DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

O diferimento, as limitações dos decretos em matéria tributária e a indisponibilidade do crédito tributário

Velocino Pacheco Filho
Conforme Sacha Calmon Navarro Coelho (Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 199), “ocorre diferimento do imposto quando o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria – estamos falando de ICMS – é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro”.
Por sua vez, a Primeira Turma do STF, no julgamento do RE 112.354-6 (DJ 14-2-92, p. 1167) distinguiu o diferimento da isenção nos seguintes termos: “do diferimento não resulta eliminação ou redução do ICM; o recolhimento do tributo é que fica transferido para momento subsequente”.
Ora, no mesmo sentido, o art. 1º do Anexo 3 do Regulamento do ICMS de Santa Catarina dispõe que “nas operações abrangidas por diferimento, fica atribuído ao destinatário da mercadoria a responsabilidade pelo recolhimento do imposto na condição de substituto tributário”.
Conforme o § 1º desse artigo, “o imposto devido por substituição tributária subsumir-se-á na operação tributada subseqüente promovida pelo substituto”. Contudo, dispõe o § 2º, o destinatário deverá recolher o imposto diferido, entre outras hipóteses, (i) quando não promover nova operação tributada; (ii) a promover sob regime de isenção ou não-incidência; ou (iii) se ocorrer qualquer evento que impossibilite a ocorrência do fato gerador do imposto. O imposto diferido, entretanto, deverá ser recolhido proporcionalmente à parcela não-tributada, no caso de operação subsequente beneficiada por redução da base de cálculo do imposto.
Somente não será devido o recolhimento do imposto diferido (i) no caso de operações que destinem mercadorias diretamente para o exterior do país; ou (ii) nas operações beneficiadas por isenção ou redução de base de cálculo, com expressa manutenção de créditos.
A lógica dessa regra é exatamente o direito a não estornar o crédito nessas hipóteses. O imposto diferido gera um direito de crédito, apesar da operação subsequente não estar sujeita à incidência do imposto, por expressa disposição legal (exceção à regra do inciso II, b, do § 2º do art. 155 da CF).
Então, o diferimento do imposto não representa sua dispensa. Pelo contrário, o imposto diferido subsume-se na operação tributada subsequente. Mas, se a operação não for tributada, o destinatário deve recolher o imposto que foi diferido.
Suponhamos agora que o imposto devido na operação subsequente seja inferior ao que foi diferido. Ainda podemos dizer que, nesse caso, o imposto diferido subsumiu-se na operação tributada subsequente?
Conforme Dicionário Aurélio, “subsumir” vem de sub- + lat. sumere (tomar, colher, aceitar) e tem os seguintes significados: Conceber (um indivíduo) como compreendido numa espécie. 2. Conceber (uma espécie) como compreendida em um gênero. 3. Considerar (um fato) como aplicação de uma lei. Como “subsumir” é empregado, no nosso caso, como elemento integrante da própria norma, podemos, de plano, afastar o terceiro significado. Dos outros dois, podemos extrair que “subsumir” refere-se à operação de absorção (ou compreensão) da parte no todo ou do menor pelo maior.
Em síntese, se o imposto devido na operação subsequente for inferior ao imposto diferido, a subsunção ocorre apenas parcialmente. Como, conforme acórdão colacionado do Supremo Tribunal Federal, do diferimento não resulta eliminação ou redução do imposto, infere-se que a parcela do imposto diferido que não se subsumiu na operação subsequente deve ser recolhida.  
Pois bem, o Decreto 909, de 2 de abril de 2012, acresceu o § 6º ao art. 1 º do Anexo 3 do RICMS-SC, dispensando “o recolhimento do imposto diferido por ocasião da entrada de matéria-prima e insumos industriais, quando empregados na fabricação de produto cuja saída seja beneficiada por crédito presumido em substituição aos créditos efetivos”.
