DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Confaz, legalidade e exoneração tributária no ICMS

Velocino Pacheco Filho

O art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal dispõe que cabe à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais do ICMS serão concedidos e revogados. A matéria acha-se regulada pela Lei Complementar 24/1975, expressamente recepcionada pela Carta de 1988 (ADCT, art. 34, § 8º). Isenções, incentivos e benefícios fiscais dependem para sua concessão e revogação da celebração de convênios no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), órgão formado pelos secretários de fazenda ou finanças de todos os Estados e do Distrito Federal.

Basta a celebração de convênios para que isenções, incentivos e benefícios fiscais sejam concedidos? Os convênios dispensam a edição de lei?

Ora, o art. 150 (trata das limitações ao poder de tributar), § 4º, da Constituição dispõe que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g.

O que se deve entender por “sem prejuízo de ...”? No caso do ICMS, os convênios suprem a necessidade de lei? Ou que os convênios não dispensam a necessidade de lei?

Jurisprudência mansa e pacífica do Supremo Tribunal Federal tem considerado inconstitucionais as isenções e benefícios fiscais concedidos sem prévia autorização em convênio. Mas, basta o convênio? Em relação a qualquer outro tributo, as isenções e benefícios fiscais obedecem ao princípio da legalidade. No ICMS, ao contrário dos demais tributos, os convênios afastam o princípio da legalidade? À evidência, o Confaz não é um corpo legislativo, mas é formado por representantes do Poder Executivo de todas as unidades da Federação. 

A Constituição deve ser interpretada de forma unificada. Nenhum dispositivo constitucional deve ser interpretado isoladamente, como se fossem suficientes em si mesmos. Pelo contrário, o sentido deve ser pesquisado de modo integrado com os demais dispositivos da Constituição. O sentido dos dispositivos constitucionais deve ser apreendido como fazendo parte de um todo, o ordenamento jurídico constitucional. 

A melhor interpretação é aquela que atenda da melhor maneira possível ao conjunto dos dispositivos e dos princípios contidos na Constituição. No caso da concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais do ICMS, deve ser atendido o princípio da legalidade e também à exigência de convênio como condição prévia para sua concessão. Os convênios não suprem a lei, mas constituem uma condição a mais imposta pelo legislador constituinte.

Trata-se de uma dupla condição: instituição por lei e autorização por convênio. Isto porque o ICMS é um tributo nacional, mas de competência dos Estados-membros. Então, para preservar o equilíbrio federativo, as exonerações tributárias em matéria de ICMS devem ser autorizadas pelos demais Estados-membros. Essa, aliás, a justificação adotada pelo STF na ADI 4.276 (DJe 18-9-2014, pp. 27/8):

“O pacto federativo reclama, para a preservação do equilíbrio horizontal na tributação, a prévia deliberação dos Estados-membros para a concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, na forma prevista no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição e como disciplinado pela Lei Complementar nº 24/75, recepcionada pela atual ordem constitucional”. 

Por isso, os convênios são sempre autorizativos. Nenhum convênio é autoaplicável, dependendo de ato normativo do Estado para poder ser aplicado. Os convênios, em homenagem ao princípio federativo, exigem unanimidade para sua aprovação.

Portanto, resulta inevitável a conclusão de que a quase totalidade das isenções e benefícios fiscais em vigor podem ter declarada sua inconstitucionalidade, ou por falta de convênio ou por falta de lei.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O STJ e a tributação dos pré-moldados

Velocino Pacheco Filho
Qual o tratamento de pré-moldados empregados na construção civil? Em outras palavras, trata-se de circulação de mercadorias, caso em que incide o ICMS, de competência dos Estados, conforme CF, art. 155, II, ou de prestação de serviços, incidindo o ISS, de competência dos Municípios conforme CF, art. 156, III?

Para incidir o ISS, devem estar presentes, cumulativamente, as seguintes condições: (i) deve se tratar de prestação de serviço, (ii) não estar abrangido na competência tributária dos Estados e (iii) estarem os serviços definidos em lei complementar que, no caso, é a Lei Complementar 116/2003. 

O § 2º do art. 1º dessa lei complementar dispõe que “ressalvadas as exceções nela previstas, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que envolva fornecimento de mercadorias”. Em síntese, se a prestação de serviço envolve o fornecimento de mercadorias, as mercadorias integram a base de cálculo do ISS. Caso contrário, se a operação com mercadorias envolve prestação de serviços, os serviços integram a base de cálculo do ICMS (CF, art. 155, § 2º, IX, b).

Conforme art. 7º da mesma Lei, a base de cálculo do ISS é o preço do serviço. Contudo, dispõe o § 2º do mesmo artigo, que não se incluem os valores dos materiais fornecidos pelo prestador de serviços previstos no item 7.02 (execução de construção civil por empreitada ou subempreitada). Pois bem, o material utilizado pelo prestador de serviços deve ser excluído da BC? Depende! O material produzido pelo prestador do serviço, fora do canteiro de obras, sem dúvida, deve ser excluído da base de cálculo do ISS. Isso porque sobre esse material incide o ICMS. Mas o material utilizado pelo prestador do serviço na própria obra, este deve integrar a base de cálculo do ISS.

