DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Taxas estaduais e direito de petição

Velocino Pacheco Filho

O art. 4º da Lei 7.541/1988, de Santa Catarina, define o fato gerador da taxa de serviços gerais como a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, ou o exercício regular de atividades inerentes ao poder de polícia. O § 1º do mesmo artigo diz que os serviços e atividades sujeitas à taxa são os especificados no anexo da Lei.

O referido anexo, item 4, prevê que nas reclamações e recursos ao Tribunal Administrativo Tributário (TAT), a taxa será de 0,5% (meio por cento) do valor do litígio, não podendo ser inferior a R$ 7,72 ou superior a R$ 81,84.

Ora, entende-se que o direito do contribuinte apresentar impugnações e recursos perante a Administração Tributária reside no direito de petição. Com efeito, dispõe a Constituição Federal, art. 5º, XXXIV, “a”, que são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

O direito de petição exerce-se, por conseguinte, (i) em defesa de direitos, (ii) contra ilegalidade ou (iii) contra abuso de poder. À evidência, trata-se de (i) direitos ameaçados pela Administração Pública, (ii) ilegalidade cometida pela Administração Pública e (iii) abuso de poder pela Administração Pública. Para tanto, a Constituição proíbe a cobrança de taxas.

As reclamações e recursos administrativos são modalidades do direito de petição, na medida que se voltam para a defesa do direito do contribuinte de pagar apenas o tributo previsto em lei ou contra o tributo exigido ilegalmente. Embora tais reclamações e recursos dependam da iniciativa do contribuinte, existe o interesse da Administração em cumprir o ordenamento jurídico, conforme Súmula 473 do STF: “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. Por isso o contencioso administrativo tributário nada mais faz que o controle da legalidade dos atos da Administração Tributária.

Não se trata, portanto, a impugnação da constituição do crédito tributário, de exercício de direito subjetivo, invocando a tutela jurisdicional do Estado, mas de direito de petição. 

A taxa cobrada para o contribuinte impugnar administrativamente o crédito tributário constituído, além de vedada pela Constituição, por tratar-se de direito de petição, não caracteriza utilização efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, nem tampouco exercício regular de atividades inerentes ao poder de polícia. Permitir ao contribuinte que discuta a legalidade da exigência do tributo não é nenhum serviço prestado ao contribuinte. Também não se trata de exercício do poder de polícia, como definido pelo art. 78 do CTN.

De fato, o Poder Público não está limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, em razão de interesse público concernente à segurança, higiene, ordem, costumes, disciplina da produção e do mercado, exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização, tranquilidade pública ou respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Ainda que fosse possível a cobrança de taxas, resta ainda discutir o valor cobrado a título de taxa, calculado como percentual do valor do litígio (i.e. do crédito tributário reclamado). É a própria Constituição do Estado, art. 125, § 4º que veda cobrar taxas em valor superior ao custo de seus fatos geradores ou ter base de cálculo própria de impostos. 

Misabel Derzi, comentando a obra de Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro) esclarece que o núcleo da hipótese de incidência das taxas é o “atuar do ente estatal relacionado ao obrigado, que sofre aquela atuação”. Portanto, a base de cálculo das taxas necessariamente “deve mensurar o custo de atuação do Estado, proporcionalmente a cada obrigado”. Taxas com base de cálculo diversa, como o valor da causa – acrescenta – não passam de impostos disfarçados, além dos autorizados pela Constituição Federal.

A cobrança de taxa, nesse caso, serve apenas ao propósito de desencorajar o  contribuinte a exercer o direito de impugnar administrativamente o crédito tributário ilegalmente exigido.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Livre concorrência e unanimidade das decisões do Confaz

Velocino Pacheco Filho

Dispõe o art. 155, § 2º, XII, da Constituição da República que compete à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. A matéria foi regulada pela Lei Complementar 24/1975 cujo art. 1º condicionou esses tratamentos excepcionais a convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal. Conforme § 2º do art. 2º, a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados. 

Essa disposição tem recebido inúmeras críticas. “Se nem as emendas constitucionais”, alegam, “exige unanimidade, porque seria ela exigida para a concessão de isenções”? Ora, o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), órgão onde são discutidas as propostas de convênios, não é um corpo legislativo, mas apenas um colegiado de secretários de fazenda dos Estados. Os convênios em si mesmos não concedem isenções, mas constituem uma condição para que os Estados o façam. 

Outro argumento baseia-se no art. 151, I, da CF/88 que veda a instituição de tributo que não seja uniforme em todo território nacional, ressalvada a concessão de incentivos fiscais “destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País”. Então, concluem, a concessão de incentivos fiscais é permitida para estimular o desenvolvimento das regiões mais pobres. Embora a afirmativa seja verdadeira, essa disposição, no entanto, é dirigida expressamente à União e ao tratamento dos impostos federais. Poderia ser estendida ao ICMS?

