgotamento do modelo capitalista de produção, que, com uma velocidade maior do que nunca, necessita se redefinir constantemente para não definhar, ou seja, sob o império do princípio da "inovação constante" ou radical, como defendida, há cerca de um século, pelo economista Joseph A. Schumpeter. Para outros, no entanto, a crise nada mais é do que a imensa incapacidade de reciclar o “lixo” político, social e econômico produzido pela sociedade dita pós-moderna, cujo descarte tem se apresentado como um dilema de difícil solução.

Eu gostaria de desenvolver um pouco essa segunda concepção de crise e transportá-la para o eixo do Direito e, especialmente, do Direito Tributário, para que possamos refletir um pouco sobre as contradições atuais desse majestoso e tradicional ramo do Direito. Quando estudamos os fundamentos de uma sociologia do Poder Fiscal percebemos que o que empresta legitimidade ao imposto é a crença que os contribuintes possuem quanto à sua necessidade e justiça. Quanto maior essa crença, mais legítimo será o imposto. Em outras palavras, o imposto é legítimo, do ponto de vista sociológico, se o contribuinte puder enxergar nele uma relação direta com as necessidades do Estado e, mais além, se a sua proporcionalidade atende aos anseios daquilo que podemos chamar de justiça fiscal ou de imposto justo.

Ora, não é difícil de perceber que, tradicionalmente, temos, então, no Direito Tributário, assim como em qualquer ramo do Direito, uma determinada moral, traduzida por valores que lhe outorgam validade e eficácia, balizada por uma ética mais ou menos robusta, que, em última análise, lhe outorga uma certa sustentabilidade moral. Estamos falando, portanto, de um campo das ciências humanas que costumeiramente valora condutas segundo um certo juízo moral vigente, o qual tende ou tendia a se perpetuar, como forma de estabilizador das relações sociais.

Ocorre que, no mundo contemporâneo, com a derrocada do pensamento moderno e, consequentemente, com o surgimento da visão pós-moderna de mundo, esses paradigmas começaram a se transformar progressivamente, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, quando começaram a desmoronar os modelos científicos e racionais de sociedade. A pós-modernidade, como todos sabem, prega como valor fundamental a liberdade dos indivíduos, “libertando-os” do ônus de qualquer valor moral que possa servir de âncora e contrapeso nas relações sociais, políticas e, principalmente, econômicas, como forma de reagir ao fracasso das certezas e da racionalidade do mundo moderno sucumbente. É de tal forma poderoso esse locus de assepsia do dever moral que importa agora tão somente despir-se de qualquer princípio rígido de conduta para “vestir” a moral mais apropriada para cada ocasião. É o que muitos chamam de “moral à la carte” ou, como prefere Zygmunt Bauman, “moral líquida”.

Agora temos, então, o homem pós-moderno, ou mais especificamente para o nosso estudo, o contribuinte pós-moderno, que, com sua moral de cabide, começa a permear as infraestruturas e superestruturas sociais com esse “novo jeito de ser”, ao ponto de desenvolver um verdadeiro organismo social antipático aos valores tradicionais. Isso não demorou muito para começar a se traduzir em normas legais, desfigurando nosso ordenamento jurídico de matriz Kelseniana para alguma coisa que gravita o universo de Nietzsche.

Não vamos aqui aprofundar o debate sobre essa nova sociedade que se formou com os fundamentos da visão de mundo pós-moderna, para não fugir do foco da questão fiscal. Mas espero que eu esteja conseguindo contextualizar um cenário social que se reflete no Direito e o transforma de uma forma particularmente paradoxal, pois que tenta retirar dele, se não todo, pelo menos uma parte do seu sistema de valores.

