DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Substituição tributária e livre concorrência

Velocino Pacheco Filho

Os Estados justificam a adoção do regime de substituição tributária “para a frente” – o ICMS devido pelo varejista é recolhido antecipadamente pelo industrial, importador ou atacadista, na qualidade de contribuinte substituto – argumentando que assegura a concorrência leal, na medida que neutraliza o efeito da sonegação sobre os preços: o sonegador seria onerado pelo mesmo imposto que o contribuinte não sonegador, já que ambos pagariam o mesmo valor de ICMS, recolhido por substituição tributária.

Argumenta-se que quando o imposto é retido por antecipação, não importa se será revendido, no decurso da cadeia de circulação da mercadoria, por uma empresa “séria” ou por um sonegador contumaz, já que a retenção será igual para ambos. Caso não houvesse a retenção antecipada do imposto, o caminho estaria aberto para o subfaturamento e a evasão tributária, mediante ocultação da ocorrência do fato gerador. A incorporação prévia do lucro à base de cálculo teria o efeito de garantir que o produto chegue ao varejo pelo mesmo preço, independentemente de quem seja o revendedor.

Procede esse raciocínio? A livre concorrência consta entre os princípios informadores da ordem econômica, relacionados no art. 170 da Constituição da República, juntamente com a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego. Ou seja, o constituinte optou por uma economia de mercado, onde os preços são determinados pelo livre jogo das forças de mercado – oferta e demanda – os quais indicam “o que, quanto, como e para quem produzir”. A livre concorrência e, por conseguinte, a economia de mercado, constitui uma escolha do constituinte. Os preços devem ser determinados pelo mercado e não por algum burocrata meticuloso, encerrado entre as paredes de alguma repartição do Governo.

Ora, uma economia de mercado requer uma tributação neutra sobre o consumo, que não influencie as decisões dos agentes econômicos. Contudo, tributação neutra não significa simples não-intervenção do Estado na economia, como queria o antigo paradigma liberal. Estamos falando em neutralidade na tributação sobre o consumo e não em relação ao sistema econômico em geral, em setores onde pode ser exercida a função indutora da tributação. Mesmo em relação ao mercado, deve ser mantido um equilíbrio com os demais valores prestigiados pelo constituinte, como o tratamento favorecido à microempresa, a busca do pleno emprego, a proteção ao meio-ambiente etc.

Um motivo para a intervenção do Estado na economia é justamente a proteção da livre concorrência, conforme dispõe o § 4º do art. 173 da Constituição: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Em suma, espera-se que o Estado aja com imparcialidade, sem criar condições desiguais de concorrência entre os agentes econômicos.

Então se fala em neutralidade tributária no sentido de não interferência do tributo nas relações de mercado, tornando determinada operação mais vantajosa para um ou mais desvantajosa para outro. Neutralidade tributária significa que as decisões dos agentes econômicos (o que e quanto ofertar no mercado) deve depender de fatores econômicos (demanda e oferta) e não da incidência de tributos.

A justificativa oficial não considera a hipótese de que o oferecimento do produto a preço menor não é necessariamente decorrente de fraude e sonegação, mas de maior competência do concorrente. O interesse das grandes empresas – dotadas de poder de monopólio – no sistema de substituição tributária pode apenas estar encobrindo a sua própria ineficiência, na medida em que o Poder Público garante a sua margem de lucratividade. Porque ser eficiente se o Poder Público as protege contra as incertezas da concorrência?

A substituição tributária constitui, portanto, uma exceção à regra da não-cumulatividade, já que todo o tributo é exigido em uma única fase do ciclo de comercialização.

Na substituição tributária “para frente” o tributo que seria devido na última operação do ciclo de comercialização (do varejista para o consumidor final) é exigido antecipadamente de quem inaugura o ciclo – o produtor, o importador ou o atacadista. Nesse caso, o imposto exigido do substituto é calculado sobre base de cálculo arbitrada, com afastamento da base de cálculo real correspondente à operação presumida que deverá ser realizada pelo substituído. Naturalmente, ela representa o abandono de qualquer tributação neutra sobre o consumo e, por conseguinte, de uma tributação compatível com o princípio da livre concorrência, já que a incidência do tributo passa a ser fator relevante nas decisões empresariais.