O argumento mais forte apela para os princípios constitucionais: entre os objetivos fundamentais da República, conforme dispõe o art. 3º, III, da CF/88, está a redução das desigualdades regionais. Assim, a exigência de unanimidade no Confaz estaria contrariando a realização desse objetivo fundamental. 

No entanto, os princípios constitucionais – principalmente os que encerram valores – devem ser interpretados em harmonia com outros princípios. É o caso da livre concorrência que, entre outros princípios, informa a ordem econômica, a teor do disposto no art. 170, IV: a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deve observar, entre outros, o princípio da livre concorrência. A relevância desse princípio é demonstrada pelos instrumentos constitucionais postos à disposição do legislador para a defesa da livre concorrência. Desse modo, o § 4º do art. 173 determina que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Por outro lado, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, faculta à lei complementar “estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”.

Livre concorrência significa dar condições para que as empresas concorram no mercado em igualdade de condições, de modo a favorecer a mais eficiente. Isto requer, por parte do Estado, uma tributação neutra sobre o consumo, de modo a que a tributação não interfira na tomada de decisões pelos agentes econômicos. As empresas em concorrência devem ser indiferentes à tributação. Em outras palavras, para cumprir a Constituição – de construir uma economia baseada na livre concorrência – não deve haver tratamentos tributários favorecidos. Uma tributação plurifásica não-cumulativa, como é o caso do IVA ou do ICMS, atende ao princípio da neutralidade, na medida que cada um deve recolher na proporção do valor que adiciona em cada fase do ciclo de comercialização. 

Conforme lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr., o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, não pode desigualar concorrentes em condições de igualdade, criando situações de privilégio de uns sobre outros. Isto por que um mercado, regido pelo princípio da livre concorrência, significa um mercado que se autorregula, pois, é no mercado que se formam os preços conforme as suas próprias regras e é no mercado que se dá a boa alocação dos recursos.

Livre concorrência, acrescenta o mesmo autor, implica a neutralidade do Estado, no sentido de atuação imparcial em face dos agentes concorrentes com seus interesses privados em um mercado livre, ou pela não-interferência estatal, no sentido de que ela não deve ser criadora de privilégios. O Estado, como agente normativo e regulador, atua em nome do interesse comum, nunca em nome de interesses privados e, ao atuar, deve guardar a imparcialidade própria do interesse comum. “A neutralidade concorrencial garante, pois, a igualdade de chances para os agentes econômicos”.

Então o princípio da neutralidade concorrencial deve impedir a criação de privilégios (i.e. de vantagens desigualadoras). Se a atuação estatal, pondera o mesmo jurista, interfere na relação entre concorrentes, mesmo argüindo motivos relevantes (outros princípios, como proteção ao meio ambiente, ao consumidor etc.), ela não pode vir a privilegiar certos concorrentes contra outros, afastando-os do mercado ou retirando-lhes a possibilidade de competir.

A neutralidade dos tributos decorre ainda da proibição de tratamento desigual a contribuintes que estão em situação equivalente (CF, art. 150, II), pois, livre mercado significa que os concorrentes competem, em princípio, dentro de um quadro tributário que marca a estratégia concorrencial de cada um. De outro, porém, e por isso mesmo, esse quadro não pode ser discriminatório, nem criar condições competitivas diferentes entre eles. Assim, o princípio da isonomia, garantido pela neutralidade dos tributos diante da concorrência, será vulnerado na medida em que a relação concorrencial entre empresas for afetada pela tributação, de tal modo que esta favoreça umas e desfavoreça outras.

Não discrepa dessa doutrina, Gilmar Ferreira Mendes para quem a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos cogentes da autoridade administrativa, mas sim do livre jogo das forças de mercado em disputa da clientela na economia de mercado. Pois, o modelo de economia de mercado, adotado pelos constituintes de 88, só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de qualquer interferência, seja do Estado ou do capital monopolista. 

José Afonso da Silva, a seu turno, vê no princípio da livre concorrência, prestigiada no inciso IV do art. 170 da Constituição uma manifestação da liberdade de iniciativa. O art. 170, IV e o § 4º do art. 173, no entendimento do prestigiado professor, “complementam-se no mesmo objetivo”, ou seja, tutelar o sistema de mercado e proteger a livre concorrência “contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista”.

Por fim, segundo Fernando L. Weiss, “a tributação do século XX tem a solidariedade como fundamento, uma vez que todos são igualmente titulares do Estado e devem custeá-lo na medida de suas possibilidades, e representam a retribuição à sociedade em razão do sucesso em obter, fazer circular ou acumular riquezas. A capacidade contributiva é a medida desse sucesso”. Conforme esse autor, é “inaceitável que a tributação oprima a atividade econômica, salvo se houver uma finalidade pública não tributária a ser atendida”.