A não-cumulatividade do ICMS, conforme art. 155, § 2º, I, da Constituição da República, consiste na compensação do imposto devido com o que foi cobrado (crédito) nas etapas anteriores de comercialização pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Chegamos assim ao conceito de imposto apurado como o resultado da diferença entre o débito e o crédito em cada período de apuração.
O crédito presumido é um valor determinado em lei, de acordo com critérios previamente definidos, que também vai compensar o imposto devido (débito). Pode ser benefício fiscal – caso em que alguns Estados chamam de crédito outorgado – ou uma forma simplificada de apuração. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no AgRg no RE 551.155, relator Min. Joaquim Barbosa (RDDT 202: 223, 2012) fez a seguinte apreciação sobre a matéria:
2. Situação peculiar. Regime alternativo e opcional para apuração do tributo. Concessão de benefício condicionada ao não registro de créditos. Pretensão voltada à permanência do benefício, cumulado ao direito de registro de créditos proporcionais ao valor cobrado. Impossibilidade. Tratando-se de regime alternativo e facultativo de apuração do valor devido, não é possível manter o benefício sem a contrapartida esperada pelas autoridades fiscais, sob pena de extensão indevida do incentivo.
Mais uma vez, estamos diante de norma supostamente simplificadora: o § 6º do art. 1º do Anexo 3  dispensa o recolhimento do imposto diferido por ocasião da entrada de matéria-prima e insumos industriais, quando empregados na fabricação de produto cuja saída seja beneficiada por crédito presumido em substituição aos créditos efetivos. 
A primeira dúvida sobre a sua aplicação é a quais créditos efetivos se refere: Será o imposto diferido? Pela regra do § 4º desse artigo, “é vedado o destaque do imposto em documento fiscal correspondente à operação abrangida por diferimento”. Ademais, a regra dispensa o recolhimento do imposto diferido. Em que situação? Se a operação de saída do produto industrializado for tributada, o imposto diferido subsume-se no imposto devido pela saída. Então, o que fica dispensado?
Mas, pelo contrário, se a saída não for tributada – hipótese em que o imposto diferido deveria ser recolhido – o crédito presumido estaria compensando qual imposto? 
Por outro lado, se a intenção do legislador era dispensar, de alguma forma, a tributação, estaremos diante de benefício fiscal concedido sem a necessária autorização por convênio, celebrado pelo Confaz, conforme rito previsto na Lei Complementar 24/1975. A dispensa de recolhimento faz o diferimento transmudar-se em isenção.
Ora, decreto não é o veículo adequado para dispensar o recolhimento de tributo, matéria sob reserva absoluta de lei.  O inciso III do art. 71 da Constituição do Estado de Santa Catarina (disposição semelhante ao do inciso IV do art. 84 da Constituição Federal) restringe o papel dos decretos e regulamentos à fiel execução das leis.
Nesse sentido, a Primeira Turma do STJ, no R em MS 21.942 MS (RDDT 189: 225, 2011), decidiu que “4. ... a validade dos atos normativos secundários (entre os quais figura o decreto regulamentador) pressupõe a estrita observância dos limites impostos pelos atos normativos primários a que se subordinam (leis, tratados, convenções internacionais etc.)”.
Como atos do Poder Executivo, os decretos e regulamentos estão limitados em sua abrangência às leis que regulamentam. Em matéria tributária, explica-se a restrição porque o crédito tributário é indisponível: segundo magistério de Diógenes Gasparini (Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 17-18):
Não se acham, segundo esse princípio, os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. Aqueles e este não são seus senhores ou donos, cabendo-lhes por isso tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa finalidade é o Estado.
Concluindo, a dispensa de recolhimento do imposto diferido – quando este não se subsume completamente na operação subsequente – caracteriza, de fato, uma isenção que somente pode ser instituída por lei (não por decreto) e, no caso do ICMS, mediante prévia autorização pelo Confaz. 
Uma última indagação: semelhante decreto caracterizaria crime de responsabilidade, dada a natureza indisponível do crédito tributário?

