DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A ditadura do “sistema” e o Estado de Direito

Velocino Pacheco Filho

Devemos reconhecer que a adoção da informática pelo Fisco provocou uma verdadeira revolução nos métodos, nas técnicas e nos resultados do trabalho fiscal. Podemos até dizer que a informática tem modificado a própria maneira de pensar dos agentes do Fisco.

A não muito tempo atrás, o trabalho fiscal era, sobretudo, manual, compreendendo a conferência física de livros e documentos fiscais, muitas vezes manuscritos, e intermináveis operações de adição. O célebre “lamber nota” fazia parte da rotina diária.

A informática veio introduzir maior agilidade e rapidez no processamento dos dados brutos, permitido o manejo de grandes volumes de dados. Enquanto antes se trabalhava com amostragens relativamente reduzidas das operações do contribuinte, hoje se pode examinar a quase totalidade dessas operações, com muito maior precisão e em muito menor tempo. A integração dos bancos de dados permite conferir grandes volumes de documentos fiscais, como, por exemplo, os relativos às mercadorias e insumos recebidos de seus fornecedores, inclusive quando vindos de outros Estados. Inovações como a nota fiscal eletrônica, o emissor de cupom fiscal (ECF), o SPED fiscal, entre outras, deram ao Fisco muito mais controle sobre as atividades do contribuinte. A informática deu ao Fisco esse poder. 

Contudo, com certa frequência, o “sistema” informatizado entra em choque com o direito tributário. O “sistema” não aceita procedimentos que não estiverem previstos, mesmo que resultem de decisão judicial ou de modificações na legislação tributária. O direito, inclusive o tributário, está em contínua mudança para acompanhar a dinâmica social. Assim, ele deve se adaptar a novas modalidades de negócios, a novas necessidades e demandas sociais. O Fisco não pode, em um mundo cada vez mais competitivo, simplesmente dizer que determinado procedimento ou forma de comercialização – que pode decisivo para a sobrevivência da empresa – não pode ser implementado porque não está previsto no sistema. Ao Fisco compete obter os recursos necessários ao financiamento do setor público, na forma da lei, e não constituir entrave às atividades comerciais.

Vejamos algumas situações específicas. O espaço destinado à fundamentação do ato fiscal pode ser demasiadamente exíguo o que obriga a um laconismo que pode caracterizar cerceamento do direito de defesa. O sistema pode não prever a pluralidade de sujeitos passivos – responsáveis solidários e subsidiários – a estes não será dada oportunidade de apresentar defesa administrativa o que pode inviabilizar uma futura execução fiscal, com redirecionamento para o co-responsável.

O que acontece é que o “sistema”, abandonado à pouca imaginação de programadores e analistas, foi concebido muito rígido e não admite mudanças. O resultado é que qualquer modificação implica altos custos.

É fácil entender que os profissionais da informática projetem o “sistema” do modo que julgam ser mais eficiente, ou seja, com o mínimo de diversidade e menor custo. Qualquer desvio das rotinas básicas adotadas não deve ser permitido, em nome da segurança.

Mas isso não funciona no mundo do direito. Não podemos negar direitos fundamentais do cidadão-contribuinte porque o “sistema” não prevê determinado procedimento. Os direitos e garantias fundamentais, como os previstos no art. 5º da Constituição, não podem ser negados ao cidadão por causa das insuficiências de uma máquina mal projetada.

Com isso, estamos constantemente sendo confrontados com o dilema eficiência vs. legalidade. O “sistema”, do seu ponto de vista tacanho e limitado, é eficiente, mas à custa do sacrifício de direitos fundamentais do cidadão-contribuinte. O “sistema” e a legalidade, no atual estado das coisas, são incompatíveis. À evidência, deve prevalecer o direito sobre o “sistema”. Em um Estado Democrático de Direito, as leis, não o “sistema”, resultam da vontade soberana do povo.

Para resolver o impasse, devemos procurar uma nova abordagem. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que analistas e programadores são incompetentes em matéria jurídica. Em segundo lugar, falta o necessário diálogo entre os profissionais da informática e os juristas. Não se pode deixar a tomada de decisões a cargo dos analistas e programadores. A decisão deve ser do jurista. O profissional da informática deve desistir da sua arrogância e reconhecer a sua subordinação ao jurista: um deve tomar as decisões; o outro, as executar.