Desse modo, a concordância unânime dos Estados por meio de convênio, exigida pela Lei Complementar 24/1975, para que um Estado crie incentivos em matéria de ICMS, é mecanismo para evitar a transferência ou repartição dos ônus financeiros deles decorrentes. Em homenagem ao princípio da Federação, nenhum Estado deve ser obrigado a suportar ônus resultante de benefícios fiscais concedidos por outro. O convênio garante validade à lei local, conclui Weiss, mas não acarreta renúncia de receita por parte dos demais Estados.

Podemos concluir, pois, que a exigência de unanimidade na aprovação dos convênios pelo Confaz, vem atender (i) ao princípio da livre concorrência, (ii) ao tratamento isonômico entre contribuintes e (iii) a garantia de que nenhum Estado deva suportar o ônus de benefício fiscal concedido por outro. A redução das desigualdades regionais não é um valor absoluto que se sobreponha a outros princípios constitucionais como a livre concorrência, a isonomia ou a federação. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Qual o cabimento da multa de mora em matéria tributária?

Velocino Pacheco Filho

O tributo não pago no seu vencimento é acrescido de multa, juros e correção monetária. Os juros (moratórios) tem a função de indenizar o Estado, recompondo o patrimônio lesado pelo não recebimento a tempo do tributo. A correção monetária, por sua vez, atualiza o poder de compra da moeda, corroído pela inflação.

A taxa Selic, criada em 1979, incide sobre os financiamentos com prazo de um dia útil (overnight), lastreados por títulos públicos registrados no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia. “A Taxa Selic compreende juros de mora e correção monetária, sendo vedada sua utilização cumulativa com qualquer outro índice de juros ou correção”(AgRg no REsp 976127 / SP, Segunda Turma, DJe 07/10/2008).

Costuma-se classificar as multas em punitivas e moratórias. As multas punitivas correspondem a uma violação da legislação tributária, tendo caráter essencialmente intimidativo. Já as multas moratórias decorrem do simples inadimplemento da obrigação tributária. Têm caráter indenizatório. Além disso, as multas punitivas devem ser constituídas pela autoridade, em prévio ato administrativo. As multas moratórias, por sua vez, não dependem de constituição, sendo aplicadas pela Administração Tributária, por força da lei.

Jurisprudência dos tribunais superiores, no entanto, não tem feito distinção entre multas moratórias e punitivas. Assim, a Segunda Turma do STJ, no R. Especial 1.009.897 (DJe 28/5/2008) decidiu que a denúncia espontânea afasta a multa moratória, “até porque inexiste distinção entre esta e a multa punitiva”. Com efeito, o art. 138 do CTN dispõe que a responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, “acompanhada do pagamento do tributo e dos juros de mora”. Não é feita referência à multa de mora. 

Já no R. Especial 169.877 SP (DJ de 24.08.1998), decidiu o tribunal que “a multa moratória constitui penalidade resultante de infração legal, sendo inexigível no caso de denúncia espontânea, por força do artigo 138, mesmo em se tratando de imposto sujeito a lançamento por homologação”.

A Primeira Turma do STJ, no R. Especial 177.076 RS (DJ 1-7-1999, p. 126), esclarece que “a multa moratória foi concebida como forma de punir o atraso no cumprimento das obrigações fiscais, tornando-o mais oneroso. Seu escopo final é intimidar o contribuinte, prevenindo sua mora. Inegável sua natureza punitiva. O ressarcimento pelo atraso fica por conta dos juros e eventual correção monetária”.

Em sede de doutrina, leciona Sacha Calmon Navarro Coelho (Teoria e Prática das Multas Tributárias, Forense, 1992, p. 73) que “em direito tributário é o juro que recompõe o patrimônio estatal lesado pelo tributo não recebido a tempo. A multa é para punir, assim como a correção monetária é para garantir, atualizando-o, o poder de compra da moeda. Multa e indenização não se confundem”.

Além disso, as multas moratórias distinguem-se das punitivas pelo seu menor valor e por serem proporcionais ao atraso no pagamento. Multas muito altas, independentemente do tempo que o contribuinte ficou sem efetuar o pagamento do crédito tributário, são típicas de punição. 

Em Santa Catarina, a Lei 10.297/1996 pune com multa de 50% do valor do imposto exigido por notificação fiscal a falta de recolhimento do imposto (art. 51), enquanto o pagamento a destempo, antes de qualquer procedimento administrativo, é acrescido de multa diária de 0,3% do valor do imposto, até o limite de 20% (art. 53). A multa do art. 51 é claramente punitiva e a do art. 53, claramente indenizatória.  