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Brasil tem jeito?

Velocino Pacheco Filho

Aumentar impostos será a única forma possível de resolver os problemas de caixa do Governo?

O art. 37 da Constituição prevê a eficiência como um dos princípios que informam a Administração Pública. Isso significa que deve ser dado o melhor uso possível aos recursos disponíveis e também o seu corolário, o princípio da eficácia ou obter os melhores resultados possíveis. A Administração Pública tem o dever de ser eficiente.

Uma Administração eficiente não deve tolerar o desperdício, as despesas desnecessárias ou o descaso no gerenciamento da coisa pública. Mais ainda, a Administração eficiente pressupõe a responsabilização do gestor público pela gestão ineficiente.

No início do sec. XX Osvaldo Cruz empreendeu uma campanha vencedora pela erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro e de seu vetor o nosso conhecido Aedes Aegypti. O retorno do mosquito, agora trazendo a dengue, o zika vírus e a chikungunya, não poderia sugerir que houve relaxamento no seu controle? Não estaria demonstrando a ineficiência do controle sanitário em nosso País?

As recentes manifestações populares que colocaram milhares de cidadãos brasileiros nas ruas não podem ser interpretadas ingenuamente como apenas contra a Presidente ou contra o PT. Isso seria reduzir a importância das manifestações. Elas demonstram, sim, o descontentamento com a má gestão da coisa pública, com os políticos de modo geral, contra a corrupção, contra a impunidade e contra a precariedade dos serviços públicos prestados em contrapartida aos impostos exigidos do cidadão. Mas, também foram manifestações a favor da legalidade, da responsabilidade na gestão da coisa pública, de uma justiça atuante e de uma polícia eficiente. Essa foi a mensagem das ruas.

Haverá alguém tão ingênuo que acredite sinceramente que o impeachment, por si mesmo, seria solução para o Brasil ou, melhor dizendo, atenderia aos anseios do povo brasileiro? 

E no tocante à Administração Tributária? A eficiência não é apenas arrecadar o máximo possível; é arrecadar o que for devido e apenas o que for devido, observados os princípios constitucionais que informam o direito tributário e a realização dos objetivos fundamentais da República.

A Administração Tributária eficiente deve procurar maximizar a arrecadação sem violar princípios constitucionais ou os direitos fundamentais do cidadão-contribuinte. A Administração Tributária eficiente não pode recorrer a artifícios como não atualizar as tabelas relativas à tributação da renda ou do patrimônio, face à desvalorização da moeda.

Por outro lado, a Administração Tributária eficiente é incompatível com a renúncia fiscal não autorizada por lei (e por convênio no caso do ICMS), em proveito apenas de alguns (privilégio odioso), sem alcançar a maioria. Ricardo Lobo Torres (A Legitimação da Capacidade Contributiva e dos Direitos Fundamentais do Contribuinte. Direito Tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. Coordenação de Luis Eduardo Schoiueri. Vol. I, São Paulo: Quartier Latin, 2003, pg. 437) define privilégio odioso como “a permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba como alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais”.

Acrescenta esse autor que o privilégio odioso ofende o direito fundamental de propriedade, uma vez que implica discriminação contra o contribuinte excluído do privilégio, que vai arcar com o tributo de que foi dispensado o beneficiário do tratamento favorecido.

Todos devem contribuir para o financiamento do Estado, na medida da capacidade contributiva de cada um. Nesse sentido, leciona Roque Antonio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 59): “A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com igualdade. Melhor expondo, quem está na mesma situação jurídica deve receber o mesmo tratamento tributário”.

Conforme Souto Maior Borges (Isenções Tributárias. 2ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1980, pg. 39), se todos devem contribuir, na medida da sua capacidade, para a satisfação dos encargos públicos, então não devem ser toleradas pelo ordenamento jurídico, discriminações tributárias, enquanto impliquem um tratamento privilegiado ou de favorecimento de determinadas pessoas.

Podem ser estabelecidas em lei apenas isenções compatíveis com o sistema constitucional da tributação, isto é, não violatórias do princípio de isonomia ou igualdade de todos perante o fisco. Podem ser outorgadas isenções que não contrariem o princípio da generalidade da tributação, mas que tão-somente o excepcionam.

Desse modo, os benefícios fiscais devem ser justificados, ou pelo princípio da igualdade ou por razões de extrafiscalidade. O princípio da igualdade, conforme magistério de Celso A. Bandeira de Mello (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 22), exige que o tratamento desigual deve ser justificado pela identificação  de uma correlação lógica concreta, aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo constitucional. Nessa perspectiva, deve ser investigado se o critério discriminatório adotado constitui justificativa racional para “atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada” (p. 38).

Já a extrafiscalidade consiste no uso de tributos, não com vistas à arrecadação, mas a induzir comportamentos do cidadão-contribuinte. Ela pode consistir tanto no agravamento da imposição tributária (e.g. desestimular o consumo de determinadas mercadorias, como fumo, álcool etc.), como em renúncia fiscal. Nesse último caso, a renúncia deve estar afinada com os valores prestigiados pela Constituição, como os objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º, a promoção dos direitos e garantias fundamentais e a efetivação das políticas públicas. É a finalidade constitucional que define o tributo como extrafiscal. 