Quando duas empresas concorrem no mercado, deverá vencer a que for mais eficiente, colocando seu produto a preços mais baixos que o concorrente ou ofertando um produto de melhor qualidade. O tributo, no caso, irá integrar a estrutura de custos. O empresário mais eficiente, que consegue reduzir os seus custos e oferecer seus produtos a preços mais competitivos, espera-se, irá conseguir uma fatia de mercado maior que o de seu concorrente.

Contudo, com regime de substituição tributária “para a frente” será cobrado o tributo sobre um preço estimado que não leva em conta a eficiência do empresário. Para o Fisco, não interessa se o empresário mais eficiente oferece seu produto a um preço menor. A base de cálculo do fato gerador presumido é a mesma.

Tem-se assim nítida desvantagem concorrencial sofrida pelo empresário eficiente, que tem condições de oferecer preços mais baixos ao mercado do que aqueles fixados por presunção do Fisco, pois irá repassar ao consumidor o mesmo valor do tributo que aqueles que pratiquem operações com valores iguais ou mesmo superiores ao arbitrado. Por conseguinte, podemos concluir que a substituição tributária “para a frente” não é compatível com a livre concorrência.

Conforme Karl Engisch, haveria uma contradição teleológica sempre que o legislador, com determinadas normas, vise determinado fim, mas, com outras normas afasta as medidas necessárias a alcançar os fins visados pelas primeiras. Assim, embora a Constituição consagre a economia de mercado, admite a intervenção do Estado na economia, para priorizar a valorização do trabalho, que, ao lado da livre iniciativa, constituem fundamentos, não só da ordem econômica, mas também da própria República. Ora, a substituição tributária “para frente”, introduzida pelo Poder Constituinte Derivado (§ 7º do art. 150 da Constituição), ao se substituir ao mercado, determinando a margem de valor adicionado e adotando preços de pauta, frustra os fins visados pelo Poder Constituinte Originário: isto é, estabelecer uma economia de mercado, com base no princípio da livre concorrência.

Se o argumento da proteção à concorrência leal é falacioso, qual a justificativa de adotar a substituição tributária para frente?  A resposta é simples: ela proporciona economia dos meios, materiais e humanos, à disposição do Fisco. Com efeito, a substituição tributária permite que os trabalhos de fiscalização concentram-se em poucas empresas (indústrias, importadores e atacadistas), no lugar de dispersar os esforços com grande número de empresas varejistas.

A razão pragmática de garantir a arrecadação com o menor custo, mesmo com preterição de direitos fundamentais, mesmo afastando a relação necessária entre a base de cálculo do tributo e a materialidade do fato gerador (“a perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência” como lecionava Ataliba), è a única justificativa para a adoção da substituição tributária “para frente”.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Princípio da isonomia: condutores autônomos, cooperativados e não cooperativados.

