DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

domingo, 13 de abril de 2014

O Simples Nacional e suas aporias

Velocino Pacheco Filho

Conforme o Dicionário Aurélio, as aporias constituem dificuldades, de ordem racional, decorrentes de um raciocínio, do seu conteúdo; dificuldade, impasse, paradoxo, enigma, estado de perplexidade. Segundo Aristóteles, seria uma “igualdade de conclusões contraditórias”. Exemplos famosos de aporias na antiguidade são os paradoxos de Zenão e os Diálogos aporéticos de Platão (em que é oferecida a aporia, mas não a solução).

A aporia pode ser entendida, na ótica de Derrida, como um impasse ou paradoxo que subverte o texto ou enfraquece sua própria estrutura retórica, desmantelando ou desconstruindo a si mesmo.

O constituinte de 88 colocou entre os princípios da ordem econômica o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (CF, art. 170, IX). Já o art. 179 determina que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento tributário diferenciado visando incentivá-las pela simplificação, redução ou eliminação de suas obrigações tributárias. 

Então, o objetivo seria incentivar as microempresas e empresas de pequeno porte, conforme dispusesse a legislação da União, de cada Estado e de cada Município, em suas respectivas competências. As medidas poderiam ser, a critério de cada entidade tributante, para simplificar, reduzir ou eliminar as obrigações tributárias.

Então, a União criou o Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – Simples (Lei 9.137/1996), abrangendo impostos e contribuições federais. Os Estados e Municípios poderiam, mediante convênio, aderir ao Simples, para cobrança do ICMS e do ISS, respectivamente. 

O Simples Federal foi analisado por Eliud José Pinto da Costa, em oportuno artigo – “As complicações Jurídicas do Simples (Lei Federal nº 9.317/96)” –, publicado no nº 25 da Revista Dialética de Direito Tributário, de outubro de 1997. Parafraseando Becker, diz o articulista que o “manicômio não mais alberga um punhado de normas contraditórias, mas um verdadeiro arsenal de atos normativos inválidos dentro do sistema constitucional”.

Primeiro aborda a questão de legislar sobre tributos por medidas provisórias, matéria superada pela costumeira via legislativa: a EC 32/2001 admite expressamente esse meio legislativo, conforme a redação dada ao § 2º do art. 62.

Mais grave é a mutilação das características típicas dos tributos envolvidos, como o princípio da não-cumulatividade, próprios do IPI e do ICMS. O regime do Simples ignora simplesmente a não cumulatividade o que revela a aporia já que o Simples não seria tributo novo mas simplesmente um sistema integrado de pagamento de impostos e contribuições já existentes. É de supor que as características dos tributos que o compõe fossem preservadas.

O mesmo acontece com o princípio da seletividade das alíquotas, facultativo para o ICMS e obrigatório para o IPI, segundo o qual, os bens supérfluos deveriam ser taxados com alíquotas maiores e os bens de maior necessidade, por alíquotas menores. O Simples também ignora a seletividade das alíquotas.

A competência para legislar sobre tributos é indelegável, tanto ao Executivo, como a outra pessoa jurídica de direito público. Assim, a adesão ao Simples por meio de convênio seria contrária ao ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Afinal, convênio não é lei. Nem os Estados e Municípios podem ceder para a União a sua competência legislativa nessa matéria.

Agora a pergunta: o Simples é tributo novo? Qual seria o fato gerador e a base de cálculo dessa nova exação?  O exercício da competência residual prevista no art. 154, I, da CF, envolve alguns requisitos, nenhum dos quais atendidos pelo Simples: (i) instituído por lei complementar; (ii) ser não cumulativo; (iii) não ter fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição; e (iv) distribuir 20% do produto da arrecadação com os Estados e com o Distrito Federal.

O articulista conclui, com simplicidade: “O Simples é inconstitucional”.

Com efeito, se o Simples fosse tributo novo, deveria atender às exigências da CF para o exercício da competência legislativa residual; se fosse apenas um regime unificado de impostos e contribuições, deveriam ser preservadas as características dos impostos e contribuições que o compõe. Caso contrário, tratar-se-ia de exação inconstitucional.