Desse modo, a revisão dos benefícios fiscais e a supressão daqueles que não tenham justificativa plausível, com fundamento em princípios constitucionais, devem fornecer os recursos necessários para o financiamento do Estado e do cumprimento de suas finalidades essenciais.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Alcance e limites da interpretação gramatical


Velocino Pacheco Filho

Muito se tem falado sobre a precariedade da interpretação exclusivamente gramatical dos textos de direito positivo. Contudo, já ensinava Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 106) que “o primeiro esforço de quem pretende compreender pensamentos alheios orienta-se no sentido de entender a linguagem empregada”. Segundo esse autor, ainda surpreendentemente atual, o intérprete “graças ao manejo relativamente perfeito e ao conhecimento integral das leis e usos da linguagem, procura descobrir qual deve ou pode ser o sentido de uma frase, dispositivo ou norma”.

Desde que o povo veio a substituir o príncipe como titular da soberania, as leis são consideradas como expressão da vontade do povo, elaboradas e aprovadas por seus representantes eleitos. Então, os textos de direito positivo, resultado da atividade legislativa, têm um sentido e uma intenção que não podem ser ignorados pelo intérprete. Pelo contrário, eles são o ponto de partida do trabalho de interpretação, como observa Karl Larentz (Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed. Lisboa: Gulbenkian, 1997, p. 450): “Toda interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal”. O legislador dirige-se ao cidadão e deseja ser entendido por ele.

Não é outra a lição de Ricardo Lobo Torres (Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 327): “O método literal, gramatical ou lógico-gramatical é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir do texto”.

Mas, embora imprescindível, a interpretação não pode ater-se apenas à análise gramatical do texto. Ela é insuficiente. Por quê? 

As razões são várias. Em primeiro lugar, as imprecisões da própria linguagem humana, suas ambiguidades e a pluralidade de sentido das palavras. Os chamados “termos indeterminados” – dos quais não podemos prescindir – têm conteúdo semântico vago que deve ser precisado pelo intérprete, de forma compatível com o ordenamento jurídico.

Cada palavra pode ter mais de um sentido; e acontece também o inverso – vários vocábulos se apresentam com o mesmo significado; por isso, da interpretação puramente verbal resulta ora mais, ora menos do que se pretendeu exprimir. .... Em regra, só do complexo das palavras empregadas se deduz a verdadeira acepção de cada uma, bem como a ideia inserta no dispositivo (Maximiliano, op. cit. p. 109).

Ademais, o fato concreto com que se depara o intérprete e aplicador da lei – e que não pode furtar-se a dar uma solução (vedação ao non liquet) – não é exatamente o mesmo com que se defrontou o legislador. Sempre há traços peculiares ao caso concreto.

Outra dificuldade é que as leis resultam do debate parlamentar, ou seja, de acordos firmados entre grupos de parlamentares que representam distintos interesses e ideologias. Como o legislativo representa a sociedade, nele estão presentes – como não poderia deixar de ser – os diferentes segmentos que a compõe. Daí que não se pode esperar consistência no direito positivo que resulta de um consenso negociado.
Por outro lado, a interpretação gramatical estabelece os limites dos significados possíveis do texto do direito legislado; o balizamento além do qual o intérprete não pode ir. “A interpretação literal, em outro sentido, significa um limite para a atividade do intérprete. Tendo por início o texto da norma, encontra o seu limite no sentido possível daquela expressão linguística” (Torres, op. cit. p. 241).

A interpretação das leis serve à sua aplicação. A lei é interpretada para poder ser aplicada. “A aplicação não prescinde da hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose” (Maximiliano, op. cit. p. 8). Então, deve interpretar a lei todo aquele incumbido de aplicá-la. Essa tarefa é principalmente do Judiciário, mas pode incumbir também à Administração quando esta aplica a lei de ofício, como é o caso da atividade administrativa de constituição do crédito tributário (lançamento).

Todavia, em matéria de interpretação, a Administração não tem a mesma liberdade do Judiciário: a Administração não pode declarar a inconstitucionalidade de lei, ou negar vigência a decreto ou portaria de Secretário de Estado. A isso se opõe o princípio da hierarquia que informa a Administração. Já o judiciário não sofre tais limitações.