Com efeito, o item 7.02 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 descreve o serviço tributado pelo ISS: “Execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de obras de construção civil, .... (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS)”. O mesmo tratamento constava do Decreto-lei 406/1968 e do item 32 da Lista de Serviços anexa, na redação dada pela Lei Complementar 56/1987.

No caso dos pré-moldados, trata-se de materiais produzidos fora do local da execução da obra, para utilização na obra. Pela regra da Lei Complementar 116/2003 (exceção prevista no item 7.02 da Lista de Serviços), deveria incidir sobre os pré-moldados apenas o ICMS.

Contudo, a Primeira Turma do STJ decidiu, no julgamento do REsp 247.595 MG, relator o Min. José Delgado (DJ 15-5-2000, p. 145), que “não há fornecimento (no sentido de comercializar) aos seus contratantes de peças pré-moldadas produzidas pela empresa a fim de aplicá-las especificamente nas edificações contratadas”, hipótese em que incidiria o ISS sobre os pré-moldados e não o ICMS. Acrescenta o acórdão que a empresa “apenas as transporta, após confeccioná-las, a fim de montá-las no local da obra, de acordo com o projeto previamente estabelecido”. Isto porque, esclarece, não há possibilidade física e técnica, no caso de construções de grande porte pelo sistema de pré-moldados, de serem “produzidas as peças de montagem da edificação no próprio local da obra”. No caso discutido as peças transportadas serviriam, apenas “para a obra a que se destinam especificamente, não possuindo valor individualizado para comercialização”.

O acórdão cita decisão da Segunda Turma (REsp 40356/SP, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ de 03/06/1996), no sentido de que "na construção civil pelo sistema de pré-moldados, sob regime de empreitada global, em que a empresa construtora produz as peças a serem montadas em edificação específica, sem comercializá-las individualmente, transportando-as para o local da obra, não incide o ICM cuja base de cálculo para a cobrança é inexistente".

Esta decisão e outras semelhantes sugerem que o STJ entende não ser aplicável aos pré-moldados a regra prevista no item 0.07 da Lista de Serviços, ou seja, a própria Lei Complementar 116/2003.

No entanto, em decisão recente (REsp 1.335.231 RS, da Segunda Turma, relator o Min. Herman Benjamin; DJe 18-12-2012) o STJ reconheceu a incidência do ICMS sobre pré-moldados. Isso representaria uma mudança de entendimento do tribunal? Ou trata-se do reconhecimento que a regra geral é a incidência de ICMS sobre pré-moldados e a incidência de ISS uma situação excepcional?

A controvérsia no referido recurso extraordinário gira em torno da incidência de ICMS sobre o fornecimento de material pré-moldado pela recorrente, para instalação em obras que não foram por ela executadas. Com efeito, trata-se de subempreitada, ou seja, o empreiteiro confia a terceiros a execução da obra (art. 622 do CC). Admite-se a subempreitada de parte da obra e a subempreitada global. Nesse caso, concluiu a Turma que se está diante de operações mercantis, e não de obrigação de fazer obras de construção civil que lhe foram confiadas pelo empreiteiro, hipótese que caracteriza o fato gerador do ICMS.

No julgamento dos embargos de declaração em embargos de declaração, que foram rejeitados, o Tribunal esclareceu que a tributação pelo ICMS alcançou o fornecimento de pré-moldados fabricados em local diverso para instalação em obras executadas por terceiros, o que configura obrigação de dar. Incide ICMS porque a hipótese é de operações mercantis e não de obrigação de fazer obras de construção civil que lhes foram confiadas pelo empreiteiro.

O acórdão acrescenta que mesmo na hipótese de subempreitada, o deslocamento de peças pré-fabricadas do canteiro central para o local da obra, na forma de comercialização individualizada, está sujeito ao ICMS e não ao ISS. O subempreiteiro que fornece materiais produzidos fora do local da prestação dos serviços e os comercializa individualmente é o sujeito passivo do ICMS incidente sobre a circulação dessas mercadorias.

À evidência, parece irrelevante para definir o tratamento tributário o fato dos pré-moldados serem produzidos pela mesma empresa responsável pela obra ou por subempreiteiro. A regra da Lei Complementar 116/2003, bem como do antigo Decreto-lei 406/1968, é que a execução de obra de construção civil constitui serviço tributado pelo ISS, exceto as mercadorias produzidas fora do local da construção, o que compreende os pré-moldados, que são tributadas pelo ICMS. Então, somente em circunstâncias especialíssimas poder-se-ia admitir a tributação dos pré-moldados pelo ISS. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A reforma tributária e os objetivos fundamentais da República

Velocino Pacheco Filho

O único consenso sobre o recorrente tema da reforma tributária é, aparentemente, o da sua necessidade. Porém, quando se passa a discutir qual deveria ser o formato do sistema tributário brasileiro, o consenso acaba: cada um dos interessados – União, Estados, Municípios, empresariado – tem sua própria concepção sobre como o sistema tributário deveria ser. Até de imposto único já se cogitou. Naturalmente, não se pensa em pedir a opinião dos consumidores, dos trabalhadores ou do povo em geral.

Raciocinemos: a Constituição é o texto normativo básico que estrutura todo o ordenamento jurídico. Segundo José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição), trata-se da ideia fundante ou da concepção básica que encontra sua expressão na Constituição. Lembra esse autor que, conforme o Preâmbulo da Constituição de 1988, o povo brasileiro, por seus representantes, procurou instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional com a solução pacífica das controvérsias.