Desde então, em matéria de Direito Tributário, temos encontrado cada vez mais dificuldade de solucionar dilemas relacionados com a legitimidade sociológica do Poder Fiscal, com suas bases morais relacionadas com os juízos de necessidade e justiça. Isso porque, num Direito Tributário Pós-Moderno, esses valores já não são mais tão importantes e tendem mesmo a desaparecer. Na medida em que o cidadão pós-moderno se transforma, pouco a pouco, num modelo minimalista de si mesmo, vivendo de aparências ou, o que dá no mesmo, de metaparadigmas forjados a todo instante pelas Leis do Mercado (únicas que não saem de moda), esse Direito passa a não se comportar fundamentalmente como um sistema de moral, embora ainda o seja, mas, sim, como instrumento de garantia de liberdades extremas. Uma espécie de sistema virtual de moralidade, de moralidade líquida, de moralidade à la carte, que muitas vezes se rege por condutas negativas do tipo “é proibido proibir”.

O mais irônico é que esse “modus operandi” do Direito acaba desembocando nas velhas concepções de moral e da ética, reinventando um consequencialismo jurídico perverso, ainda que disfarçado com outros nomes e rótulos. Ou seja, tudo se justifica se o resultado final for aquele que era esperado. Essa é a verdadeira natureza do homo post-modernus, pois, para ele, se for para alcançar a máxima liberdade, os fins justificam os meios. O problema é que nem ele sabe qual é esse fim e, no fundo, pouco se importa se é legítimo, pois, logo mais, alguém inventará um novo "fim", uma nova meta, um novo padrão, uma inovação, descartando a aventura anterior sem que houvesse chance de reagir à mesma.

 O perigo dessa forma de ser é que a sociedade moderna passa a fundir a moral com as leis de mercado, ao ponto de transformá-la do seu estado sólido de outrora para o estado líquido de agora, a fim de que ela se adapte aos nossos anseios de liberdade máxima. É a subversão do utilitarismo de Bentham, para criar como meta-axioma pós-moderno a “liberdade máxima para o maior número de indivíduos”, mas só que sem um conteúdo perene e efetivo. Ou seja, pouco importa o conceito e a efetividade dessa liberdade. Basta que, em determinado momento, ela seja desejada ou aparente existir. E, se é desejado, vale tudo para alcança-lo, mesmo que logo após já não interesse mais e seja necessário descartá-lo rapidamente.

Ora, se os fins justificam os meios, então pouco importa para o Direito Tributário ser justo aos olhos dos contribuintes. Basta que o Tributo seja instituído e majorado, nem sempre por meio do devido processo legislativo, para que seja exigido. E se, futuramente, após longa e penosa batalha judicial, onde o contribuinte consiga, enfim, demonstrar e inconstitucionalidade de determinada exigência fiscal, a Corte Constitucional "modula" os efeitos da decisão e determina que tudo o que foi exigido indevidamente pelo Estado até então, de forma contrária à Constituição, não pode ser restituído, valendo a decisão apenas para o futuro.

Com isso, mudamos a Constituição, suprimimos princípios fundamentais do nosso ordenamento, excepcionamos a segurança jurídica, relativizamos direitos e garantias consagrados e excomungamos, enfim, ao bel prazer de um Estado pragmático pós-moderno, todo e qualquer obstáculo à plena fruição de pseudo-valores que possam redefinir o Direito a todo instante, sempre que as condições de mercado e as conjunturas da “crise” assim o exigirem, sem o receio de ver declarada a nulidade com efeitos ex nunc pelo nosso sistema de controle de constitucionalidade.

E, nessa visão deturpada do Direito, é forjado o nosso Direito Tributário, que vai arrecadar não importa a que custo, não importa sobre quais direitos e garantias, não importa sobre que legitimidade, não importa sobre qual moral. O importante é arrecadar, transformando o Poder Fiscal em uma mera máquina arrecadatória. Negam-se direitos, marginaliza-se o planejamento tributário, pois, do contrário, impactaria na arrecadação, pouco importa se tais práticas caracterizam aumento disfarçado de tributos ou violação dos direitos e garantias do contribuinte. Vemos, por exemplo, a arbitrária criminalização do contribuinte do ICMS, quando deixa de recolher o tributo, embora o tenha declarado conforme a lei. De nada importa o fato da Constituição Federal determinar que não haverá prisão por dívida em casos tais, pois basta uma "interpretação" do fiscal, do Ministério Público ou mesmo do juiz, para permitir condenar à prisão o empresário inadimplente com o Fisco.