Vejamos, apenas como exemplo, a incidência do ICMS, de competência dos Estados, e do ISS, de competência dos Municípios. Abstraindo a questão das prestações de serviço de transporte e de comunicação, podemos resumidamente dizer que o fato gerador do ICMS consiste em obrigações de dar e o do ISS em obrigações de fazer. Mas pode acontecer que tenhamos um fato misto que compreenda tanto obrigação de dar quanto de fazer. Qual tributo deverá incidir? 

Dispõe o art. 146, I, da Constituição Federal, que “cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”.

Ora, a Lei Complementar 116/2003 (que trata do ISS), art. 1º, § 2º dispõe que ressalvadas as exceções expressas na lista de serviços, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva o fornecimento de mercadorias. A Lei Complementar 87/1996 (que trata do ICMS), art. 2º, IV e V, dispõe, por sua vez, que o imposto incide sobre o fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios ou quando, sujeitos ao imposto sobre serviço, a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.

Merece menção que disposições semelhantes constavam dos §§ 1º e 2º do art. 8º do Decreto-lei 406/1958 que anteriormente regia essas matérias.

Em síntese: quando estiverem presentes, simultaneamente, operação de circulação de mercadorias e prestação de serviço, o ICMS incide apenas quando (i) o serviço não constar da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 ou (ii) a própria lista ressalvar a incidência do ICMS sobre as mercadorias empregadas.

Pois bem! Poderia a Administração Tributária estadual adotar outro critério – mais favorável aos Estados – que não o previsto nas LC 116/2003 e na LC 87/1996? Certamente que não! Se o fizesse, estaria não só invadindo a competência tributária dos Municípios, como também a competência privativa do legislador complementar federal para dirimir conflitos de competência. Além disso, estaria contrariando norma expressa de lei complementar federal.

Com efeito, leciona Karl Larentz (op. cit. 453): “o que está para além do sentido literal linguisticamente possível e é claramente excluído por ele, já não pode ser entendido, por via da interpretação, como o significado aqui decisivo deste termo”. Isto por que o significado literal da lei tem uma dupla missão: é não só o ponto de partida para a indagação judicial do sentido, como também traça os limites da atividade interpretativa. “Uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido”.

A adoção de critérios outros, além dos expressamente previstos pelo legislador complementar para demarcar as esferas de competência, respectivamente, de Estados e Municípios não constitui interpretação, mas inovação que é vedada à Administração. 

quinta-feira, 17 de março de 2016

O sigilo bancário e a defesa da privacidade: “o direito de sonegar”.

Velocino Pacheco Filho

Questão recorrente é saber se o Fisco tem direito de pedir informações diretamente às instituições financeiras sobre as movimentações de seus correntistas ou se tais informações dependem de autorização judicial. 

Conforme § 1º do art. 145 da Constituição, os impostos, sempre que possível terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. 

Então, o acesso da administração tributária a dados sobre o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte é garantido pela própria Constituição, desde que (i) venham conferir efetividade ao caráter pessoal e graduação segundo a capacidade econômica de cada um e (ii) sejam respeitados os direitos individuais.

Que esta disposição constitucional compreende informações bancárias, parece estar confirmada pelo art. 197, II, do Código Tributário Nacional, segundo o qual estão obrigados, mediante intimação escrita, a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades financeiras de terceiros, os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras. 

Bem verdade que o parágrafo único desse artigo dispõe que o dever de informações não abrange fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão. Estariam nesse caso as informações dos bancos sobre seus clientes? É pouco provável que o legislador tenha pretendido retirar no parágrafo o direito que concedeu no corpo do artigo.
O sigilo que as instituições financeiras devem observar quanto às movimentações de seus clientes foi tratado pela Lei Complementar 105/2001. Esse diploma legal, no entanto, ressalva o Fisco nos arts. 5º e 6º:

Art. 5º O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

Dito de outro modo: desde que haja processo administrativo em curso e que o seu exame seja considerado indispensável pela autoridade administrativa competente, é garantido ao Fisco o exame de documento, livros e registros, inclusive os referentes a contas de depósito e aplicações financeiras. Portanto, a autorização para o acesso do Fisco a informações bancárias dos contribuintes fica a cargo de autoridade administrativa e não do judiciário. O Fisco, no entanto, fica obrigado a guardar sigilo sobre essas informações, nos termos do art. 198 do CTN, respondendo criminalmente o agente do Fisco, no caso de divulgação das mesmas.