O “sistema” não deve ser concebido de forma rígida, mas possibilitar a mudança, para atender às necessidades do ordenamento jurídico. Os programas devem mais flexíveis e adaptáveis, para atender satisfatoriamente situações concretas impostas pela prática do direito no dia a dia. 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Transparência, controle social e interesse público

Velocino Pacheco Filho

          No dia onze do corrente, Florianópolis sediou o 5º Seminário Catarinense sobre Transparência Pública e Controle Social. Agora que já existe uma Lei de Transparência e portais da transparência em funcionamento, podemos perguntar: o que o cidadão está fazendo com essa informação?
         
          Um dos painéis teve como tema “o dever do Estado no fomento ao controle social”. Após a exposição dos painelistas, a palavra foi franqueada ao público presente. Uma pergunta foi feita logo de imediato: porque o Estado iria fomentar o controle social?

          Com efeito, o senso comum nos sugere que não faz sentido o Estado estimular o surgimento de entidades na sociedade civil com o objetivo manifesto de controle e fiscalização das ações e políticas do Estado. Seria criar empecilhos a si mesmo. Esse raciocínio seria válido se encararmos o Estado como uma entidade particular, voltada para a defesa de seus interesses particulares.

          Mas não é esse o caso do Estado. Pelo contrário, quando dizemos que o interesse público prevalece sobre os interesses particulares estamos nos referindo a um interesse que não é o interesse do Estado como particular. Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo):

“... independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesse públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extra jurídico), aos interesse de qualquer outro sujeito”.

          Os doutrinadores distinguem entre interesse público primário e secundário. O interesse público primário – interesse público em sentido estrito – é o cumprimento do ordenamento jurídico, principalmente no que se refere à realização do bem comum e os valores adotados pela Constituição Federal. Este é o interesse público contra o qual não prevalecem os interesses particulares. O interesse público secundário, por sua vez, é o interesse que o Estado tem na preservação de seu patrimônio, como toda e qualquer pessoa privada. Sobre essa matéria, comenta Marçal Justem Filho (Curso ...):

“... não é casual que a tese da supremacia e indisponibilidade do interesse público tenha de ser acompanhada da diferenciação entre interesse público primário e secundário. Tal deriva do permanente e inafastável risco de que o governante escolha fundado em sua conveniência política pessoal ou partidária, antes do que por homenagem a um ‘Bem Comum’ indeterminado”.

           No Antigo Regime, Luiz XIV podia dizer, com razão: “o Estado sou eu”. De fato, o Estado (o Leviatã hobbesiano) decorria do poder do soberano; as leis expressavam a vontade do príncipe; o setor público era financiado pelas rendas privadas da coroa. Porém, no moderno Estado Democrático de Direito o fundamento do Estado é o Povo, as leis expressam a vontade do povo, por meio de seus representantes eleitos; o setor público é financiado pela contribuição de todos, na medida da capacidade contributiva de cada um.

          Se o interesse do Estado, enquanto pessoa privada, devesse prevalecer sobre o interesse das outras pessoas privadas (o cidadão), então não seria possível acionar o Estado para obter reparação de um dano por ele causado. Mas, não é isso que acontece: a responsabilidade do Estado é objetiva. Se causar dano ao particular, este deve ser indenizado.

          Com fina percepção, Raquel Cavalcanti Ramos Machado (Interesse Público e Direitos do Contribuinte) comenta que “tendo o Estado, em última análise, surgido para fazer valer as normas de conduta e assim tornar viável a subsistência de grupos sociais cada vez mais complexos, não faz sentido que o Estado invoque um outro propósito, seja ele qual for, para descumprir essas normas, tornando-as ineficazes”.

          Porém, nem sempre o administrador público tem a percepção de que o interesse público (em sentido estrito ou interesse público primário) não é o mesmo que o interesse do Estado como pessoa particular (ou interesse público secundário). Nisso reside o erro de querer administrar o Estado como se fosse uma empresa. O Estado tem outro interesse, além da preservação do seu patrimônio: o interesse primordial do Estado é a realização do bem comum, a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, o cumprimento dos valores albergados na Constituição, a realização do ordenamento jurídico, enfim.