A meta é ser pragmático, e, nesse sentido, pouco importam os direitos de outrora e os princípios constitucionais que lhes dão forma, pois eles que se fluidifiquem, que se tornem líquidos e, assim, que se adequem às Medidas Provisórias e Decretos do Direito Tributário Pós-Moderno. E o pior é que nós, operadores do direito, passamos a nos conformar com essa visão e, muitas, vezes, adotamos um certo ar passivo diante dessas atrocidades jurídicas. Um certo casuísmo imediatizante nas contendas jurídico-tributárias em que atuamos, aceitando as maldades tributárias, os malfeitos da legislação, as arbitrariedades da administração fiscal, como um fato normal ou, quando muito, um fato contra o qual de nada adiante se opor.

O descaso com as instâncias sociais de debate e a vontade popular em matéria de tributação parece ser a tônica do momento. Os espaços éticos começam a virar campanhas de publicidade enganosa, como se fosse um selo autenticador de qualidade governamental, que, no fundo, é só aparência. Falar em planejamento tributário, nos dias atuais, deslocou-se do campo jurídico para o político, criando um clima de "caça às bruxas" quando o contribuinte busca otimizar o custo tributário de seus negócios. Muitas entidades representativas do setor produtivo passaram a estruturar verdadeiros comitês de negociação política, buscando os favores estatais de forma isolada, quando bastariam as garantias constitucionais para a fruição do benefício fiscal pretendido..

As soluções desses dilemas não são fáceis, mas certamente passam pelo aprimoramento do debate ético e sociológico em busca das respostas adequadas, especialmente para obtermos uma versão mais atualizado do conceito de Estado, de sociedade e de justiça fiscal. O que é certo é preciso recuperar a nossa modernidade. Temos, urgentemente, que resgatar uma racionalidade perdida nos fluxos do capital e do consumo; uma moral sólida e digna, que substitua aquela empenhada a juros extorsivos pela pós-modernidade, e que nos mantém reféns de um Estado injusto e paradoxal, cujo reflexo, na área Tributária, é o descolamento da carga tributária do retorno social esperado, gerando, assim, uma enorme injustiça fiscal.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

ICM ou ICMS?


Velocino Pacheco Filho

ICM e ICMS são impostos distintos ou um está compreendido no outro? Em outras palavras, justifica-se as referências na legislação ao “ICM e ICMS”, como se disposições sobre o ICMS não se aplicassem ao ICM (ainda em discussão ou em processo de execução).

O art. 23, II, da Constituição do Brasil de 1967, na redação dada pela Emenda Constitucional 1/69, dava competência aos Estados para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais ou comerciantes”.

Já a Constituição de 1988, art. 155, II, deu aos Estados competência para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”.

Com a extinção dos impostos únicos sobre combustíveis, lubrificantes e energia elétrica (art. 21, VIII, da CF/69) e sobre minerais (inciso IX), as operações de circulação dessas mercadorias passaram a ser tributadas pelo ICMS. No caso da tributação da energia elétrica, foi equiparada a coisa móvel pelo § 3º do art. 155 do Código Penal, a fim de ficar caracterizado como furto (“subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel”), o desvio de energia elétrica. Ora, entende-se por “mercadoria” a coisa móvel adquirida para revenda. Então, o fornecimento de energia elétrica caracteriza-se como operação de circulação de mercadoria e, portanto, sofre a incidência do ICMS.

Portanto, o ICMS nada mais é que o ICM acrescido dos serviços de transporte e comunicação. Em outros termos, o ICM está contido no ICMS. Assim, disposições relativas ao ICMS atingem também o ICM, já que “a natureza específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação” (CTN, art. 4º). Em síntese, a referência, na legislação, ao “ICMS e ao ICMS” é desnecessária e redundante.