Comenta com pertinência Marcos Antônio P. Noronha (O Sigilo Bancário no Brasil. In: TÔRRES, Heleno Taveira et al. – coord. – Direito Tributário e Processo Administrativo Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 423): “descabe, completamente, a ideia de que o Fisco sairá utilizando indevidamente o sigilo bancário dos cidadão com base em infundadas suspeitas e que as informações obtidas poderão ser divulgadas”.

No entanto, parcela significativa da doutrina tem negado o direito do Fisco de acesso a informações bancárias do contribuinte. Mesmo a jurisprudência, ainda que não declarada a inconstitucionalidade dos arts. 5º e 6º da LC 105 ou do art. 197, II, do CTN, tem condicionado o acesso a tais informações à autorização do Judiciário. Esse entendimento está sendo revisto pelo Supremo Tribunal Federal.

Os que pretendem limitar o acesso do Fisco às informações bancárias fundamentam nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal: (i) o inciso X trata da proteção da privacidade e (ii) o inciso XII, do sigilo de dados. 

Ora, nesse ponto devemos perguntar: que privacidade está sendo protegida? A do crime organizado? A dos corruptos? A dos sonegadores? O Estado brasileiro, em particular o Poder Judiciário, está protegendo a lavagem de dinheiro proveniente de atividades ilegais como o tráfico de drogas, a prostituição, a corrupção, a sonegação?

A Constituição não garante expressamente o sigilo bancário. Apenas por interpretação – discutível – podemos enxergá-la inserida na proteção à privacidade ou do sigilo de dados. No esclarecido magistério de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri SP: Manole, 2007, p. 181), “o sigilo bancário, embora tenha a ver com privacidade, não conhece uma subsunção imediata na Constituição, embora esta, tendo em vista a inviolabilidade do direito à privacidade, exija do legislador a máxima cautela com a publicidade das relações privadas”.

Em particular, com base no art. 5º da LC 105, foi firmado acordo entre Brasil e os EUA para permitir o intercâmbio de informações fiscais no âmbito do Foreign Account Tax Compliance Act, aprovado pelo Decreto Legislativo 146/2015, no que se refere às instituições financeiras brasileiras. Para dar-lhe efetividade, foi editada a Instrução Normativa RFB 1.571/2015, tornando obrigatória para as instituições financeiras a prestação de informações sobre as operações financeiras de seus clientes.

Entre os argumentos contrários à medida, apelou-se para o risco de “compartilhar essas informações personalíssimas com outros países que não se comprometem com os direitos e garantias estabelecidos na Constituição Federal, dentre os quais, a necessidade de prévia autorização judicial”. Os países que causam tanta preocupação, por não terem compromisso com os direitos e garantias constitucionais, são os Estados Unidos, a França, a Inglaterra, a Alemanha e outros onde tem se desenvolvido a teoria dos direitos e garantias constitucionais que o Brasil tem copiado tão aplicadamente.

A solicitação, pela Administração Tributária, de informações sobre operações bancárias do contribuinte é um ato administrativo vinculado que visa realizar a função precípua do Fisco, outorgada pela Constituição, que é o poder de tributar, dentro do qual está inserido o de fiscalizar, e, portanto, deve dispensar autorização judicial prévia para ser praticado, estando no âmbito de competência da própria administração que representa o Poder Executivo (Noronha, op. cit. p. 422).

A seu turno, Gilmar Ferreira Mendes e outros (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 375), reconhece que a LC 105 atribuiu aos agentes do Fisco, no exercício do seu poder de fiscalização, o poder de requisitar informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras, independentemente de autorização judicial: 

O direito ao sigilo bancário, entretanto, não é absoluto, nem ilimitado. Havendo tensão entre o interesse do indivíduo e o interesse da coletividade, em torno do conhecimento de informações relevantes para determinado contexto social, o controle sobre os dados pertinentes não há de ficar submetido ao exclusivo arbítrio do indivíduo.

A fiscalização é uma função típica de Estado, razão por que é permitido ao Fisco acesso a informações bancárias do contribuinte, sem que para isso, precise de prévia autorização judicial, pois nada mais estará fazendo que cumprir sua função. O poder de tributar e de fiscalizar é inerente ao poder de polícia do Estado, que deve ser considerado normal em um país democrático, onde esteja presente o estado de direito. Cuida-se do condicionamento da liberdade do indivíduo ao bem estar social que consiste, no caso, em melhor distribuição de renda e não sobrecarga  de uns em favor de outros (Mendes, op. cit. p. 424).