Princípio da isonomia: condutores autônomos, cooperativados e não cooperativados.
Velocino Pacheco Filho
A Lei 7.543, de 30 de dezembro de 1988, que instituiu o IPVA em Santa Catarina, dispõe, no art. 8°, V, “d”, que “não se exigirá o imposto sobre a propriedade de veículos terrestre de aluguel (táxi), dotado ou não de taxímetro, destinado ao transporte público de passageiros”. Conforme art. 7°, § 6°, X, do Regulamento respectivo exige, para a concessão do benefício, documento comprobatório da condição de condutor autônomo de passageiro, na categoria de táxi, fornecido pelo Município, quando se tratar de veículo terrestre de aluguel (táxi).
E quando se tratar de cooperativa de condutores autônomos, também se aplica o benefício?
Evidentemente, o tratamento tributário diferenciado dirige-se exclusivamente aos condutores autônomos, ou seja, aos condutores que seja proprietários dos veículos que conduzem. Por conseguinte, ficam excluídos do benefício os veículos pertencentes a frotas ou empresas de táxi, caso em que os condutores são meros assalariados.
Dispõe o art. 111, II, do Código Tributário Nacional que “interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção”. Como o benefício foi dado aos condutores autônomos de passageiros, deve ser provada essa condição. Além disso, a prova exigida pela legislação tributária deve ser fornecida pela Prefeitura Municipal, não podendo ser suprida por nenhuma outra.
Por outro lado, em nome do princípio da isonomia, não é possível dispensar tratamento favorecido ao condutor autônomo não cooperativado e negar o mesmo tratamento ao condutor cooperativado. O art. 150, II, da Constituição veda expressamente “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”. Assim, os dispositivos pertinentes da legislação tributária devem ser interpretados conforme a Constituição e não autonomamente.
Celso Antônio Bandeira de Mello, em “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade” ensina que deve-se investigar “se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada”. Esse mesmo critério deve ser válido também para a “situação equivalente” a que se refere o constituinte, já que “equivalência” tem maior abrangência que “igualdade”.
Ora, a justificativa racional para o tratamento tributário diferenciado para condutores autônomos e condutores assalariados não tem aplicação para tratamento diferenciado entre condutores autônomos cooperados e não cooperados.
A falta de justificativa racional para o critério discriminatório decorre do art. 3° da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, segundo a qual “celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro”. Assim as cooperativas não visam lucro (o que as distingue das empresas de táxi), mas a cooperação entre os próprios condutores que se organizam em cooperativa para atingir objetivos comuns. Para tanto, cada um contribui com o seu próprio trabalho ou com bens que, no caso, são constituídos pelos veículos (o instrumento de trabalho de cada um) que vão integrar o capital da cooperativa.
As cooperativas foram definidas pelo art. 4° da mesma lei como “sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados”, distinguindo-se das demais sociedades, entre outras características, pela “adesão voluntária, com número ilimitado de associados”, “variabilidade do capital social representado por quotas-partes”, limitadas para cada associado e “singularidade de voto”.
Embora as cooperativas sejam dotadas de personalidade jurídica e o respectivo ato constitutivo deva ser arquivado na junta comercial, estão sujeitas a controle pela União, mediante órgão próprio.
As cooperativas são entidades fundamentalmente distintas das empresas, na medida que não existe relação empregatícia entre a cooperativa e os cooperados. Pelo contrário, a cooperativa nada mais é que a associação voluntária dos cooperados (condutores autônomos).

O que justificaria negar aos motoristas autônomos cooperados o mesmo tratamento tributário dado ao motoristas autônomos não cooperados? Afinal, a razão do discrímem é o fato de serem motoristas autônomos. O fato de serem ou não cooperativados é irrelevante para caracterizar o direito ao benefício. O que deve ser comprovado é a condição de motoristas autônomos, na forma prescrita pela legislação.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Reajuste das faixas de tributação do I.T.C.M.D.: confisco ou inconstitucionalidade por omissão?


Fabiano Ramalho

Desde que foi criado pela Lei n° 13.136, de 25/11/2004, o I.T.C.M.D. não teve nenhuma correção nas suas faixas de tributação, que permanecem sendo: 

Até R$ 20.000,00 è 1%
De R$ 20.000,01 a R$ 50.000,00 è 3%
De R$ 50.000,01 a R$ 150.000,00 è 5%
Acima de R$ 150.000,01 è 7%

É certo que o modelo catarinense do I.T.C.M.D. é destaque entre as demais unidades da Federação, dada a progressividade de suas alíquotas, que informa uma certa noção de justiça fiscal. Dessa forma, as transmissões de valores maiores pagarão mais impostos, em evidente respeito à capacidade contributiva.

No entanto, há um efeito perverso decorrente do engessamento das suas faixas de tributação. Desde 2005, quando entrou em vigor, esse tributo viu a economia mudar de forma drástica. Passamos pela crise de 2008 e, em que pese uma inflação relativamente baixa, testemunhamos uma das maiores valorizações imobiliárias da história brasileira.

Somente no período entre 2008 e 2013, segundo dados do BACEN, essa valorização alcançou a incrível marca de 121,6%, sendo a maior do mundo nesse período, quando comparada com outros 54 países que a medem pelos mesmos critérios.

Só nesse aspecto, já percebemos um desajuste gritante entre as faixas de tributação do I.T.C.M.D. Vamos aos exemplos: Um imóvel que, em 2005 valia R$ 50.000,00 e, portanto, estava sujeito à alíquota de 3%, em 2014 poderá estar sujeito à alíquota de 7%, devido à valorização imobiliária no período.

Outro efeito de elevação indireta do I.T.C.M.D. está na desconsideração dos efeitos da inflação sobre as faixas de tributação. Um estudo efetuado pela Câmara de Ética Tributária do Estado de Santa Catarina apurou que entre 01/03/2005 e 28/02/2014, a inflação acumulada medida pelo IGPM-FGV e pelo INPC-IBGE foi de, respectivamente, 62,3279% e 58,8067%.