Tomando como ponto de partida os valores e princípios adotados pela Constituição deve-se pensar o sistema tributário compatível com tais valores e princípios ou que contribua para sua realização.

Exemplificando, o art. 1º da Constituição diz que o Brasil é uma federação “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Então, a distribuição das competências tributárias deve atender às necessidades de financiamento de cada uma das pessoas políticas que formam a Federação. Mas, para isso, é necessário definir de antemão quais são essas necessidades. Em outras palavras, quais as atribuições que devem ser cometidas à União, aos Estados e aos Municípios. Definido o que deve ficar a cargo de cada um, pode-se dimensionar o tamanho da despesa de cada um e, por conseguinte, da receita necessária a cada um.

O art. 1º, em seu inciso II, trata da cidadania como um dos fundamentos da República. Cidadania, entre outras coisas, significa a participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, pelo exercício do direito de voto ou por algum dos mecanismos de democracia direta admitidos pelo Estatuto Supremo. Para tanto, a administração pública deve ser transparente, inclusive na disponibilização de dados sobre a arrecadação e, principalmente, sobre a renúncia fiscal e qual a sua justificativa. A pergunta relevante é: quem está sendo beneficiado? Outra pergunta relevante é: quem está financiando o setor público (quem arca com o ônus tributário)?

Outro dos fundamentos da República é a dignidade da pessoa humana, prestigiada no inciso III do mesmo artigo. Então, a incidência tributária deve ter como limite o consumo mínimo indispensável para garantir essa dignidade. São condições mínimas para permitir a existência digna, a alimentação, a saúde, a educação e a moradia. Assim, o sistema tributário deve prever isenção para as mercadorias que compõe a cesta básica de consumo. O mesmo em relação aos medicamentos, pois, na dicção do art. 196, a saúde é direito de todos e dever do Estado. O imposto sobre a renda, por sua vez, deve adotar deduções realistas sobre itens como saúde, dependentes, educação e qualificação profissional. Também se pode pensar em um programa de renda mínima. Quanto aos impostos sobre a propriedade, torna-se imperativo declarar a intributabilidade da casa de moradia da família, cuja proteção está entre os objetivos da assistência social, conforme dispõe o art. 203. 

O art. 150, II, veda o tratamento tributário desigual a contribuintes que se encontram em situações equivalentes. As diferenças de tratamento somente podem ser admitidas em razão das desigualdades entre as pessoas, para equilibrá-las. Os impostos devem ser cobrados de todos, mas na proporção da capacidade contributiva de cada um. Não devem ser admitidas exceções que venham em benefício de alguns em detrimento da grande maioria o que se costuma referir como “privilégio odioso”. Desse modo, toda e qualquer exoneração tributária deve ser justificada (i) pelo princípio da igualdade (levando em conta as desigualdades entre as pessoas); ou (ii) pelo interesse público e o bem comum (extrafiscalidade).

A construção de uma sociedade livre, justa e solidária a que se refere o art. 3º, I, como um dos objetivos fundamentais da República, requer um sistema tributário progressivo que tribute de forma mais pesada as altas rendas e de forma mais branda as pequenas rendas. O rendimento de capital deve ser mais tributado que o rendimento do trabalho. Para realizar o objetivo da constituição, deve ser diminuída a participação dos impostos indiretos – que oneram mais pesadamente as pequenas rendas – no perfil da arrecadação. Por fim, a tributação sobre as heranças deve ser progressiva e com alíquotas mais altas.

Outro dos objetivos fundamentais, previsto no art. 3º, II, é a garantia do desenvolvimento nacional. O desenvolvimento deve ser entendido como desenvolvimento econômico e social. Do ponto do desenvolvimento econômico,  o sistema tributário deve cuidar para não onerar a empresa, e sim os detentores do capital. A graduação dos tributos deve obedecer a critérios extrafiscais de estímulo ao investimento, ao empreendedorismo e à adoção e desenvolvimento de novas tecnologias. Essas poderiam ser as diretrizes para condicionar o tratamento tributário de microempresas e empresas de pequeno porte.

Do ponto de vista do desenvolvimento social, o sistema tributário deve ser concebido de modo a facilitar e estimular o desenvolvimento do ser humano, tanto como indivíduos como em suas relações com outros seres humanos. Devem ser facilitadas e estimuladas atividades de caráter cultural, quanto ao primeiro aspecto, e de solidariedade social, quanto ao segundo.

A erradicação da pobreza e da marginalidade, objetivo previsto no art. 3º, III, requer uma tributação voltada para a garantia de níveis mínimos de consumo e o resgate do ser humano em seus valores como ser humano, inclusive de solidariedade.

A redução das desigualdades sociais e regionais, prevista no mesmo dispositivo, requer uma tributação que estabeleça mecanismos de compensação entre classes e grupos sociais e entre regiões. Para tanto, devem ser adotados incentivos fiscais e tributos progressivos. Para atingir esse objetivo, tem larga aplicação a graduação de tributos segundo os critérios da pessoalidade e da capacidade econômica, referidos no § 1º do art. 145.