O próprio Superior Tribunal de Justiça já vinha sinalizando a relativização do sigilo bancário (AgRg no AgIn 1.329.960 SP; Luiz Fux; Primeira Turma; DJe 22/02/2011):

12. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 facultou à Administração Tributária, nos termos da lei, a criação de instrumentos/mecanismos que lhe possibilitassem identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, respeitados os direitos individuais, especialmente com o escopo de conferir efetividade aos princípios da pessoalidade e da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º).

13. Destarte, o sigilo bancário, como cediço, não tem caráter absoluto, devendo ceder ao princípio da moralidade aplicável de forma absoluta às relações de direito público e privado, devendo ser mitigado nas hipóteses em que as transações bancárias são denotadoras de ilicitude, porquanto não pode o cidadão, sob o alegado manto de garantias fundamentais, cometer ilícitos. Isto porque, conquanto o sigilo bancário seja garantido pela Constituição Federal como direito fundamental, não o é para preservar a intimidade das pessoas no afã de encobrir ilícitos.

Em suma, não se justifica dificultar o acesso do Fisco às informações bancárias dos contribuintes, mesmo por que elas permanecerão protegidas pelo sigilo a que estão obrigadas as autoridades fiscais, conforme art. 198 do Código Tributário Nacional. O que não se pode admitir é utilizar o sigilo bancário como escudo protetor de atividades ilícitas. Já é tempo do Brasil deixar de ser o país da impunidade.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

A RETOMADA DA CONSCIÊNCIA DE CONTRIBUINTE


Fabiano Ramalho

As relações entre os dois polos da sujeição tributária (Estado-Fiscal e Cidadão-Contribuinte) têm merecido grande interesse dos intelectuais do Direito. Dentre estes, há os que, de uma maneira ou de outra, enxergam uma deterioração crescente da qualidade dessa relação, especialmente com a experiência pós-moderna do Direito Tributário, que parece denotar certo esvaziamento da plena consciência de contribuinte por parte do cidadão.

Pagar tributo virou quase uma obrigação automática, irrefletida, descolada de consequências político-sociais, e, o que é pior, parece assimilar aquilo que há de mais perverso no mundo atual, que é o imediatismo pragmático, o individualismo radical, a efemeridade de valores e o contratualismo moral.

Essa realidade surreal não veio da noite para o dia. É fruto do desenvolvimento mal sucedido da visão de mundo moderna, a partir do século XIX, com o desenvolvimento da ciência e do capitalismo e a crença num mundo estável, ordenado, seguro, coerente, limpo, sólido. Apesar dos progressos alcançados, essa crença colocou o homem numa espécie de armadilha cartesiana, onde a lógica subjuga os sentidos e a razão predomina sobre a emoção.

Não por acaso, a festa da Modernidade terminou com o fracasso da condição humana, representado pelas duas guerras mundiais, pelo colapso da economia global, pelos regimes totalitaristas e pela falácia do Estado do Bem-Estar Social, já na primeira metade do século XX.

Nesse cenário, a consciência humana parece ter sido perdida, substituída por uma forma de submissão voluntária, que transforma o homem em gado manso, educado e tranquilo, alheio ao mundo que o rodeia e desprovido de uma visão crítica da realidade. É, então, que surgem intelectuais dedicados a investigar essa realidade endêmica, como Nietzsche, Sartre, Heidegger, Foucault, Freud, dentre outros, todos ligados, de forma mais ou menos homogênea, a movimentos como o Existencialismo e o Humanismo.

Dentre eles, escolhi para ilustrar esse pequeno estudo o pensamento de Antoine de Saint-Exupéry, escritor, poeta, aviador, repórter francês e, por que não, filósofo, que viveu na primeira metade do século XX. Autor que ficou imortalizado pelo livro "O Pequeno Príncipe" (erroneamente interpretado como literatura infantil), mas que possui uma obra consagrada ao humanismo.