          Assim, é do interesse do Estado fomentar o controle dos seus atos pela sociedade civil e do fiel cumprimento da lei. Se o diretor de uma empresa deve satisfações aos seus acionistas, também o administrador público deve satisfações aos cidadãos que constituem a verdadeira fonte do poder. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO

Velocino Pacheco Filho

          Dispõe o art. 5º, LVII, da Constituição da República que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Ou seja, presume-se a inocência; a culpa deve ser provada.

          A presunção de inocência, formulada originalmente na Magna Carta (Runnymed, 1215), constitui um dos pilares em que se assenta o direito penal moderno.  Da presunção de inocência decorre a vedação à auto-incriminação (ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo), o direito de ser ouvido, o direito ao silêncio (CF, art. 5°, LXIII) etc.

          A presunção de inocência está estreitamente relacionada a outros princípios processuais como o do contraditório e da ampla defesa, do direito ao silêncio, do duplo grau de jurisdição, da produção de provas etc. Em síntese, a presunção de inocência assegura ao réu a condição de sujeito de direitos dentro da relação processual.

          Tecidas essas considerações, pergunta-se: a presunção de inocência restringe-se à esfera do direito penal ou tem aplicação em outras províncias do direito? Mais especificamente, aplica-se ao contencioso administrativo tributário?

          O art. 5°, LV, assegura expressamente a aplicação do contraditório e a ampla defesa, “com os meios e os recursos a ela inerentes”, ao processo administrativo. Por qual razão não se aplicaria também a presunção de inocência com a qual guardam tão estreita relação?

          O Supremo Tribunal Federal (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 450.971 DF, 2011) já aplicou o princípio da presunção de inocência para afastar outras conseqüências do delito enquanto não houver sentença condenatória transitada em julgado (caso de exclusão de candidato em concurso público).

          O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, tem reconhecido a aplicação do princípio ao processo administrativo disciplinar. Assim, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 24.584 SP (DJe 8/3/2010) decidiu que “a imposição de sanção disciplinar está sujeita a garantias muito severas, entre as quais avulta de importância a observância da regra in dubio pro reu, expressão jurídica do princípio da presunção de inocência, intimamente ligado ao princípio da legalidade”. A regra invocada encontra seu correspondente na seara tributária (in dubio pro contribuinte), conforme art. 112 do Código Tributário Nacional.

          O mesmo tribunal (RMS 11.336 PE; DJ 19/2/2001, p. 188) invocou o princípio da presunção de inocência para assegurar ingresso em concurso público por não ter o candidato sofrido qualquer penalidade disciplinar.

          Então, a presunção de inocência, expressamente assegurada no direito penal e processual penal, é aplicável também à esfera disciplinar, bem como a todos os processos estatais que imponham sanções. Ninguém poderá ser considerado culpado antes que seja proferida decisão que aplique penalidade, como resultado do devido processo legal. Podemos concluir que a presunção de inocência deve ser garantida a todas as pessoas naturais ou jurídicas em suas relações com a Administração Pública.

          Conforme acórdão da Egrégia Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 471.894 SP (2006):

          “1. A responsabilidade pela prática de infração tributária, malgrado o disposto  no art. 136 do CTN, deve ser analisada com temperamentos, sobretudo quando não resta comprovado  que  a  conduta  do  vendedor  encontrava-se  inquinada  de  má-fé.  Em hipótese  como  tais,  tem  emprego  o  disposto  no  art.  137  do  CTN,  que  consagra  a responsabilidade subjetiva. Precedentes”.


          A constituição do crédito tributário, bem como sua impugnação junto aos órgãos judicantes administrativos, são modalidades de processo administrativo, de caráter contencioso e sancionatório (pois pune a prática de ilícitos fiscais). Portanto, deve ter aplicação a tais processos o princípio da presunção de inocência, enquanto não for declarada a culpa, em decisão da qual não caiba mais recurso na esfera administrativa. Antes disso, o sujeito passivo não deve sofrer nenhuma das conseqüências devidas à prática da infração.