Velocino Pacheco Filho
Os Estados justificam a adoção do regime de substituição tributária “para a frente” – o ICMS devido pelo varejista é recolhido antecipadamente pelo industrial, importador ou atacadista, na qualidade de contribuinte substituto – argumentando que assegura a concorrência leal, na medida que neutraliza o efeito da sonegação sobre os preços: o sonegador seria onerado pelo mesmo imposto que o contribuinte não sonegador, já que ambos pagariam o mesmo valor de ICMS, recolhido por substituição tributária.
Argumenta-se que quando o imposto é retido por antecipação, não importa se será revendido, no decurso da cadeia de circulação da mercadoria, por uma empresa “séria” ou por um sonegador contumaz, já que a retenção será igual para ambos. Caso não houvesse a retenção antecipada do imposto, o caminho estaria aberto para o subfaturamento e a evasão tributária, mediante ocultação da ocorrência do fato gerador. A incorporação prévia do lucro à base de cálculo teria o efeito de garantir que o produto chegue ao varejo pelo mesmo preço, independentemente de quem seja o revendedor.
Procede esse raciocínio? A livre concorrência consta entre os princípios informadores da ordem econômica, relacionados no art. 170 da Constituição da República, juntamente com a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego. Ou seja, o constituinte optou por uma economia de mercado, onde os preços são determinados pelo livre jogo das forças de mercado – oferta e demanda – os quais indicam “o que, quanto, como e para quem produzir”. A livre concorrência e, por conseguinte, a economia de mercado, constitui uma escolha do constituinte. Os preços devem ser determinados pelo mercado e não por algum burocrata meticuloso, encerrado entre as paredes de alguma repartição do Governo.
Ora, uma economia de mercado requer uma tributação neutra sobre o consumo, que não influencie as decisões dos agentes econômicos. Contudo, tributação neutra não significa simples não-intervenção do Estado na economia, como queria o antigo paradigma liberal. Estamos falando em neutralidade na tributação sobre o consumo e não em relação ao sistema econômico em geral, em setores onde pode ser exercida a função indutora da tributação. Mesmo em relação ao mercado, deve ser mantido um equilíbrio com os demais valores prestigiados pelo constituinte, como o tratamento favorecido à microempresa, a busca do pleno emprego, a proteção ao meio-ambiente etc.
Um motivo para a intervenção do Estado na economia é justamente a proteção da livre concorrência, conforme dispõe o § 4º do art. 173 da Constituição: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Em suma, espera-se que o Estado aja com imparcialidade, sem criar condições desiguais de concorrência entre os agentes econômicos.
Então se fala em neutralidade tributária no sentido de não interferência do tributo nas relações de mercado, tornando determinada operação mais vantajosa para um ou mais desvantajosa para outro. Neutralidade tributária significa que as decisões dos agentes econômicos (o que e quanto ofertar no mercado) deve depender de fatores econômicos (demanda e oferta) e não da incidência de tributos.
A justificativa oficial não considera a hipótese de que o oferecimento do produto a preço menor não é necessariamente decorrente de fraude e sonegação, mas de maior competência do concorrente. O interesse das grandes empresas – dotadas de poder de monopólio – no sistema de substituição tributária pode apenas estar encobrindo a sua própria ineficiência, na medida em que o Poder Público garante a sua margem de lucratividade. Porque ser eficiente se o Poder Público as protege contra as incertezas da concorrência?
A substituição tributária constitui, portanto, uma exceção à regra da não-cumulatividade, já que todo o tributo é exigido em uma única fase do ciclo de comercialização.
Na substituição tributária “para frente” o tributo que seria devido na última operação do ciclo de comercialização (do varejista para o consumidor final) é exigido antecipadamente de quem inaugura o ciclo – o produtor, o importador ou o atacadista. Nesse caso, o imposto exigido do substituto é calculado sobre base de cálculo arbitrada, com afastamento da base de cálculo real correspondente à operação presumida que deverá ser realizada pelo substituído. Naturalmente, ela representa o abandono de qualquer tributação neutra sobre o consumo e, por conseguinte, de uma tributação compatível com o princípio da livre concorrência, já que a incidência do tributo passa a ser fator relevante nas decisões empresariais.
Quando duas empresas concorrem no mercado, deverá vencer a que for mais eficiente, colocando seu produto a preços mais baixos que o concorrente ou ofertando um produto de melhor qualidade. O tributo, no caso, irá integrar a estrutura de custos. O empresário mais eficiente, que consegue reduzir os seus custos e oferecer seus produtos a preços mais competitivos, espera-se, irá conseguir uma fatia de mercado maior que o de seu concorrente.
Contudo, com regime de substituição tributária “para a frente” será cobrado o tributo sobre um preço estimado que não leva em conta a eficiência do empresário. Para o Fisco, não interessa se o empresário mais eficiente oferece seu produto a um preço menor. A base de cálculo do fato gerador presumido é a mesma.
Tem-se assim nítida desvantagem concorrencial sofrida pelo empresário eficiente, que tem condições de oferecer preços mais baixos ao mercado do que aqueles fixados por presunção do Fisco, pois irá repassar ao consumidor o mesmo valor do tributo que aqueles que pratiquem operações com valores iguais ou mesmo superiores ao arbitrado. Por conseguinte, podemos concluir que a substituição tributária “para a frente” não é compatível com a livre concorrência.
Conforme Karl Engisch, haveria uma contradição teleológica sempre que o legislador, com determinadas normas, vise determinado fim, mas, com outras normas afasta as medidas necessárias a alcançar os fins visados pelas primeiras. Assim, embora a Constituição consagre a economia de mercado, admite a intervenção do Estado na economia, para priorizar a valorização do trabalho, que, ao lado da livre iniciativa, constituem fundamentos, não só da ordem econômica, mas também da própria República. Ora, a substituição tributária “para frente”, introduzida pelo Poder Constituinte Derivado (§ 7º do art. 150 da Constituição), ao se substituir ao mercado, determinando a margem de valor adicionado e adotando preços de pauta, frustra os fins visados pelo Poder Constituinte Originário: isto é, estabelecer uma economia de mercado, com base no princípio da livre concorrência.
Se o argumento da proteção à concorrência leal é falacioso, qual a justificativa de adotar a substituição tributária para frente? A resposta é simples: ela proporciona economia dos meios, materiais e humanos, à disposição do Fisco. Com efeito, a substituição tributária permite que os trabalhos de fiscalização concentram-se em poucas empresas (indústrias, importadores e atacadistas), no lugar de dispersar os esforços com grande número de empresas varejistas.
A razão pragmática de garantir a arrecadação com o menor custo, mesmo com preterição de direitos fundamentais, mesmo afastando a relação necessária entre a base de cálculo do tributo e a materialidade do fato gerador (“a perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência” como lecionava Ataliba), è a única justificativa para a adoção da substituição tributária “para frente”.