O art. 170, IV, elege a livre concorrência como um dos princípios que informam a ordem econômica, ou seja, uma economia de mercado regida pelo sistema de preços. Para ser compatível com o sistema de livre concorrência, a tributação sobre o consumo deve ser neutra, ou seja, um imposto não-cumulativo cobrado uniformemente sobre bens e serviços. O ICMS não mais deve ser usado como instrumento de política econômica. Devem ser buscadas alternativas para a alavancagem das economias dos Estados e dos Municípios.

Em síntese, o sistema tributário deve ser construído a partir da Constituição e dos valores que ela abriga. Os tributos devem ser concebidos de modo a realizar esses valores. Os valores, por vezes conflitantes, devem ser combinados de modo a resultar em um sistema harmônico e coerente. Esse é o nosso desafio, como povo e como nação.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A lei complementar de normas gerais

Velocino Pacheco Filho

O art. 24, I, da Constituição do Brasil, diz que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre direito tributário. Conforme § 1º do mesmo artigo, no âmbito da legislação concorrente, compete à União legislar sobre normas gerais. Ou seja, trata-se de matéria reservada ao legislador federal. O tributo somente pode ser instituído por que detenha a competência, mas as normas gerais quem legisla é a União. Exemplo: o ICMS é imposto de competência dos Estados. Somente os Estados podem instituir o ICMS e legislar sobre eles, desde que não contrarie a legislação federal sobre normas gerais.

No entanto, acrescenta o § 2º, a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. Entenda-se, no que for omissa a lei de normas gerais editada pela União.

Mas o que acontece se não houver lei federal dispondo sobre normas gerais? Nesse caso, dispõe o § 3º, os Estados exercerão a competência legislativa plena. É o que acontece, por exemplo, com o IPVA que até hoje não tem lei federal dispondo sobre normas gerais o que não impede os Estados de instituírem e cobrarem o tributo. Mas, conforme a regra do § 4º, a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Acabou? Não, conforme art. 146, somente lei complementar pode dispor sobre normas gerais em matéria de legislação tributária. Além disso, o mesmo artigo relaciona o conteúdo de tais normas gerais:

(i) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, base de cálculo e contribuintes;

(ii) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

(iii) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas;

(iv) definição do tratamento diferenciado e favorecido para a s microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I, e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Essa relação compreende todas as normas gerais que estão na competência da União ou seria apenas exemplificativa? A questão está em aberto. Na prática, tem-se aceito sem grandes contestações que toda a matéria tratada no CTN e nas leis complementares representam, efetivamente, normas gerais.

Mas, não só de normas gerais tratam as leis complementares federais. Assim, o próprio art. 146 também exige lei complementar para (i) dirimir conflitos de competência e (ii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.

O art. 146-A, por sua vez, permite a adoção de critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios da concorrência. Seria outra hipótese em que a Constituição admite a intervenção do Estado no mercado, mas apenas para preservar a livre concorrência, elevada a princípio informador da ordem econômica pelo art. 170, IV, da Lei Maior.

Já o art. 155, § 2º, XII, tratando especificamente do ICMS, reserva ao legislador complementar longa lista de matérias, dentre as quais, a definição de contribuintes, a  substituição tributária, o regime de compensação dos créditos (se físicos ou financeiros), o tratamento das exportações, os casos de manutenção de crédito, a celebração de convênios tratando de exoneração de tributos etc.

O Pleno do Supremo Tribunal Federal (RE 559943 RS), com efeito, reconheceu que os Estados não podem dispor de modo contrário à lei complementar, pois o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária está reservado ao legislador complementar federal. Disposições da legislação estadual em desacordo com a lei complementar federal de normas gerais padeceriam de vício de inconstitucionalidade.

Conforme prestigiado escólio de Aliomar Baleeiro, o CTN e demais leis complementares federais sobre normas gerais são leis nacionais e não simplesmente federais. Aplicam-se, pois à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Pois bem! Qual o efeito das leis complementares estaduais tratando de normas gerais? Leciona Misabel Derzi que a “norma geral” do Estado, meramente supletiva, pode regular apenas matéria omissa na norma geral federal e só essa. Tratam apenas supletivamente a matéria de normas gerais porque a competência legislativa é da União, não dos Estados.

Considerando o sistema federativo, como concebido por Kelsen, as normas gerais  sobrepõe-se às ordens jurídicas parciais, da própria União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A lei complementar estadual de normas gerais teria caráter puramente supletivo (apenas no que a legislação federal for omissa), não podendo se opor à lei complementar federal. 

Enfim, a lei complementar estadual de normas gerais nem aos seus próprios Municípios obriga.

A propósito, para que serve uma lei estadual de normas gerais? Receio que não sirva para muita coisa. Como não por dispor contrariamente à legislação federal de normas gerais, ela poderia apenas reproduzir servilmente os seus dispositivos. Por outro lado, considerando a repartição constitucional de competências legislativas, em sede de legislação concorrente, a legislação federal sobre normas gerais é autoaplicável: não depende de sua confirmação pela legislação estadual. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Simples Nacional e a arte de colocar cavilhas quadradas em buracos redondos

Velocino Pacheco Filho

A interpretação do direito deve sempre tomar como referência o conteúdo axiológico da Constituição, já que esta representa o documento normativo fundamental do ordenamento jurídico. Quando a legislação infraconstitucional frustra a realização dos valores contidos na Constituição, estamos diante do que Karl Engisch denomina “contradição teleológica”. A interpretação do direito tributário não é diferente.