A simples correção de valores com base na variação do IGPM-FGV, por exemplo, importaria na elevação das faixas de tributação para: 

Até R$ 32.265,58 è 1%
De R$ 32.265,59 a R$ 81.163,95 è 3%
De R$ 81.163,96 a R$ 243.883,50 è 5%
Acima de R$ 243.883,51 è 7%

Podemos perceber, assim, que o contribuinte vem pagando, ao longo dos anos, cada vez mais I.T.C.M.D., o que nos remete à reflexão sobre a existência de confisco ou uma possível inconstitucionalidade.

A Constituição Federal determina, em seu art. 150, I, que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Pois bem, qual é o efeito de deixar de atualizar as faixas de tributação do I.T.C.M.D. senão o aumento do tributo?

Se o contribuinte pagava uma alíquota de 3% em 2005 e agora, em 2014, pelo mesmo bem ou direito, paga uma alíquota de 5% ou 7%, temos que admitir que, sem previsão legal, houve aumento do tributo, o que atrai a inconstitucionalidade da norma, ainda que por omissão do Poder Executivo.

Por outro lado, a sujeição do contribuinte a uma carga tributária maior, à revelia de substrato legal, importa em nítido confisco, também vedado pela Constituição Federal, conforme previsto pelo art. 150, IV.

Como podemos ver, a correção das faixas de tributação do I.T.C.M.D. é mais do que necessária para restabelecer o respeito aos princípios constitucionais acima elencados: é uma exigência da Justiça fiscal. Quer seja pela consideração da valorização imobiliária ocorrida a partir de 2005, pela correção monetária no mesmo período ou por ambas, é necessária uma ação positiva e concreta da Secretaria Estadual da Fazenda, para promover os ajustes necessários.

Não é comum ao Estado de Santa Catarina o desrespeito aos direitos e deveres dos contribuintes e esperamos que esse pleito ecoe nas instâncias fazendárias com esse viés. 

REAJUSTE DAS FAIXAS DE TRIBUTAÇÃO DO I.T.C.M.D.: CONFISCO OU INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO?

Fabiano Ramalho


Desde que foi criado pela Lei n° 13.136, de 25/11/2004, o I.T.C.M.D. não teve nenhuma correção nas suas faixas de tributação, que permanecem sendo:  


É certo que o modelo catarinense do I.T.C.M.D. é destaque entre as demais unidades da Federação, dada a progressividade de suas alíquotas, que informa uma certa noção de justiça fiscal. Dessa forma, as transmissões de valores maiores pagarão mais impostos, em evidente respeito à capacidade contributiva.

No entanto, há um efeito perverso decorrente do engessamento das suas faixas de tributação. Desde 2005, quando entrou em vigor, esse tributo viu a economia mudar de forma drástica. Passamos pela crise de 2008 e, em que pese uma inflação relativamente baixa, testemunhamos uma das maiores valorizações imobiliárias da história brasileira.

Somente no período entre 2008 e 2013, segundo dados do BACEN, essa valorização alcançou a incrível marca de 121,6%, sendo a maior do mundo nesse período, quando comparada com outros 54 países que a medem pelos mesmos critérios.

Só nesse aspecto, já percebemos um desajuste gritante entre as faixas de tributação do I.T.C.M.D. Vamos aos exemplos: Um imóvel que, em 2005 valia R$ 50.000,00 e, portanto, estava sujeito à alíquota de 3%, em 2014 poderá estar sujeito à alíquota de 7%, devido à valorização imobiliária no período.

Outro efeito de elevação indireta do I.T.C.M.D. está na desconsideração dos efeitos da inflação sobre as faixas de tributação. Um estudo efetuado pela Câmara de Ética Tributária do Estado de Santa Catarina apurou que entre 01/03/2005 e 28/02/2014, a inflação acumulada medida pelo IGPM-FGV e pelo INPC-IBGE foi de, respectivamente, 62,3279% e 58,8067%.

A simples correção de valores com base na variação do IGPM-FGV, por exemplo, importaria na elevação das faixas de tributação para: 


Podemos perceber, assim, que o contribuinte vem pagando, ao longo dos anos, cada vez mais I.T.C.M.D., o que nos remete à reflexão sobre a existência de confisco ou uma possível inconstitucionalidade.

A Constituição Federal determina, em seu art. 150, I, que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Pois bem, qual é o efeito de deixar de atualizar as faixas de tributação do I.T.C.M.D. senão o aumento do tributo?