Ainda assim, persiste a indagação: se tanto os juros quanto a multa de mora tem natureza indenizatória, não estaria o contribuinte sendo compelido a reparar duas vezes o Estado pela mesma coisa? Poderiam os juros e a multa de mora ser cobrados cumulativamente?

Por outro lado, o inadimplemento da obrigação tributária não pode representar vantagem para o contribuinte – forma barata de fazer capital de giro. Contudo, se o objetivo da multa é desincentivar o inadimplemento, estamos falando de multa punitiva e não moratória. 

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A eficácia das multas administrativas

Velocino Pacheco Filho

O direito, como ordem normativa da sociedade, seleciona comportamentos e impõe regras de conduta cujo descumprimento acarreta aplicação de sanções sobre o infrator. 

Sacha Calmon Navarro Coêlho (Teoria e Prática das Multas Tributárias) fala de “um poder real do Estado capaz de obrigar a respeitar a ordem jurídica estabelecida, independentemente de ser justa ou legítimo o poder que a aplica e garante”. Sintetiza esse autor, dizendo que “é pela coação que o Direito se faz efetivo”.

Aplica-se a sanção porque a ordem jurídica foi rompida e para quer não torne a ser rompida. Esse, o efeito intimidativo/preventivo da sanção. “A sanção jurídica efetiva a ordem jurídica , quando lesada, e é imposta ou pelo menos garantida pela força do Estado (coerção estatal)”. 

Não é diferente no direito tributário. A realização do fato jurígeno previsto na lei faz nascer em favor do Estado o crédito tributário, que corresponde a um débito para o sujeito passivo tributário. Caso não cumpra o dever de pagar o tributo ou descumpra os deveres instrumentais impostos pela legislação tributária, serão aplicadas ao infrator sanções que, dependendo das circunstâncias, poderão ser exclusivamente fiscais ou sanções fiscais cumulativas com sanções penais.

Entende, entretanto, o autor que no Brasil, a infração tributária não pode gerar o perdimento e confisco dos bens, vedado que é pela Constituição. Segundo ele, a infração tributária pode ocasionar penas pecuniárias, mas não o confisco ou pena de perdimento dos bens, “que exige lei específica tipificante e um processo de execução especial”. Assim, uma multa excessiva que ultrapasse o razoável, para dissuadir ações ilícitas e punir os transgressores caracterizaria uma maneira de burlar a proibição  constitucional  do confisco.

Entendimento semelhante é defendido por Zelmo Denari (Infrações Tributárias e Delitos Fiscais – Parte 1: Direito Tributário Penal). Poderá ser aplicada a pena de perdimento de bens, sempre que forem detectados danos causados ao erário público, decorrentes de atos ilícitos. Então, a pena de perdimento de bens encontra-se ligada às prescrições normativas próprias do direito tributário. Com efeito, a legislação prevê o perdimento de bens, para sancionar tipos penais tributários, dentre os quais o contrabando, o descaminho e a apropriação indébita, todos da mais alta nocividade social. Trata-se de modalidade de sanção ínsita ao nosso sistema penal tributário e que, por seu caráter confiscatório, não pode ser utilizada para reprimir infrações tributárias. 

A conclusão não parece ser muito coerente, já que a inadimplência constitui, efetivamente, um dano causado ao erário. Por outro lado, a pena de perdimento, nos casos de contrabando e descaminho, é aplicada pelas autoridades administrativas federais, descaracterizando assim o seu caráter de sanção penal.

Posição diversa é defendida por Hugo de Brito Machado, que ressalta a distinção entre multa (a ilicitude é essencial à definição da hipótese de incidência das multas) e tributo (cuja hipótese de incidência é necessariamente um ato lícito). As finalidades também são distintas, cabendo ao tributo suprir os recursos financeiros de que o Estado necessita, enquanto a multa tem por fim desestimular o comportamento que configura a sua hipótese de incidência (o inadimplemento da obrigação tributária). Por isso mesmo, a receita de multas é classificada como receita extraordinária ou eventual, ao contrário do tributo que constitui receita ordinária.

O tributo, portanto, deve ser um ônus suportável para o cidadão sem sacrifício de seu bem estar. Essa a razão da vedação ao confisco. 

A multa, por outro lado, deve representar um ônus suficientemente pesado para desestimular o comportamento ilícito. A multa tributária não pode ser algo tão insignificante que o contribuinte tenha vantagem em sonegar (e.g. a aplicação do valor do tributo no mercado financeiro proporcione um retorno superior à multa).

Não é sem razão que o art. 150, IV, da Constituição Federal, refere-se apenas à utilização de “tributo com efeito de confisco”. A vedação ao confisco não pode ser ampliada, além do que dispõe a Constituição, para abranger as multas, que têm finalidade diversa dos tributos. A limitação a que estão sujeitas as multas, segundo o mestre cearense, é o da proporcionalidade entre o valor da multa e a gravidade da ofensa cometida. Mas, se para inibir a sonegação, for preciso adotar uma multa confiscatória, que assim seja. O que é inconstitucional não é o efeito confiscatório das multas, mas exigir multas elevadas para infrações que não causam dano ao direito da Fazenda de arrecadar o tributo.