Voltando à carga, o Poder Constituinte Derivado acrescentou (EC 42/2003) alínea “d” ao inciso III do art. 146 da CF, incluindo entre as normas gerais de direito tributário, a definição de tratamento tributário diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do ICMS. O parágrafo único do mesmo artigo (redação da mesma EC) passou a admitir a instituição de regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Assim, foi criada uma fundamentação constitucional para a instituição do Simples Nacional, pela Lei Complementar 123, de 2006, agora obrigando os Estados e Municípios, mas recaindo nas mesmas aporias já apontadas por Eliud José Pinto da Costa, em seu artigo. O Simples Nacional, como já acontecia com o Simples Federal, continua inconstitucional. O parágrafo único do art. 146 da Constituição, acrescido pela Emenda 42/2003, autoriza a instituição de regime único de pagamento, preservadas as características de cada um dos tributos que abrange, mas não autoriza a instituição do Simples Nacional, como desenhado.

Esses desmandos da União, usurpando competência tributária de Estados e Municípios, revogando princípios constitucionais como os da não-cumulatividade e da seletividade das alíquotas, demonstram a fragilidade da Federação Brasileira, que, ao contrário dos EEUU, não se formou pela união de Estados, mas pela promoção das antigas províncias imperiais a Estados federados. 

A maior ameaça à Federação, no Brasil, não é a secessão dos Estados, mas a reversão a um Estado unitário, devido à tendência centralizadora da União. 

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Para uma teoria (im)pura do direito tributário

Velocino Pacheco Filho

Hans Kelsen, em Teoria Pura do Direito, procura fazer uma descrição neutra e objetiva do fenômeno jurídico. A proposta de “pureza” metodológica se traduz em desvencilhar o direito de todos os elementos egressos de outros ramos da ciência (a psicologia, a sociologia, a teoria política etc.). Não deveriam ser feitas quaisquer considerações que não fossem estritamente jurídicas nem tomar como objeto de conhecimento qualquer outra coisa que não fossem as normas jurídicas. O próprio conceito de “justiça” foi considerado como não pertencente ao direito.

Como contraponto, vamos considerar o comentário de NIcos Poulantzas: “Frequentemente o Estado age transgredindo a lei-regra que edita desviando-se da lei ou agindo contra a própria lei. Todo o sistema autoriza, em sua discursividade, delineando  como variável  da regra do jogo que organiza, o não respeito pelo Estado-poder de sua própria lei”.

Esse último autor saliente o fato de como o ordenamento jurídico pode ser ignorado ou descumprido, em nome das “razões de Estado”. Desse modo, a legalidade pode ser compensada por “apêndices” de ilegalidade. Tratar-se-ia o mais das vezes, segundo ele, de operações ideológicas de ocultação “que sustenta o direito”.

Até um tributarista tido como conservador, como Ives Gandra da Silva Martins, desabafa que “mesmo os bons legisladores fazem leis que ensejam desigualdades, quase sempre beneficiando mais os que as elaboram do que os que estão fora do núcleo do poder”. O que corrobora o entendimento de G. Mosca de que a democracia não é propriamente o “governo do povo”, mas apenas uma forma de selecionar a elite governante.

Por outro lado, tendo por base a classificação das contradições proposta por Karl Engisch, podemos destacar as contradições valorativas (quando o legislador não se mantém fiel à valoração por ele adotada), as contradições teleológicas (“o legislador visa com determinadas normas determinado fim, mas através de outras normas rejeita aquelas medidas que se apresentam como as únicas capazes de servirem de meio para alcançar tal fim”) e as contradições de princípios (“a cada passo topamos com preceitos do passado que, nos quadros da nossa atual ordem jurídica, nos parecem como contrários aos princípios, como ‘corpos estranhos’”).

Derrida (“Força de lei: fundamento místico da autoridade”) questiona justamente a validação e fundamentação do direito em bases míticas ou em um ato de violência original.  “A autoridade da lei não pode apoiar-se senão em si mesma: o direito nada mais é que uma violência sem fundamento”. Daí o discurso justificador do direito como ocultação do fundamento mítico da autoridade.