Se o contribuinte pagava uma alíquota de 3% em 2005 e agora, em 2014, pelo mesmo bem ou direito, paga uma alíquota de 5% ou 7%, temos que admitir que, sem previsão legal, houve aumento do tributo, o que atrai a inconstitucionalidade da norma, ainda que por omissão do Poder Executivo.

Por outro lado, a sujeição do contribuinte a uma carga tributária maior, à revelia de substrato legal, importa em nítido confisco, também vedado pela Constituição Federal, conforme previsto pelo art. 150, IV.

Como podemos ver, a correção das faixas de tributação do I.T.C.M.D. é mais do que necessária para restabelecer o respeito aos princípios constitucionais acima elencados: é uma exigência da Justiça fiscal. Quer seja pela consideração da valorização imobiliária ocorrida a partir de 2005, pela correção monetária no mesmo período ou por ambas, é necessária uma ação positiva e concreta da Secretaria Estadual da Fazenda, para promover os ajustes necessários.

Não é comum ao Estado de Santa Catarina o desrespeito aos direitos e deveres dos contribuintes e esperamos que esse pleito ecoe nas instâncias fazendárias com esse viés.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O lançamento tributário e o princípio da eficiência

Velocino Pacheco Filho

O art. 37 da Constituição Federal elenca, como princípios informadores da administração pública, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade (ou transparência) e a eficiência.

O tributo, conforme art. 3º do CTN, é cobrado mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Por sua vez, o art. 142 do mesmo diploma legal define lançamento como o procedimento administrativo de constituição do crédito tributário.

Por conseguinte, o lançamento, como atividade administrativa que é, deve obedecer ao princípio da eficiência, ou seja, conseguir o melhor resultado (arrecadação) com o melhor emprego possível dos recursos disponíveis (materiais e humanos).

Porém, o que está subentendido no texto é que a eficiência não se sobrepõe aos demais princípios (legalidade, moralidade, etc.). A eficiência de que fala a Constituição pressupõe a legalidade dos atos da Administração e o respeito pelos direitos fundamentais do cidadão.

Pode acontecer que, na ânsia de cumprir metas de arrecadação, os zelosos funcionários do Fisco passem por cima de direitos fundamentais; se descuidem na coleta de provas convincentes; procurem – por meio de argumentos falaciosos – caracterizar como tributáveis fatos não eleitos pelo legislador; usar, enfim, de má-fé no trato com o contribuinte. Mas, isso não é ser eficiente, no sentido do art. 37 da Constituição; isso é excesso de exação, crime previsto no Código Penal. Eficiência não é apenas exigir elevadas cifras do contribuinte, mas exigir valores efetivamente devidos ao Erário, na forma preconizada em lei, e que possam ser sustentados perante os tribunais.

Lançamento eficiente é aquele que represente efetivo ingresso de recursos no Erário, no lugar de simplesmente engrossar a Dívida Ativa do Estado. O lançamento, para ser considerado eficiente, deve ser irrepreensível, capaz de enfrentar sem sustos os controles administrativos (contencioso administrativo tributário) e judiciais. Para tanto, a eficiência pressupõe o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

O lançamento eficiente deve descrever com precisão e clareza o fato ocorrido e sua correspondência com o fato gerador da obrigação tributária, nos estritos termos como foi previsto em lei; deve identificar corretamente os dispositivos da legislação infringidos ou que dão sustentação à exigência tributária; deve estar acompanhado de provas consistentes que demonstrem os fatos alegados pelo Fisco; a base de cálculo utilizada deve ser consistente com os fatos tributáveis e, quando arbitrada, deve ser transparente de modo a permitir a avaliação contraditória pelo contribuinte. O lançamento eficiente deve estar imbuído do espírito da moralidade administrativa.

Não é eficiente o lançamento que exija tributo sobre fatos não previstos em lei ou que não estejam devidamente demonstrados, mediante provas aceitas pelo direito. Não é eficiente o lançamento que ignore direitos fundamentais ou que cerceie o direito de defesa.


O Fisco, para ser eficiente, deve procurar cobrar todo o imposto devido, mas nem um centavo a mais que o devido.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

A substituição tributária e a repetição do indébito.

Velocino Pacheco Filho

A substituição tributária consiste em atribuir a terceira pessoa, distinta do contribuinte (que tem relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato gerador da obrigação tributária), a condição de responsável pelo pagamento do imposto ou contribuição.