Estender a vedação ao confisco, acrescenta o eminente professor, é reconhecer que o sujeito passivo teria o direito de sonegar o tributo.

Isto por que a vedação ao confisco visa proteger o direito de propriedade e a livre iniciativa. Não é o caso da multa que visa o efeito punitivo e inibidor do descumprimento da lei tributária. O que se espera das multas é que não sejam desproporcionais em relação à gravidade das infrações que buscam inibir.

Em suma, punir infrações leves com excessiva severidade ou cominar a mesma pena a infrações leves e infrações graves constitui iniquidade que deve ser reprimida. Nesse sentido, e somente nesse, é que se pode falar em efeito confiscatório das multas. 

“Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesma inflige exceda o bem que nasce do delito” (Cesare Beccaria).

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Repetição do indébito e moralidade administrativa

Velocino Pacheco Filho

O art. 165 do CTN assegura ao sujeito passivo da relação jurídico-tributária a restituição total ou parcial do tributo indevido pago ou pago a maior que o devido. No entanto, o art. 166 condiciona a restituição, no caso de impostos indiretos (“que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”), à prova de não ter repassado o ônus do tributo ao adquirente ou, tendo repassado, estar por este autorizado a pedir a restituição. O dispositivo leva em conta a distinção entre contribuinte “de direito” (aquele que recolhe o tributo) e contribuinte “de fato” (quem sofre a repercussão financeira do tributo).

Em outras palavras, o legislador presume que o tributo repercute sobre o contribuinte “de fato”. Mas, essa é uma presunção “juris tantum”, ou seja, admite prova em contrário. Cabe ao contribuinte “de direito” provar que suportou o ônus tributário e que não o repassou ao contribuinte “de fato”.

Ora, isso deixa o Fisco em posição muito cômoda para recusar a restituição: se é pleiteada pelo contribuinte “de fato”, o Fisco dirá que não tem legitimidade para fazê-lo; se pelo contribuinte “de direito”, o Fisco exigirá a prova da não repercussão do tributo sobre o contribuinte “de fato”. Essa é uma prova nada fácil de obter.

Resta ainda, dirá o leitor, o recurso de estar autorizado pelo contribuinte “de fato” a pleitear a restituição. No caso de venda a varejo, também não é fácil de obter.

Porém, para além da obtenção de provas ou do direito à restituição – se o tributo pago é indevido, deve haver alguma restituição a alguém – o Fisco beneficia-se do dilema criado pela própria legislação, descurando de buscar alguma solução.

O art. 37 da vigente Constituição diz que a administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios obedecerá ao princípio, entre outros, da moralidade administrativa. Pergunta-se: o comportamento do Fisco, neste caso, é moral?

Devemos pesquisar qual o conteúdo da moralidade administrativa. O que dizem os doutos? Para Diva Malerbi, “a moralidade administrativa é princípio desdobrado da confiança que o povo depositou no poder e na legitimidade da atividade administrativa em relação à gestão da coisa pública”.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”. O que encontra eco em Antônio da Silva Cabral para quem “entre o fisco e o contribuinte deve existir uma relação de mútua confiança e colaboração”. Para Gilmar Ferreira Mendes, “em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente inatacável”. 

Tércio Sampaio Ferraz Jr., a seu turno, ensina que “a obediência à moralidade é princípio constitucional. Não se trata de regra difusa ou de regra sobre regras, mas de regra imanente aos atos administrativos. Ou seja, configura o ato, não a norma que o autoriza. Nesse sentido, não se confunda legalidade com moralidade. Legalidade é requisito da norma, não do ato que a emana. Assim, uma norma pode ser legal, sem ser moral o ato que a estabelece. Ao que arremata Celso Ribeiro Bastos, para quem o ato administrativo “ofende a moralidade na medida em que, apesar da atuação ser prevista em lei, prejudicar os particulares”. 

Na mesma senda anda José Afonso da Silva para quem “a lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar ou de favorecer alguém deliberadamente, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente ofensivo à moralidade administrativa”.

Por fim, aproximando-se da concepção de Lavinas, conclui Marco Aurélio Greco que a “conduta imoral não é a que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém. Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é destinatário da conduta”. Prossegue esse autor dizendo que o princípio da moralidade “não olha para o interior do Ser Humano, mas sim para o seu exterior, onde se encontram os destinatários da sua ação, ou seja, aqueles que poderão sofrer as injustiças da sua conduta”.