Esse entendimento também é o do Supremo Tribunal Federal: no julgamento do Recurso Extraordinário 149.922 SP, o Tribunal Pleno entendeu que a competência deferida aos Estados pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), art. 34, § 8º, estava restrita às novas hipóteses de incidência acrescidas pela Constituição Federal de 1988. 

Diz o dispositivo referido que: “Se no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, b, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regulamentar provisoriamente a matéria”.

Cabe indagar, nesse ponto, em que momento se constitui a norma jurídica: quando o legislador edita o texto normativo ou quando ela é aplicada ao caso concreto? João Maurício Adeodato (Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica, 2011, p. 223), com espeque em doutrina de Fridrich Müller, sustenta que “só na norma decisória é que efetivamente se constituía norma jurídica”. Conforme esse autor:

O âmbito da norma se compõe dos fatos que, diante de um caso a ser resolvido e dos textos normativos a ele correspondentes, à luz de toda experiência jurídica acumulada, precisam ser considerados e não podem ser aleatoriamente escolhidos.

Já Miguel Reale (O Direito como Experiência, 1992, p. 31) ensina que a experiência jurídica “é antes a compreensão do ‘direito in acto’, como efetividade de participação e de comportamentos, sendo, pois, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, a concreta correspondência das formas de juridicidade ao sentir e querer, ou às valorações da comunidade”. Assim, “deve ser interpretado como real processo de aferição dos fatos em suas conexões objetivas de sentido”.

O sentido da norma, pois, será definido, entre a pluralidade de sentidos possíveis, pelo intérprete-aplicador da norma. Em nosso sistema jurídico, as decisões de órgão superiores são revistas, em um processo escalonado de eliminação de significados, até que, em matéria constitucional, a palavra final pertence ao Supremo Tribunal Federal.


Ora, os Estados celebraram o Convênio ICM 66/1988, conforme o rito previsto na Lei Complementar 24/1975, que dispôs sobre o tributo em sua totalidade, mesmo sobre o que correspondia estritamente ao fato gerador do ICM. A matéria foi submetida ao STF (Pleno, RE 149.922 SP, rel. Min. Ilmar Galvão, 1994) que decidiu o seguinte:

A competência delegada aos Estados, no art. 34, § 8º, do ADCT, para fixação por convênio, de normas destinadas a regular provisoriamente o ICMS, limita-se pela existência de lacunas na legislação. Se a base de cálculo em referência já se achava disciplinada pelo art. 2º, § 8º, do Decreto-lei 406/68, recepcionada pela nova carta com caráter de lei complementar, até então exibido (art. 34, § 5º do ADCT), não havia lugar para a nova definição que lhe deu o Convênio ICM 66/88 (art. 11), verificando-se, no ponto indicado, ultrapassagem do linde cravado pela norma transitória e consequente invasão do princípio constitucional da legalidade tributária.

Mais recentemente (2012), a Segunda Turma reiterou o entendimento do Tribunal, no julgamento do RE 488.448 RJ, rel. Min.  J. Barbosa:

Segundo o art. 34, §§ 5º e 8º do ADCT, os Estados e o Distrito Federal somente poderiam criar as normas gerais de transição estritamente necessárias para instituição do novo tributo, resultado da agregação dos serviços de comunicação e de transporte á circulação de mercadorias (ICM-S). Como as normas relativas à instituição do imposto relativo à circulação de mercadorias foram recepcionadas pela Constituição (DL 406/1968), o convênio 66/1988 não poderia modifica-las nem revogá-las.

O STF, nesses julgamentos, deixou claro que o ICMS não é um tributo totalmente distinto do ICM, mas compreende o ICM e as novas hipóteses de prestação de serviço de transporte e de comunicação. Por isso que a competência deferida aos Estados para legislar provisoriamente sobre normas gerais, mediante convênio, conforme ADCT, art. 34, restringiu-se às novas hipóteses de incidência, não podendo versar sobre operações de circulação de mercadorias, matéria sobre a qual permaneciam as disposições do Decreto-lei 406/1968. Somente lei complementar – e convênio não é lei, menos ainda lei complementar – poderia tratar o imposto integralmente, o que só veio a ocorrer com a edição da Lei Complementar 87/1996.