Pois bem, o art. 170, IX, da Constituição coloca entre os princípios informadores da ordem econômica, o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte” e, no art. 179, que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.

O tratamento tributário favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte encontra ressonância no princípio da igualdade, como formulado no art. 150, II, que veda “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”, e no objetivo fundamental de reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III). O tratamento favorecido, portanto, encontra-se plenamente justificado, conforme o  ordenamento.

Contudo, na tentativa de acelerar e uniformizar o processo, a Emenda Constitucional 42/2003, acrescentou ao inciso III do art. 146 da Lei Maior, alínea “d”, incluindo entre as normas gerais em matéria de legislação tributária, reservada ao legislador complementar, a “definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as  empresas de pequeno porte”. A mesma emenda acrescentou a esse artigo parágrafo único, facultando à lei complementar a instituição de “regime único de arrecadação dos impostos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Nesse sentido, foi editada a Lei Complementar 123/2006, dispondo sobre o  “tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. A mesma lei complementar instituiu o regime único de apuração e recolhimento de impostos e contribuições conhecido como Simples Nacional. Entre outros, passou a integrar o SN, impostos tão dispares como o Imposto de Renda pessoa jurídica, o ICMS e o ISS. O produto da arrecadação seria repartido entre os titulares originais desses impostos: União, Estados, DF e Municípios.

Ora, cada um desses impostos tem fatos geradores e bases de cálculo distintas e submetem-se a diferentes princípios. O imposto sobre a renda tem como fato gerador a “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou de proventos de qualquer natureza”. A base de cálculo é “o montante real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis”. Além disso, é informado “pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade”. 

O ICMS, por sua vez, tem por fato gerador operações relativas à circulação de mercadorias ou a prestação de serviços de transporte e comunicação. A base de cálculo, evidentemente, é o valor da operação ou prestação (preço cobrado do adquirente da mercadoria ou do tomador do serviço). Rege-se pelo princípio da não-cumulatividade que permite compensar o imposto devido em cada etapa de circulação com o que foi cobrado nas anteriores.

Por fim, o ISS, tem por fato gerador a prestação de serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência dos Estados e definidos em lei complementar. A base de cálculo é o preço do serviço.

Como conciliar fatos geradores tão díspares como auferir renda, realizar operação de circulação de mercadorias e prestar serviço? Como calcular conjuntamente o imposto devido correspondente a bases de cálculo tão diversas como renda e preço? Como conciliar princípios como não-cumulatividade e progressividade em uma mesma exação? 

Resposta: não pode! É como tentar colocar cavilhas quadradas em buracos redondos. O resultado é uma legislação confusa, incoerente e de difícil aplicação e administração que, com uma sorte de humor sinistro, resolveram chamar de “simples”.

Poderíamos entender que se trata de um novo imposto? Se este é o caso, de quem é a competência para instituí-lo? Conforme art. 154 da Constituição, o exercício da chamada competência residual da União está restrita a que o novo imposto seja não-cumulativo e não tenha fato gerador ou base de cálculo próprios dos nela discriminados. Além disso, vinte por cento (e não quatro) deveria ser distribuído entre os Estados e o Distrito Federal, conforme art. 157, II.

De qualquer modo, o parágrafo único do art. 146 não autoriza a criação de um novo imposto (talvez devesse tê-lo feito), mas a instituição de “regime único de arrecadação”, ou seja, que cada um dos tributos envolvidos mantenha sua integridade no que se refere a fato gerador, base de cálculo e princípios informadores.

Chega? Tem mais!

O que fazer se a legislação do ICMS conceda uma isenção em situação não prevista pela legislação do SN. O que fazer? A operação deve ser excluída do cálculo do Simples, respeitando a isenção? Para perplexidade de todos, os diligentes servidores do Fisco, em uma interpretação simplória, entendem que, não havendo previsão na legislação do Simples, o contribuinte não teria direito à isenção. Isto quer dizer que a legislação do Simples prevalece sobre a legislação do ICMS, ou melhor dizendo, ela revoga a legislação do ICMS. A qualquer objeção a essa desigualdade no tratamento tributário entre a empresa dita normal e a enquadrada no Simples Nacional, os diligentes servidores respondem que “a opção pelo Simples é facultativa”.

Mas como! Conforme dispõe a Constituição, União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem dispensar tratamento tributário “favorecido”, ou seja, mais benéfico que o dado à empresa normal. Como justificar que a empresa normal seja beneficiada com isenção e à empresa enquadrada no Simples seja negado o mesmo benefício? É a subversão dos valores constitucionais pela falta de compreensão do ordenamento pelos diligentes servidores fazendários, configurando o que Karls Engisch identifica como contradição teleológica, caracterizada pela frustração dos valores prestigiados pelo constituinte originário.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

TRIBUTO DECLARADO E NÃO RECOLHIDO - MULTA DO ART. 51, I, DA LEI N° 10.297/96 - NATUREZA CONFISCATÓRIA


FABIANO RAMALHO

 
Vamos imaginar a hipótese em que o contribuinte tenha apurado corretamente o tributo devido e declarado em DIME, na forma prescrita em Lei, deixando, apenas, de recolhe-lo no tempo devido, motivado, por exemplo, por dificuldades de caixa. Ou seja, não estamos falando de nenhuma situação de fraude ou ilícito tributário, pois esse contribuinte observou corretamente a legislação de regência para a constituição do crédito tributário.