Então, o que caracteriza a imoralidade administrativa? Klaus Tipke distingue entre a moralidade tributária do Estado e a da Administração Pública. A primeira ele faz derivar do princípio da capacidade contributiva. Essa é a moralidade da lei. Mas nos interessa no momento a moralidade da Administração. Essa moralidade reside nos atos administrativos e não na regra jurídica que lhes serve de fundamento.

Então estamos falando de imoralidade dos atos administrativos, ou seja, atos praticados com astúcia e eivados de malícia e que representem uma violação da confiança depositada pelo povo no poder público e na gestão da coisa pública. A Administração, que existe para bem servir ao cidadão e garantir-lhe o exercício de seus direitos constitucionais, não procede com base na confiança mútua e na colaboração. Pelo contrário, age de modo a deliberadamente prejudicar ou favorecer alguém.

A imoralidade, nesse caso, não é subjetiva; não se trata de foro íntimo ou de consciência própria. A imoralidade administrativa é objetiva, devendo ser identificada nos destinatários do ato, aptos a sofrer a injustiça dele decorrente.

Voltando à restituição do indébito tributário, a posição cômoda do Fisco caracteriza, com efeito, imoralidade administrativa, na medida em que representa a apropriação, pela Fazenda Pública, de valores recebidos que não correspondem a tributo devido – enriquecimento sem causa do Erário. A má fé é evidenciada pela recusa fácil de devolver, a qualquer um, os valores recolhidos a título de tributo e que foi demonstrado serem indevidos.

Além disso, a não devolução dos valores indevidamente pagos, seja ao contribuinte de “direito”, seja ao contribuinte de “fato”, corresponde a um prejuízo, não reparado, de quem pagou o tributo ou de quem o suportou. Assim, o indeferimento do pedido pela Administração, apesar de legal, é imoral, sendo incompatível com o conceito de justiça (alterum nom laedare).

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Piketty: entre a utopia e a realidade

Velocino Pacheco Filho

O tema do livro de Thomas Piketty, “O Capitalismo no Século XXI”, é a desigualdade; mais precisamente, a acumulação desigual da riqueza. Os patrimônios, acumulados de geração em geração, ao longo de muito tempo, leva à concentração da riqueza em poucas mãos – mais do que seria necessário para garantir uma vida confortável aos seus detentores. Por mais extravagante que seja o estilo de vida, não é possível consumir a renda gerada por certos patrimônios. 

Apenas para constar, os ganhos de produtividade são apropriados diferentemente entre os fatores de produção trabalho e capital. A tendência é o capital apropriar a totalidade dos ganhos de produtividade, repartindo alguma coisa com o trabalho apenas quando forçado. Afinal, diz o ditado: “quem reparte, ganha a maior parte”.

Invertendo a lógica do econômico como infraestrutura e do político como superestrutura, Piketty, entende certas escolhas econômicas como políticas: é o caso da escolha das formas de financiar o Estado – tributação, endividamento ou inflação. As duas últimas diluem o financiamento do Estado entre todas as classes, em proveito dos credores (o exemplo é de Piketty). A lógica dessa escolha, sustenta o autor, não é econômica, mas política.

A concentração da riqueza tem como corolário a concentração do poder. Piketty sustenta que uma distribuição muito desigual da riqueza representa uma séria ameaça à democracia e ao sistema meritocrático que lhe é próprio. 

A solução proposta por Piketty é tributar os patrimônios (algo como o nosso “imposto sobre grandes fortunas”?). O cerne do sistema tributário, segundo Piketty, estaria em três impostos: (i) um imposto progressivo sobre a renda, (ii) um imposto progressivo sobre as heranças e (iii) um imposto progressivo e global sobre os patrimônios. Este último, para surtir os efeitos desejados, além de progressivo, deve ser sobre todo o patrimônio – mobiliário, imobiliário e corporativo – e ser adotado por todos os países – para evitar a migração dos capitais para os países mais “compreensivos”.

Utópico? O próprio Piketty reconhece que obter a cooperação internacional na instituição de semelhante tributo é um projeto utópico.

Mas, o que desperta a atenção no livro de Piketty não é tanto a solução apontada, mas colocar em discussão “verdades” consagradas, seja pela direita, seja pela esquerda. Assim, para avaliar devidamente a obra devemos superar a crítica meramente ideológica. 

Vejamos a questão da economia de mercado. Com isso queremos nos referir a uma economia em que os preços indiquem o que, quanto, como e para quem produzir. Estamos falando de mercados em que vigora a livre concorrência. Piketty não rejeita a economia de mercado, mas propõe um forte controle social/estatal sobre o mercado. É certo que ninguém mais acredita na “mão invisível” (A. Smith) conduzindo o mercado para o equilíbrio de pleno emprego. Torna-se também difícil de aceitar que “a oferta cria sua própria demanda” (J. B. Say), como bem demonstrou Keynes. Mas, por outro lado, o dito socialismo “real” foi incapaz de criar um substituto eficiente para o sistema de preços. O constituinte brasileiro de 1988 também adotou a livre concorrência (i.e. a economia de mercado) no art. 170, IV, como um dos princípios informadores da ordem econômica, mas sob controle do Estado (art. 174).