Portanto, não há sentido em distinguir entre ICM e ICMS, para fins de aplicação da legislação. As disposições relativas ao ICMS aplicam-se também ao ICM, já que este está contido naquele.       

terça-feira, 8 de setembro de 2015

SEMINÁRIO DA CET/SC: PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

No dia 29 de setembro de 2015, ás 19 horas no auditório da FIESC (Rod. Admar Gonzaga, 2765, Itacorubi, Florianópolis-SC), a Câmara de Ética Tributária do Estado de Santa Catarina (CET/SC) realizará mais uma edição do seu já consagrado seminário.
 
Nesta 3ª edição, o assunto será "Planejamento Tributário". O evento, que é voltado para empresários e profissionais da área jurídica, visa elucidar o que os tribunais judiciais e administrativos vêm decidindo acerca do planejamento tributário realizado pelas empresas, a fim de nortear a atuação dos empresários e evitar autuações fiscais.
 
As inscrições são gratuitas e podem ser realizadas nas formas indicadas no flyer abaixo. O evento contará com a participação dos autores do Blog DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE, Velocino Pacheco Filho e Fabiano Ramalho, o primeiro como um dos palestrantes e o segundo como representante da OAB/SC na Câmara de  Ética Tributária do Estado de Santa Catarina. Não deixem de participar!
 
 

domingo, 6 de setembro de 2015

A LEGITIMIDADE SOCIOLÓGICA DO PODER FISCAL

Fabiano Ramalho 

Sabemos que a legitimidade jurídica do imposto decorre de sua conformidade com ordenamento jurídico, especialmente com os princípios e regras jurídicas que norteiam a sua criação. Mas, além da legitimidade jurídica, o imposto precisa de uma legitimidade sociológica para alcançar sua plena eficácia. Vale dizer que a legitimidade jurídica do imposto repousa na sua legitimidade sociológica.

O imposto legítimo, do ponto de vista sociológico, é aquele que parece justo e necessário para o contribuinte. E ele vai parecer necessário na medida em que servir para fazer face às despesas do Estado, sendo que a preocupação, nesse caso, está em encontrar o tipo adequado de imposto a ser instituído, aqui incluída a reflexão sobre quais contribuintes deverão suportá-lo e em que medida. Para o contribuinte, necessário é imposto que é suficiente para a satisfação dessas despesas, e nada mais do que isso.

A grande dificuldade nesse ponto é definir o que é necessário e suficiente. Parece evidente que a definição desses conceitos deve passar pelas análises de eficiência e probidade administrativa, austeridade e responsabilidade econômica e fiscal, moralidade pública, etc. Conjugando todos esses fatores, teremos mais chance de acertar o que é efetivamente necessário e suficiente em termos de imposição tributária, na visão do contribuinte.

Mas tanto a necessidade quanto a suficiência, nessa versão qualificada, terão que adequar-se, ainda, a um limite lógico de imposição. Nesse sentido, é válida a fórmula encontrada na Curva de Laffer[1], que demonstra o tamanho máximo da carga tributária que o estado pode dispor para alcançar o máximo de receita possível. Parece lógico que a totalidade das despesas estatais tem que caber nesse limite máximo de receita tributária. Qualquer desajuste nessa fórmula acarretará ou numa arrecadação subdimensionada ou numa arrecadação sobredimensionada, sendo que, nesse último caso, teremos, muito além da diminuição da procura (no balanço da oferta e procura), do consumo e da poupança, a perda da legitimidade sociológica do imposto.



Perceba que nessa discussão sobre a necessidade do imposto, estamos definindo o contorno do próprio modelo de Estado que queremos (liberal, patrimonialista, social-democrata, etc.), pois o discurso daí resultante servirá como ideologia hegemônica para a justificação da atuação estatal e do poder político.