Para esse caso, a legislação tributária do Estado de Santa Catarina prevê a aplicação da multa de 0,3% ao dia, até o limite de 25%, prevista no art. 53, da Lei 10.297/96, in verbis:
 
“Art. 53. Submeter tardiamente operação ou prestação tributável à incidência do imposto ou recolher o imposto apurado, pelo próprio contribuinte, ou o devido por estimativa fiscal, após o prazo previsto na legislação, antes de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização:
MULTA de 0,3% (três décimos por cento) ao dia, até o limite de 25% (vinte e cinco por cento).”

Assim, a ausência de pagamento do tributo, previamente declarado em DIME, atrai a incidência da referida multa, e possibilita ao Fisco, desde logo, inscrever o débito em dívida ativa, uma vez que constituído o crédito tributário pelo lançamento por homologação. Nenhum outro ato é necessário para que o Fisco constitua o crédito tributário, entendimento esse já pacificado na jurisprudência do STJ, como ilustra o seguinte aresto:

“RECURSO REPETITIVO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. SÓCIO. DCTF. GIA. CRÉDITO TRIBUTÁRIO. No recurso submetido ao regime do art. 543-C do CPC e art. 6º da Res. n. 8/2008-STJ, a Seção assentou que a simples falta de pagamento de tributo não acarreta, por si só, a responsabilidade subsidiária do sócio (art. 135 do CTN), se inexistir prova de ele ter agido com excesso de poderes em infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da sociedade empresarial. Outrossim, a apresentação da declaração de débitos e créditos tributários fiscais (DCTF), de guia de informação e apuração de ICMS (GIA), ou de outra declaração dessa natureza com previsão legal constitui o crédito tributário, não havendo necessidade de outra providência por parte do Fisco. Precedentes citados: EREsp 374.139-RS, DJ 28/2/2005; REsp 1.030.176-SP, DJe 17/11/2008; REsp 801.659-MG, DJ 20/4/2007; REsp 962.379-RS, DJe 28/10/2008; AgRg nos EREsp 332.322-SC, DJ 21/11/2005; AgRg nos EREsp 638.069-SC, DJ 13/6/2005;  REsp 510.802-SP, DJ 14/6/2004, e REsp 437.363-SP, DJ 19/4/2004. REsp 1.101.728-SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 11/3/2009 (veiculado no Informativo do STJ nº 0386, de 09-13/03/2009). (grifamos)
 
 
              Dada a natureza do tributo lançado por homologação, ainda que o contribuinte pague espontaneamente o débito em atraso, não há que se falar em redução da multa, que deverá ser exigida na forma do citado art. 53.

A interpretação a respeito da aplicação dessa penalidade parece simples e clara, não havendo margem para equívocos. No entanto, não é assim que a Administração Tributária Estadual vem agindo no caso concreto, pois vem se utilizado do Termo de Constituição do Crédito Tributário para lançar o crédito tributário em tais casos. Esse procedimento fiscal extraordinário acaba se sobrepondo ao lançamento por homologação, como uma forma bizarra de lançamento de ofício, fazendo incidir a partir daí a multa de 50% sobre o imposto devido, prevista pelo art. 51, I, da Lei n° 10.297/96, cuja redação é a seguinte:

“Art. 51. Deixar de recolher, total ou parcialmente, o imposto:
I – apurado pelo próprio sujeito passivo;
II – devido por responsabilidade ou por substituição tributária;
III – devido por estimativa fiscal:
MULTA de 50% (cinqüenta por cento) do valor do imposto.”

 Ora, já que é desnecessária a expedição do referido Termo, já que, nesse caso específico, o lançamento é feito por homologação, a aplicação da multa de 50% sobre o valor do tributo devido adquire a feição de mero meio coercitivo para obrigar o contribuinte ao recolhimento do crédito tributário em questão, sob a ameaça velada de majoração da multa (de 25% para 50%). Isso porque, expedida a notificação de Constituição do Crédito Tributário, é oferecida ao contribuinte uma redução de 50% no valor da multa, caso o pagamento seja efetuado dentro do prazo previsto para a defesa administrativa, como consta expressamente da referida notificação.

Tal prática fere o Código de Direitos e Deveres do Contribuinte de Santa Catarina, que prevê, em seu art. 11, que:

Art. 11. É vedada, para fins de cobrança extrajudicial de tributos, a adoção de meios coercitivos contra o contribuinte, tais como a interdição de estabelecimento, a proibição de transacionar com órgãos e entidades públicas e instituições oficiais de crédito, a imposição de sanções administrativas ou a instituição de barreiras fiscais.


Por outro lado, também fere a garantia trazida pelo art. 150, IV, da Constituição Federal, que proíbe o confisco em matéria tributária:

"Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;”

 A prática adotada pela Administração Tributária Estadual, ainda que vise arrecadar o tributo devido aos cofres públicos, não outra coisa caracteriza senão o puro confisco de bens do contribuinte, posto que atingirá de forma desproporcional aquele contribuinte que foi estritamente diligente no cumprimento de suas obrigações tributárias acessórias, e que deixou de recolher o tributo no seu vencimento devido a dificuldades econômicas.

