Velocino Pacheco Filho
Conforme o Dicionário Aurélio, as aporias constituem dificuldades, de ordem racional, decorrentes de um raciocínio, do seu conteúdo; dificuldade, impasse, paradoxo, enigma, estado de perplexidade. Segundo Aristóteles, seria uma “igualdade de conclusões contraditórias”. Exemplos famosos de aporias na antiguidade são os paradoxos de Zenão e os Diálogos aporéticos de Platão (em que é oferecida a aporia, mas não a solução).
A aporia pode ser entendida, na ótica de Derrida, como um impasse ou paradoxo que subverte o texto ou enfraquece sua própria estrutura retórica, desmantelando ou desconstruindo a si mesmo.
O constituinte de 88 colocou entre os princípios da ordem econômica o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (CF, art. 170, IX). Já o art. 179 determina que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento tributário diferenciado visando incentivá-las pela simplificação, redução ou eliminação de suas obrigações tributárias.
Então, o objetivo seria incentivar as microempresas e empresas de pequeno porte, conforme dispusesse a legislação da União, de cada Estado e de cada Município, em suas respectivas competências. As medidas poderiam ser, a critério de cada entidade tributante, para simplificar, reduzir ou eliminar as obrigações tributárias.
Então, a União criou o Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – Simples (Lei 9.137/1996), abrangendo impostos e contribuições federais. Os Estados e Municípios poderiam, mediante convênio, aderir ao Simples, para cobrança do ICMS e do ISS, respectivamente.
O Simples Federal foi analisado por Eliud José Pinto da Costa, em oportuno artigo – “As complicações Jurídicas do Simples (Lei Federal nº 9.317/96)” –, publicado no nº 25 da Revista Dialética de Direito Tributário, de outubro de 1997. Parafraseando Becker, diz o articulista que o “manicômio não mais alberga um punhado de normas contraditórias, mas um verdadeiro arsenal de atos normativos inválidos dentro do sistema constitucional”.
Primeiro aborda a questão de legislar sobre tributos por medidas provisórias, matéria superada pela costumeira via legislativa: a EC 32/2001 admite expressamente esse meio legislativo, conforme a redação dada ao § 2º do art. 62.
Mais grave é a mutilação das características típicas dos tributos envolvidos, como o princípio da não-cumulatividade, próprios do IPI e do ICMS. O regime do Simples ignora simplesmente a não cumulatividade o que revela a aporia já que o Simples não seria tributo novo mas simplesmente um sistema integrado de pagamento de impostos e contribuições já existentes. É de supor que as características dos tributos que o compõe fossem preservadas.
O mesmo acontece com o princípio da seletividade das alíquotas, facultativo para o ICMS e obrigatório para o IPI, segundo o qual, os bens supérfluos deveriam ser taxados com alíquotas maiores e os bens de maior necessidade, por alíquotas menores. O Simples também ignora a seletividade das alíquotas.
A competência para legislar sobre tributos é indelegável, tanto ao Executivo, como a outra pessoa jurídica de direito público. Assim, a adesão ao Simples por meio de convênio seria contrária ao ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Afinal, convênio não é lei. Nem os Estados e Municípios podem ceder para a União a sua competência legislativa nessa matéria.
Agora a pergunta: o Simples é tributo novo? Qual seria o fato gerador e a base de cálculo dessa nova exação? O exercício da competência residual prevista no art. 154, I, da CF, envolve alguns requisitos, nenhum dos quais atendidos pelo Simples: (i) instituído por lei complementar; (ii) ser não cumulativo; (iii) não ter fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição; e (iv) distribuir 20% do produto da arrecadação com os Estados e com o Distrito Federal.
O articulista conclui, com simplicidade: “O Simples é inconstitucional”.
Com efeito, se o Simples fosse tributo novo, deveria atender às exigências da CF para o exercício da competência legislativa residual; se fosse apenas um regime unificado de impostos e contribuições, deveriam ser preservadas as características dos impostos e contribuições que o compõe. Caso contrário, tratar-se-ia de exação inconstitucional.
Voltando à carga, o Poder Constituinte Derivado acrescentou (EC 42/2003) alínea “d” ao inciso III do art. 146 da CF, incluindo entre as normas gerais de direito tributário, a definição de tratamento tributário diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do ICMS. O parágrafo único do mesmo artigo (redação da mesma EC) passou a admitir a instituição de regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Assim, foi criada uma fundamentação constitucional para a instituição do Simples Nacional, pela Lei Complementar 123, de 2006, agora obrigando os Estados e Municípios, mas recaindo nas mesmas aporias já apontadas por Eliud José Pinto da Costa, em seu artigo. O Simples Nacional, como já acontecia com o Simples Federal, continua inconstitucional. O parágrafo único do art. 146 da Constituição, acrescido pela Emenda 42/2003, autoriza a instituição de regime único de pagamento, preservadas as características de cada um dos tributos que abrange, mas não autoriza a instituição do Simples Nacional, como desenhado.
Esses desmandos da União, usurpando competência tributária de Estados e Municípios, revogando princípios constitucionais como os da não-cumulatividade e da seletividade das alíquotas, demonstram a fragilidade da Federação Brasileira, que, ao contrário dos EEUU, não se formou pela união de Estados, mas pela promoção das antigas províncias imperiais a Estados federados.
A maior ameaça à Federação, no Brasil, não é a secessão dos Estados, mas a reversão a um Estado unitário, devido à tendência centralizadora da União.