Talvez por isso é que, do ponto de vista da justiça fiscal, seja mais difícil de conceber o imposto ideal, já que não é possível estabelecer um consenso unitário sobre o modelo ideal de Estado e sua forma de atuação e organização. Talvez a melhor noção de justiça fiscal seja aquela que se apega majoritariamente ao princípio da igualdade fiscal, ou seja, a capacidade do sistema jurídico-tributário de tratar igualmente contribuintes que se encontrem em situações equivalentes.

Nessa concepção, os impostos ditos indiretos, como aqueles que incidem sobre o consumo, seriam os que possuem uma aritmética mais confortável para demonstrar essa justiça, pois incidem na exata medida em que o contribuinte consome, modelo que comumente denominamos de justiça distributiva. Thomas Hobbes já dizia, no seu Léviathan, que “quando os impostos são assentados sobre aquilo que as pessoas consomem, cada um paga igualmente por aquilo que usa e a República não se frustra pelo desperdício de certos particulares”. Afinal, Hobbes se perguntava “por qual razão aquele que trabalha muito e que, poupando os frutos do seu trabalho, consome pouco, sofreria ele maior imposição do que aquele que, vivendo sem fazer nada, tem poucos rendimentos e os gasta integralmente?[2]   

Mas a igualdade fiscal comporta ainda os impostos ditos diretos, como aqueles que incidem sobre a renda e o patrimônio. Aqui cada um contribui de forma proporcional ao seu status social, segundo a riqueza que ostenta. Quanto maior essa riqueza, maior será a imposição fiscal, o que se alcança por meio da aplicação de alíquotas progressivas, modelo que comumente denominados de justiça distributiva.

Não é difícil de perceber que essa forma de estabelecer a igualdade, e, portanto, a justiça fiscal, apresenta enormes dificuldades, estando não raras vezes vinculada às lutas de classes e à própria ideologia política reinante, pois traz para o universo tributário elementos de uma justiça social determinada, que não é necessariamente unânime entre os contribuintes.

É por isso que, como sugerimos acima, a legitimidade sociológica do imposto depende e condiciona a legitimidade do poder político vigente, assumindo, em certo aspecto, a função de instrumento de dominação social pelo controle da distribuição das riquezas.

Perceba que o debate não é simples, principalmente se levarmos em consideração que o mesmo Estado que estabelece o modelo de tributação que se espera legítimo, não é, ele mesmo, capaz de estabelecer um conjunto de princípios legítimos para o exercício do poder político. Ou seja, a legitimidade sociológica do imposto será maior ou menor, segundo a ética política reinante.

Mas, pressupondo um Estado legítimo e eficiente no desenvolvimento de princípios hegemônicos, nossa preocupação ficaria, portanto, restrita ao aprimoramento da justiça fiscal. É nesse aspecto que surge com maior relevância a necessidade de manter amplos e permanentes espaços de debate, onde seja possível compartilhar as diferentes noções de justiça presentes nos mais distintos grupos de contribuintes, a fim de dotar de dinâmica e movimento a questão da legitimidade do imposto. Afinal, Direito, Estado e Sociedade são conceitos vivos, que estão em constante mudança, sobretudo no nosso mundo globalizado.

Mais do que isso, é preciso dar efetividade às soluções que são encontradas nesses espaços, traduzindo-as em normas jurídicas que aperfeiçoem, por assim dizer, a imposição tributária. Ou seja, a legitimidade sociológica do imposto será maior ou menor, segundo a ética tributária reinante.

Eu poderia continuar desenvolvendo esses argumentos, mas eu espero que a essa altura você já tenha percebido que a questão da justiça tributária e, consequentemente, da legitimidade sociológica do imposto é complexa e está intimamente relacionada com os valores políticos, jurídicos e sociais vigentes. A sua equalização e parametrização com base nesses valores é condição essencial para o aperfeiçoamento e validade do poder fiscal e, por extensão, do próprio Estado e da Sociedade.

E, talvez, a melhor forma de garantir que essa tarefa seja bem sucedida seja dotar de eficácia e efetividade os fóruns de debate multissetoriais que têm por finalidade o desenvolvimento e o aprimoramento da ética tributária. Não há imposto justo que sobreviva à falta de uma ética tributária consistente, o que nos leva a crer que a razão da legitimidade sociológica do imposto é diretamente proporcional à qualidade da ética tributária.