Na prática, esse contribuinte será onerado com uma multa duas vezes maior do que a prevista para a situação hipotética, já que dificilmente poderá pagar o débito no prazo estabelecido pela Notificação Fiscal, não se beneficiando da redução da multa ofertada.

Não se pode admitir que o direito do Estado de fiscalizar o contribuinte perturbe o cidadão de bem, de tal modo a lhe tolher o livre exercício da atividade econômica. Esse direito à fiscalização e à arrecadação deve ser limitado pelos direitos individuais dos contribuintes, que têm sua matriz na Constituição Federal e é replicado na esfera Estadual pela LC 313/2005.

Além do mais, esse procedimento fiscal iguala o “bom” contribuinte, qual seja aquele que apurou corretamente e declarou todos os fatos geradores e as respectivas bases de cálculo em DIME, com o “mal” contribuinte, que, de alguma forma, sonegou informações com o intuito de desonerar-se ilicitamente do pagamento do tributo.

Nesse sentido, além dos dispositivos legal e constitucional acima elencados, as práticas adotadas pela Fazenda Estadual ferem também os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, já consagrados na Carta Magna e incorporados nos artigos 34 e 39 da Lei Complementar n° 313/2005 (Código de Direitos e Deveres do Contribuinte do Estado de Santa Catarina), que possui hierarquia superior à Lei n° 10.297/96, in verbis:

“Art. 34. A Administração Tributária, no desempenho de suas atribuições, pautará sua atuação de forma a gerar o menor ônus possível aos contribuintes, tanto no procedimento e no processo administrativo, como no processo judicial.
[...]
Art. 39. A Administração Tributária obedecerá, dentre outros, aos princípios da justiça, legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”

 

Como se observa, sob diversos ângulos de análise, não há como justificar a adoção do procedimento fiscal de Constituição do Crédito Tributário para a hipótese em tela, sendo descabido o lançamento por ofício por ela operado. A multa aplicada por intermédio desse procedimento fiscal, majorada de 25% (art. 53) para 50% (art. 51, I), é arbitrária e inconstitucional, pois, na medida em que se reveste de mero instrumento de coerção para exigir o pagamento do tributo devido, caracteriza o confisco vedado pela Constituição Federal.

Sobre a utilização da multa como instrumento de coerção, o TRF da 4ª Região tem importante precedente, onde, julgando caso sobre Contribuição Previdenciária, assim decidiu:

“TRIBUTÁRIO. MULTA MORATÓRIA X MULTA DE OFÍCIO.. ART. 35 DA LEI 8.212/91. GRADUAÇÃO DA MULTA DE OFÍCIO CONFORME O TEMPO E A PRÁTICA DE ATOS ADMINISTRATIVOS. SOBREPOSIÇÃO AOS JUROS. RAZOABILIDADE. VEDAÇÃO DO CONFISCO. INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADA. Pode haver distinção entre o percentual de multa simplesmente moratória, quando o contribuinte não paga tempestivamente por falta de recursos mas o faz antes de qualquer atividade do Fisco contra ele, e de multa de ofício, quando o contribuinte oculta ou simplesmente não leva ao conhecimento do Fisco a ocorrência de fatos geradores ou o montante total das suas bases de cálculo, hipótese em que apenas a ação fiscal desenvolvida pela Fiscalização é que acaba por identificar a existência do débito e constitui o respectivo crédito por lançamento. A multa prevista no art. 35 para o caso de NFLD é de 24%. Daí para mais, há variações conforme a postura do contribuinte ou a prática de atos administrativos ao longo do tempo (tamanho da mora, pagamento integral ou parcelado, inscrição em dívida, ajuizamento da execução). Ocorre que, havendo débito, são os juros moratórios que restam previstos no art. 161 do CTN como compensação pela mora do contribuinte. Não se pode admitir que a multa acabe por assumir, também ela, uma função de compensação progressiva pela mora, em sobreposição aos juros que não se justifica. A variação da multa em função da mora ofende a razoabilidade no que diz com os critérios da adequação e da congruência. A multa deve ter relação com o ilícito cometido, qual seja, no caso, a falta de apuração e declaração, pelo próprio contribuinte, dos tributos devidos. Também o princípio da proibição do excesso, decorrente do próprio princípio do Estado de Direito, impede que se tenha multas demasiadamente altas, cumprindo, para as multas, o papel da vedação do confisco direcionada aos tributos. O STF tem admitido a censura constitucional de multas excessivas/confiscatórias, inclusive mediante invocação do art. 150, inciso IV, da CF. A multa do lançamento de ofício, no art. 35 da Lei 8.212/91, varia de 24% a 100% sem que nenhum novo ilícito tenha sido praticado, apenas pelo decurso de tempo em que o credor realiza atos tendentes à satisfação do seu crédito. Suscitado Incidente de Argüição de Inconstitucionalidade do art. 35, inciso II, alíneas “b” a “d”, e III, alíneas “a” a “d”, com a redação das Leis 90.528/97 e 9.876/99, por violação ao art. 150, IV, da CF e aos princípios constitucionais implícitos da razoabilidade e da proibição do excesso.”