Da mesma forma, o autor não se declara contrário à propriedade privada dos meios de produção. Por via de consequência, admite a acumulação e construção de patrimônios, mas também com amplo controle da sociedade, exercido pelo Estado. Os patrimônios passam a constituir problema quando atingem determinado tamanho. O constituinte de 88 também assegura o direito de propriedade, elencado entre os direitos fundamentais, mas como acrescenta que a propriedade deve atender à sua função social (art. 5º, XXII e XXIII).

Como se vê, o Estado tem um papel fundamental para a realização da utopia pikettyana. O Estado de Piketty não é o Estado mínimo. Pelo contrário, o aumento da complexidade da sociedade e da economia modernas exige um Estado proporcionalmente maior – até para atender demandas sociais crescentes. O problema é como conciliar uma dimensão maior do Estado com as liberdades democráticas. Esse Estado deve estar imbuído de um conteúdo ético tal que não permita abusar de seu poder para oprimir o cidadão – como conseguir isso é que são elas! A primeira descrição do Estado moderno, feita por Hobbes, o representa como um grande monstro – o Leviatã – formado por muitos corpos. É o grande anônimo! Mas o que é o Leviatã? É o Estado absolutista que pode ser visto para além das monarquias do antigo regime. Não estará, o Leviatã, implícito no Estado moderno – mesmo nos regimes democráticos? Pois o Leviatã têm outros nomes: ele pode ser chamado de burocracia ou mesmo de administração pública. Esse é o monstro de mil faces que a todos devora, em nome do rei ou da democracia.

Hannah Arendt distingue muito bem o despotismo do totalitarismo. O despotismo é a tomada do Estado e do poder por uma minoria e seu líder – e.g. Somoza, Trujillo, Kadafi etc. Já o totalitarismo, de direita ou de esquerda, é a tomada do poder pelas massas politicamente organizadas. O totalitarismo é impessoal. Ele representa o Leviatã na sua versão mais sinistra.

Como conciliar o gigantismo do Estado com a democracia, sem que o cidadão seja esmagado por esse mesmo Estado cuja função é defender seus direitos fundamentais? Esse é um tremendo desafio e o que torna a receita de Piketty realmente utópica. Porque a cooperação internacional, em outras áreas vem sendo conseguida. Os organismos supranacionais vem se multiplicando e sua atuação. Vejamos, por exemplo, a globalização do crime organizado que exige organismos também globais para combatê-lo. 

Por falar em direitos fundamentais, a solução proposta por Piketty – controlar os grandes patrimônios mediante um imposto progressivo e global – implica a relativização dos direitos fundamentais, mais especificamente o direito a privacidade. Com efeito, o controle social dos grandes patrimônios exige maior transparência nas operações financeiras, na mobilidade do capital e na sua propriedade. Isso implica a relativização do direito à privacidade e, consequentemente, uma soma maior de poder para o Leviatã. Nesse sentido, já caminhamos para a relativização do sigilo bancário (o sigilo não pode proteger as atividades ilícitas, entre elas a sonegação de tributos). O planejamento tributário – que não é acessível a todos – ganha novos limites. A distinção entre elisão tributária (lícita) e evasão (ilícita) já não basta. É preciso ainda que haja propósito negocial e que não haja abuso das formas de direito, no sentido de determinado negócio ter como única justificativa o não pagamento de impostos.
Então chegamos ao seguinte dilema: para preservar a democracia devem ser tributados os grandes patrimônios; mas, para isso ser possível, deve-se fortalecer o Estado a tal ponto que ele próprio se torna uma ameaça à democracia. Como resolvê-lo?

O art. 37 da Constituição diz que a administração pública deve obedecer, entre outros, ao princípio da moralidade. Ou seja, a administração da coisa pública deve ser, antes de tudo, moral. É uma obrigação da administração ser moral. Os atos administrativos, além de legais, devem ser morais. Parece ser esta a grande condição para a realização da utopia: o Leviatã deve se tornar um ente essencialmente moral como, de resto, exige a nossa Carta Magna.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A transação e a indisponibilidade do crédito tributário.

Velocino Pacheco Filho

Uma fonte permanente de incerteza, nas relações entre Fisco e contribuintes, é a morosidade do processo de impugnação do crédito tributário. A Emenda Constitucional 45/2004 acrescentou aos direito fundamentais “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Resta adotar as medidas que tornem realidade esse novo direito. Não seria bom se houvesse algo como um “juizado administrativo de pequenas causas tributárias”?