Entre outras modalidades, a lei pode instituir o regime de substituição tributária em relação a fatos geradores que ainda não ocorreram no momento do respectivo pagamento: os contribuintes que estão nas fases iniciais da cadeia de comercialização da mercadoria (importadores, industriais etc.) são responsáveis pelo recolhimento do imposto devido pela operação que destinar a mercadoria a consumidor final (ultima operação da cadeia).

O § 7º do art. 150 da Constituição Federal, acrescido pela Emenda Constitucional nº 3/1993, assegura a imediata e preferencial restituição do imposto recolhido antecipadamente por substituição tributária, caso não se realize o fato gerador presumido. Somente nessa hipótese, o valor recolhido a título de substituição tributária poderá ser restituído.

De fato, conforme acordado pelos Estados no Convênio ICMS 13/1997, considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 1.851), a base de cálculo arbitrada da substituição tributária é definitiva, excluindo a possibilidade de restituição ou de complementação do imposto recolhido.

Mas suponhamos que houve falha no recolhimento do imposto arbitrado. Ainda assim não haveria direito à restituição? O § 7º afastaria as hipóteses elencadas no art. 165 do CTN?

O dispositivo referido assegura a restituição total ou parcial do imposto recolhido no caso de:

a) pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido, em face da legislação tributária aplicável;

b) erro na identificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento.

Mesmo considerando que o valor arbitrado é definitivo, como entende o STF, pode haver erro no pagamento de modo que o valor recolhido resulte indevido, em relação à própria legislação que define o valor arbitrado. Parece que, caracterizada essa situação, o sujeito passivo tem direito à restituição. Nesse caso, é competente para pleitear a restituição o substituto, que efetivamente efetuou o recolhimento. Também nesse caso, a restituição depende da comprovação da condição prevista no art. 166 do CTN.

Já na hipótese do § 7º do art. 150 da CF, é competente para pedir restituição o substituído e não se aplica o disposto no art. 166 do CTN, face a não ocorrência do fato gerador presumido e portanto da impossibilidade de repercussão do ônus tributário sobre o consumidor.

Suponhamos agora que o imposto relativo à substituição tributária foi recolhido, conforme disposto na legislação, sobre determinado volume de combustível. Ora, trata-se de líquido volátil que sofre uma “quebra”, com o tempo, devido à evaporação. O imposto foi calculado exatamente como dispõe a legislação, sem falhas, mas o volume comercializado no varejo é inferior ao que serviu para cálculo da substituição tributária.

Nessa hipótese, não estaria caracterizada a “não realização” do fato gerador presumido? Uma parcela da mercadoria, sobre a qual foi calculado e recolhido imposto por substituição tributária não existe mais, devido à evaporação. Então nos termos do § 7º do art. 150 da Constituição, o substituído poderia pleitear a restituição que deve ser imediata e preferencial.

A mesma situação pode ocorrer em outras hipóteses de “quebra”, pelos mais diversos motivos: temperatura, humidade, sobras, aparas etc. Em todos esses casos, se houve recolhimento antecipado, por substituição tributária, há o direito de pedir restituição.

domingo, 13 de abril de 2014

O Simples Nacional e suas aporias

Velocino Pacheco Filho

Conforme o Dicionário Aurélio, as aporias constituem dificuldades, de ordem racional, decorrentes de um raciocínio, do seu conteúdo; dificuldade, impasse, paradoxo, enigma, estado de perplexidade. Segundo Aristóteles, seria uma “igualdade de conclusões contraditórias”. Exemplos famosos de aporias na antiguidade são os paradoxos de Zenão e os Diálogos aporéticos de Platão (em que é oferecida a aporia, mas não a solução).

A aporia pode ser entendida, na ótica de Derrida, como um impasse ou paradoxo que subverte o texto ou enfraquece sua própria estrutura retórica, desmantelando ou desconstruindo a si mesmo.

O constituinte de 88 colocou entre os princípios da ordem econômica o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (CF, art. 170, IX). Já o art. 179 determina que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento tributário diferenciado visando incentivá-las pela simplificação, redução ou eliminação de suas obrigações tributárias. 

Então, o objetivo seria incentivar as microempresas e empresas de pequeno porte, conforme dispusesse a legislação da União, de cada Estado e de cada Município, em suas respectivas competências. As medidas poderiam ser, a critério de cada entidade tributante, para simplificar, reduzir ou eliminar as obrigações tributárias.