Em conclusão, na ausência de qualquer ato do contribuinte que possa ser considerado ilegal ou fraudulento, posto que, no mais, esse contribuinte seguiu estritamente os critérios legais, apenas deixando de recolher o tributo no seu vencimento, não é lícito à Fazenda Estadual lançar de ofício o crédito tributário, valendo-se do procedimento fiscal de Constituição do Crédito Tributário, notificando esse mesmo contribuinte para o pagamento do tributo, sob a ameaça de aplicação da multa prevista no art. 51, I, da Lei n° 10.297/96.

Tal prática é censurável, na medida em que carece de razoabilidade e proporcionalidade, caracteriza o efeito do confisco, tão combatido em nosso ordenamento jurídico, bem como distancia-se do elevado senso de Justiça e equidade com os quais a Administração Tributária Estadual costuma pautar suas ações.

Portanto, sob a ótima de uma ética tributária que se harmonize com os princípios que regem a matéria, entendemos que o procedimento fiscal de expedição de Termo de Constituição do Crédito Tributário para os casos de tributo declarado e não recolhido não se reveste do melhor Direito, devendo ser afaastado, especialmente no que se refere à incidência da multa de 50%, prevista no art. 51, I, da Lei n° 10.297/96.

A Administração Tributária Estadual, enquanto braço estatal, deve, ao lado de sua função precípua de arredar os tributos devidos, deve ser um amplo garantidor da segurança jurídica e dos direitos dos contribuintes, nos termos da Lei, repelindo práticas abusivas de seus agentes e onerando o contribuinte na justa medida do seu crédito tributário.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Contradições teleológicas no direito tributário

Velocino Pacheco Filho

A arrecadação de tributos não é um fim em si mesmo, mas o meio que o Estado dispõe para atender às necessidades coletivas, financiando programas e políticas públicas. Não interessa arrecadar a qualquer custo, mas a arrecadação deve guardar coerência com os fins do Estado e com o ordenamento jurídico.

Para Karl Engisch, o ordenamento jurídico abriga contradições, entre as quais ele identifica o que chama de “contradições teleológicas”, quando o legislador adota determinados valores ou estabelece determinadas metas, mas cujo cumprimento resta inviabilizado pela legislação subsequente. Isso ocorre, por exemplo, no caso de legislação infraconstitucional que se opõe à realização de princípios, valores e metas expressos na Constituição.

É o caso do art. 170, IV, da Constituição, que adota a livre concorrência como um dos princípios que informam a ordem econômica. Livre concorrência implica a não intervenção do Estado no mercado ou nas condições de concorrência. Pelo contrário, o Estado deve zelar para que os agentes econômicos concorram em igualdade de condições. Assim, o art. 173 reserva a exploração da atividade econômica ao setor privado, admitindo a exploração direta pelo Estado, apenas quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. O § 2º desse artigo dispõe que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado. O § 4º, a seu turno, determina que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Ao Estado, nos termos do art. 174, fica reservado o papel de agente normativo e regulador, cabendo-lhe as funções de fiscalização incentivo e planejamento, sendo esta última apenas indicativa para o setor privado.

Na seara tributária, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, dispõe que o legislador complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.

Devemos distinguir a livre concorrência protegida pela Constituição daquela preconizada pelo liberalismo econômico, sem qualquer controle ou limitação. O mesmo art. 170, adota, com a mesma hierarquia da livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego, entre outras.

A forma de tributação (sobre o consumo) que melhor atende à livre concorrência, como princípio constitucional, é a plurifásica não cumulativa (o tributo incide em todas as fases do ciclo de comercialização da mercadoria, permitindo que o contribuinte recupere o imposto recolhido nas fases precedentes). Nessa forma de tributação, os agentes econômicos seriam indiferentes ao tributo, reagindo apenas ao mercado.

A tributação plurifásica não-cumulativa foi adotada, em nosso País, por influência do IVA europeu, no IPI e no ICMS, embora, o IPI seja concebido como tributo extrafiscal. Esse é precisamente o ponto. Em que medida, a Constituição brasileira de 1988 admite o uso extra-fiscal dos impostos não-cumulativos? A extra-fiscalidade implica a indução de determinado comportamento mediante o agravamento ou o abrandamento do tributo. Logo, o sucesso de uma política extra-fiscal representa uma interferência no sistema de preços e, por conseguinte, na livre concorrência. Os agentes econômicos não mais serão indiferentes à tributação. Assim, a extra-fiscalidade no caso de tributos sobre consumo deve ser justificada com base nos demais princípios constitucionais, como a proteção do consumidor, do meio ambiente, do pleno emprego etc.

Questão mais inquietante é o uso pelos Estados de isenções, incentivos e benefícios fiscais, relativamente ao ICMS, para atrair investimentos. A Lei Complementar 24/1975, com a sua mal compreendida exigência de unanimidade nas votações, seria um instrumento para coibir a chamada “guerra fiscal” entre os Estados, se fosse dotada de sanções realisticamente aplicáveis contra os Estados infratores. O resultado é a ineficácia do art. 170, IV, da Constituição da República. Livre concorrência, entre nós, tornou-se simples figura de retórica.

Finalmente, temos a curiosa figura da substituição tributária “para frente”, introduzida pelo Poder Constituinte Derivado (§ 7º do art. 150, acrescido pela EC 3/1993). Ao se substituir ao mercado, determinando a margem de valor adicionado e arbitrando preços de varejo, termina por frustrar os fins visados pelo Poder Constituinte Originário, de estabelecer uma economia de mercado, com base no princípio da livre concorrência.