O art. 156, III, do CTN, prevê a transação como modalidade de extinção do crédito tributário. Trata-se de instituto análogo ao previsto no art. 840 do Código Civil: “É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas”. Contudo, diversamente do que ocorre no direito civil, a transação no direito tributário (i) depende de lei que a autorize e (ii) somente é possível no caso de terminação de litígios (não há transação para prevenir o litígio). 

Dispõe o art. 171 do CTN: “A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção do crédito tributário”.

Conforme art. 10 da Lei Complementar 24/1975, as condições gerais para a concessão de transação por um Estado-membro serão definidas por convênio. No entanto, a Cláusula Quinta do Convênio ICM 24/75 dispõe apenas que a transação será permitida em “casos excepcionais de que não resulte dispensa de tributo devido”.

 O que sempre frustrou a adoção da transação no direito tributário é precisamente as “concessões mútuas”, já que o Fisco está sujeito ao princípio da indisponibilidade da coisa pública. Conforme Paulo de Barros Carvalho, “o princípio da indisponibilidade dos bens públicos impõe seja necessária previsão normativa para que a autoridade competente possa entrar no regime de concessões mútuas, que é da essência da transação”.

Ensina Diógenes Gasparini que os bens, direitos, interesses e serviços públicos não estão à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. 

Já segundo Sacha Calmon Navarro Coelho, na esfera do direito privado prevalece o império da vontade das partes, que podem livremente dispor de seus direitos o que não acontece no direito tributário em que o crédito tributário é público e indisponível: “somente a lei pode dele dispor”. Isto por que transacionar não é pagar, é procedimento para possibilitar o pagamento.

O litígio a que se refere o CTN, pressupõe discussão em juízo ou será admissível a transação no processo administrativo? Na opinião de Hugo de Brito Machado, a transação tem aplicação restrita aos créditos tributários discutidos perante o Poder Judiciário. O litígio, segundo ele, caracteriza-se pela resistência de um dos sujeitos da obrigação tributária à pretensão do outro. Os órgãos de julgamento administrativo integram a própria Administração Pública, de sorte que no processo administrativo fiscal faz-se apenas o controle interno da legalidade do lançamento. Antes de ser este definitivo para a própria Administração não se pode dizer que existe uma pretensão desta a ensejar resistência do contribuinte.

Por outro lado, se considerarmos a cientificação do lançamento ao sujeito passivo como manifestação da pretensão impositiva do Fisco, poderíamos entender a transação como forma alternativa de resolução do conflito, ainda que na esfera do contencioso tributário administrativo.

Ora, alguns países – Portugal, por exemplo – têm adotado com sucesso a técnica da arbitragem na solução de conflitos tributários. A adoção do juízo arbitral tem se mostrado eficiente em impor maior celeridade aos processos, bem como em reduzir a pendência de processos nos tribunais administrativos. A transação abre caminho para esse tipo de solução.

Constituído o crédito tributário, o contribuinte pode (i) impugnar administrativamente o lançamento ou (ii) esperar a execução fiscal para então opor embargos ou exceção de pre-executividade, se for o caso. Poderíamos acrescentar uma terceira possibilidade: tratando-se de crédito tributário até determinado valor, o sujeito passivo poderia protocolar junto às autoridades administrativas pedido de transação. 

A lei que criar a arbitragem administrativa, por conseguinte, deverá (i) fixar o valor máximo do crédito tributário que poderá ser objeto de arbitragem, (ii) definir a autoridade competente para celebrar a transação, (iii) as condições que permitam a celebração de transação; e (iv) qual o limite das concessões pela Fazenda Pública.

A cláusula quinta do Convênio ICM 24/75 determina que a transação não poderá resultar em dispensa do tributo devido. Então o Fisco tem como campo aberto à transação os valores relativos à multa, juros e correção monetária. No tocante ao tributo, a transação deverá ficar restrita ao que for incerto. É o caso, por exemplo, da base de cálculo arbitrada pela autoridade fazendária, nos termos do art. 148 do CTN.

O termo de transação, subscrito pelo Fisco e pelo sujeito passivo, poderá ainda definir o prazo de recolhimento do tributo ou conceder parcelamento. Porém, no caso de inadimplência do sujeito passivo o crédito tributário deve ser executado imediatamente.

A validade da transação pode, por outro lado, ser condicionada à homologação pelo Secretário da Fazenda, pelo Procurador Fiscal ou pelo Presidente do tribunal administrativo.

Outra possibilidade é adotar efetivamente a arbitragem, caso em que a lei deve definir os critérios de escolha dos árbitros. O termo de arbitragem, nesse caso, deve ter o mesmo efeito da decisão definitiva do tribunal administrativo.

Desse modo, o contencioso administrativo pode ser aliviado dos processos de pequeno valor, podendo, então, se concentrar nos processos realmente significativos.