[1] LAFFER, Arthur Betz. The Ellipse: An Explication of the Laffer Curve in a Two-Factor Model, Sydney: Grenwood Press, 1986.
[2] HOBBES, Thomas. Léviathan, Paris: Sirey, 1971.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Inteligência do § 6º do art. 150 da Constituição

Velocino Pacheco Filho

Dispõe a Constituição Federal, art. 150, § 6º que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a tributos somente pode ser concedido mediante lei específica, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g.

O dispositivo referido atribui à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

A regra do § 6º coloca as exonerações tributárias sob reserva de lei. Porém, no que se refere ao ICMS, a exigência de lei não deve prejudicar o disposto no art. 155, § 2º, XII, g, ou seja, a necessidade de convênio celebrado no âmbito do Confaz, nos termos da Lei Complementar 24/1975. Temos duas interpretações possíveis:

a) o convênio supre a necessidade de lei – interpretação adotada pelos Estados – caso em que os convênios podem ser implementados por decreto na legislação de cada Estado;

b) o convênio seria uma condição para os Estados concederem – por lei – exoneração do tributo, expressando a concordância das demais unidades da Federação.

Nesse último caso, o convênio apenas autoriza a concessão do benefício fiscal, mas não prescinde de lei para implementá-lo na legislação de cada Estado. Afinal, porque apenas o ICMS não estaria sujeito à reserva legal? Enquanto para todos os outros tributos é exigida lei, o ICMS dependeria apenas de convênio?

Por outro lado, porque seria exigido convênio autorizando a exoneração apenas para o ICMS? Essa é fácil! As exonerações em matéria de ICMS – por ser tributo não cumulativo – pode afetar a arrecadação das demais unidades da Federação, razão pela qual o constituinte exige a prévia concordância dos outros Estados e do Distrito Federal.

As exonerações tributárias exigem lei – em sentido formal – porque se trata, o crédito tributário, de coisa pública indisponível. A Administração não pode dispor a seu bel prazer do crédito tributário – vocacionado especialmente ao financiamento do setor público. A destinação do crédito tributário somente pode ser feita por lei (de acordo com o orçamento).


Apenas a lei, em sentido formal, expressa a vontade da maioria, através de seus representantes eleitos. A dispensa de crédito tributário deve ser discutida e votada pelo Legislativo e sancionada e publicada pelo Executivo. Deve haver a participação de ambos os poderes, Legislativo e Executivo.

Já os decretos tem origem apenas no Executivo; não se submetem à discussão e votação pelos representantes do povo – por definição, o titular da soberania. Conforme art. 84, IV, “in fine”, da Constituição, os decretos são expedidos para a fiel execução das leis. Ou seja, não podem ampliar ou restringir o disposto nas leis – apenas dispõe sobre como as leis serão cumpridas. São auxiliares em relação às leis.

Assim sendo, como se poderia admitir que os decretos suprissem a necessidade de leis? Da mesma forma, os convênios Confaz não passam de acordos entre os Executivos dos Estados e o do Distrito Federal. Também não são submetidos ao exame pelos representantes do povo, reunidos em parlamento. Convênio não é lei e não pode suprir a necessidade de lei.

A exigência de lei, no caso das exonerações tributárias, é uma imposição do princípio democrático: “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Mas, a exigência de convênio, no caso de exonerações do ICMS, fundamenta-se no princípio da Federação e na igualdade essencial de todos os Estados e do Distrito Federal. São princípios distintos que devem ser buscados concomitantemente, sem que um prevaleça sobre o outro. Se o art. 1º da Constituição diz que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, devemos entender que a exigência de convênios (em nome do princípio federativo) não afasta, nem pode afastar a exigência de lei em sentido formal (para realizar o princípio democrático).

A concessão de isenções ou de benefícios fiscais, em matéria de ICMS, portanto, depende de prévio convênio autorizativo e também de expedição de lei pelo Estado ou pelo Distrito Federal.