Então, a União criou o Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – Simples (Lei 9.137/1996), abrangendo impostos e contribuições federais. Os Estados e Municípios poderiam, mediante convênio, aderir ao Simples, para cobrança do ICMS e do ISS, respectivamente. 

O Simples Federal foi analisado por Eliud José Pinto da Costa, em oportuno artigo – “As complicações Jurídicas do Simples (Lei Federal nº 9.317/96)” –, publicado no nº 25 da Revista Dialética de Direito Tributário, de outubro de 1997. Parafraseando Becker, diz o articulista que o “manicômio não mais alberga um punhado de normas contraditórias, mas um verdadeiro arsenal de atos normativos inválidos dentro do sistema constitucional”.

Primeiro aborda a questão de legislar sobre tributos por medidas provisórias, matéria superada pela costumeira via legislativa: a EC 32/2001 admite expressamente esse meio legislativo, conforme a redação dada ao § 2º do art. 62.

Mais grave é a mutilação das características típicas dos tributos envolvidos, como o princípio da não-cumulatividade, próprios do IPI e do ICMS. O regime do Simples ignora simplesmente a não cumulatividade o que revela a aporia já que o Simples não seria tributo novo mas simplesmente um sistema integrado de pagamento de impostos e contribuições já existentes. É de supor que as características dos tributos que o compõe fossem preservadas.

O mesmo acontece com o princípio da seletividade das alíquotas, facultativo para o ICMS e obrigatório para o IPI, segundo o qual, os bens supérfluos deveriam ser taxados com alíquotas maiores e os bens de maior necessidade, por alíquotas menores. O Simples também ignora a seletividade das alíquotas.

A competência para legislar sobre tributos é indelegável, tanto ao Executivo, como a outra pessoa jurídica de direito público. Assim, a adesão ao Simples por meio de convênio seria contrária ao ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Afinal, convênio não é lei. Nem os Estados e Municípios podem ceder para a União a sua competência legislativa nessa matéria.

Agora a pergunta: o Simples é tributo novo? Qual seria o fato gerador e a base de cálculo dessa nova exação?  O exercício da competência residual prevista no art. 154, I, da CF, envolve alguns requisitos, nenhum dos quais atendidos pelo Simples: (i) instituído por lei complementar; (ii) ser não cumulativo; (iii) não ter fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição; e (iv) distribuir 20% do produto da arrecadação com os Estados e com o Distrito Federal.

O articulista conclui, com simplicidade: “O Simples é inconstitucional”.

Com efeito, se o Simples fosse tributo novo, deveria atender às exigências da CF para o exercício da competência legislativa residual; se fosse apenas um regime unificado de impostos e contribuições, deveriam ser preservadas as características dos impostos e contribuições que o compõe. Caso contrário, tratar-se-ia de exação inconstitucional.

Voltando à carga, o Poder Constituinte Derivado acrescentou (EC 42/2003) alínea “d” ao inciso III do art. 146 da CF, incluindo entre as normas gerais de direito tributário, a definição de tratamento tributário diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do ICMS. O parágrafo único do mesmo artigo (redação da mesma EC) passou a admitir a instituição de regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Assim, foi criada uma fundamentação constitucional para a instituição do Simples Nacional, pela Lei Complementar 123, de 2006, agora obrigando os Estados e Municípios, mas recaindo nas mesmas aporias já apontadas por Eliud José Pinto da Costa, em seu artigo. O Simples Nacional, como já acontecia com o Simples Federal, continua inconstitucional. O parágrafo único do art. 146 da Constituição, acrescido pela Emenda 42/2003, autoriza a instituição de regime único de pagamento, preservadas as características de cada um dos tributos que abrange, mas não autoriza a instituição do Simples Nacional, como desenhado.

Esses desmandos da União, usurpando competência tributária de Estados e Municípios, revogando princípios constitucionais como os da não-cumulatividade e da seletividade das alíquotas, demonstram a fragilidade da Federação Brasileira, que, ao contrário dos EEUU, não se formou pela união de Estados, mas pela promoção das antigas províncias imperiais a Estados federados. 

A maior ameaça à Federação, no Brasil, não é a secessão dos Estados, mas a reversão a um Estado unitário, devido à tendência centralizadora da União.