Ora, o direito tributário contém numerosos exemplos dessas contradições valorativas, teleológicas e de princípios que põe em questão toda a fundamentação do direito. A contradição, em muitos casos, deixa transparecer, de forma muito clara, esse “descumprimento” da lei pelo próprio Estado. Não acidentalmente, pela superposição de camadas legislativas, como sugere Engisch, mas intencionalmente, como uma espécie de sabotagem do direito produzido pelo Estado. Vejamos alguns casos concretos:

Cedendo a reclamações generalizadas, a Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir que veio disciplinar as normas gerais relativas ao ICMS) adotou o princípio dos créditos financeiros, em substituição aos créditos físicos, até então adotados pelo direito tributário brasileiro. Assim, o art. 20 do referido diploma dispõe que “é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente”. No entanto, o art. 33 do mesmo pergaminho restringe a aplicação do art. 20, permitindo o crédito das mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento apenas em data futura e que veio sendo sucessivamente adiada (para as calendas gregas), de modo a retirar completamente a eficácia da regra do art. 20, no que se refere a materiais de consumo.

Por outro lado, os tribunais, decidindo sobre  casos concretos, tem colaborado para restringir os créditos financeiros, ao não admitir crédito correspondente ao desgaste, aos materiais intermediários ou quando o material não é consumido imediata e integralmente no processo produtivo.

Mais sérias são essas contradições quando envolvem os objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º da Constituição. Assim, o art. 3º, II, elege como um dos objetivos fundamentais o “desenvolvimento nacional”. No entanto, a alíquota do ICMS para energia elétrica e combustíveis foi fixada em 25%. Qual o sentido de tributar tão pesadamente insumos essenciais para o desenvolvimento econômico e social? Além disso, um patamar tão elevado de tributação conflita com o critério da essencialidade, adotado pelo art. 155, § 2º, III, para a graduação das alíquotas seletivas. Ninguém irá sustentar que energia elétrica e combustíveis são mercadorias de consumo supérfluo ou suntuário. No entanto, essas elevadas alíquotas têm contado com o beneplácito dos tribunais superiores.

Falando da seletividade das alíquotas e do critério da essencialidade, a Resolução do Senado 95/1996 fixou em 4% a alíquota do transporte aéreo interestadual de passageiros, carga e mala postal o que contrasta com as alíquotas que oneram o transporte rodoviário, utilizado pela maioria do povo brasileiro.

O objetivo de redução das desigualdades sociais de que trata o inciso III do  artigo 3º da Constituição não encontra correspondência na regressividade do sistema tributário brasileiro que onera sobretudo os mais pobres e privilegia os mais abastados. Somos um País de alta concentração de renda: 10% da população detém 50% da renda nacional. Em contraste, as renda que sofrem menor tributação, conforme revela estudo do IPEA, referem-se à propriedade imobiliária. 

A regressividade do sistema tributário brasileiro pode ser em parte explicada pela alta participação dos tributos sobre o consumo no perfil da arrecadação. Como consequência, as classes de menor renda, com sua baixa propensão a poupar são as mais sacrificadas.

Por fim, o princípio da impessoalidade referido no art. 37 da Constituição, como um dos princípios que informam a administração pública (aí incluída a administração tributária) é incompatível com os tratamentos tributários privilegiados, instituídos por regime especial, TTD e outros atos administrativos. Além disso, tais tratamentos são contrários ao princípio insculpido no art. 150, II, da Lei Maior, que veda expressamente instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (princípio da isonomia tributária).

A Constituição Federal, art. 155, § 2º, XII, g, condiciona a concessão de isenção e demais benefícios fiscais, em matéria de ICMS, à celebração de convênio entre os Estados-membros. Contudo, o art. 43 da Lei 10.297/1996 – que trata de medidas para proteção da economia catarinense – tem sido interpretado como um permissivo para conceder benefícios fiscais sem a devida autorização do Confaz. 

Para os que creem em universos paralelos, tudo se passa como se, paralelamente ao Estado de Direito, subsistisse um Estado de não-Direito, como sua imagem especular.