Ele defendia arduamente a retomada de consciência da condição humana, relacionada com a redescoberta do Ser Humano, tão afetado pelas mazelas do final do século XIX e do início do XX. A experiência das guerras, da vida (sobrevivência) no deserto, do vazio da vida moderna, do fracasso das promessas da modernidade, influenciariam fortemente Exupéry, fazendo-o identificar como consequência imediata uma perda da consciência humana, um vazio existencial. Ele escreveu em um de seus textos: "O Homem não tem mais sentido, é preciso absolutamente falar aos homens".[1]

Philippe Diolé[2], escritor francês contemporâneo de Exupéry, Ilustrou bem a preocupação da época vivida pelo autor de "Le Petit Prince": "Não é somente o cenário que é fabricado, elaborado neste século XX, também os sentimentos e a vida interior. Existências inteiras situam-se entre o metrô e o cinema e só se alimenta de imagens em conserva ou vozes gravadas e emoções fingidas [...] É preciso evitar toda essa falsa realidade para encontrar a verdadeira."

Max Picard, outro herdeiro da tradição humanista, dizia que "nada mudou tanto a natureza do homem quanto a perda do silêncio". Ele escreveu sobre a necessidade do silêncio da alma e o afastamento do seu contrário, o rumor cotidiano, na mesma linha de idéias de Saint-Exupéry: "A palavra não existe mais como espírito somente como rumor, como maneira acústica... Esse rumor é um vazio sonoro que recobre o vazio insonoro. A palavra autêntica, ao contrário, é plenitude sonora acima da superfície silenciosa do silêncio.[...] O rumor é pseudopalavra e pseudossilêncio, por sua vez: é dito alguma coisa e não há palavra; desaparece alguma coisa no rumor e não há silêncio."[3]

Em "O Pequeno Príncipe"[4], Saint-Exupéry condensou muitas de suas idéias sobre essa retomada de consciência, de uma forma por vezes lúdica, como na metáfora do deserto, que simbolizava o vazio da alma, por vezes poética e filosófica, como no ensinamento "o essencial é invisível aos olhos".

O livro está recheado de um humanismo que permeava o imaginário de pensadores da época, todos preocupados com um ritmo de crescimento acelerado da ciência moderna e do capitalismo, que progressivamente descolavam o homem do Ser Humano (ou o Ente do Ser, na visão de Sartre) e que culminou com duas guerras mundiais e a criação da Bomba Atômica. Através das metáforas de “O Pequeno Príncipe”, Exupéry nos conta os seus dramas morais pessoais e a preocupação coletiva com relação ao futuro da humanidade, devolvendo uma certa realidade ao mundo, onde o homem é a única fonte de valor e de moralidade.

A retomada de consciência busca, portanto, reencontrar os caminhos da Existência, numa espécie de culto do Eu interior, na sua acepção de natureza humana, essencial para a salvação do Ser. É, de certa forma, uma luta pela “liberdade”, enquanto resultante da emancipação do pensamento, esse bem imaterial que parece ser perseguido pelo gênero humano desde os tempos mais longínquos.

Encontramos essa busca de uma consciência superior em plena era elisabetana, na obra de Shakespeare[5], quando o príncipe Hamlet encontra seu dilema existencial mais fundamental na Cena I, do 3° Ato, expresso no monólogo "ser ou não ser", cuja melhor interpretação denota a insatisfação do jovem príncipe com a futilidade de sua época, com a podridão do Reino da Dinamarca, onde as consciências se acovardavam ante as conveniências da Corte. Em outro momento da Peça, Hamlet, questionado por Polônio sobre o que estava lendo, responde, fingindo-se de louco: “palavras, palavras, palavras”, parafraseando a consciência da época, que não se importava verdadeiramente com nada.

Essa crise de consciência se agravou com o advento da pós-modernidade, embalada pela Guerra Fria e a ameaça constante de uma catástrofe nuclear durante boa parte da segunda metade do século XX. Uma nova consciência emerge, tutelada por um mercado capitalista ávido pelo consumismo, e que irá forjar aquilo que costumamos chamar de Sociedade do Consumo. Incerteza existencial, somada com globalização, banalização de costumes, supremacia da lógica do mercado e demandas culturais transgênicas formaram um amálgama de novos valores, descartáveis, temerários, individualistas e de pobreza intelectual, desprovidos de uma consciência crítica.

Zigmunt Bauman, sociólogo polonês, denuncia esse flagelo do homem pós-moderno em sua obra, especialmente em “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”[6]. Para ele, a marca da sociedade pós-moderna é a própria “vontade de liberdade”, com o abandono da crença de uma vida social estável, segura e ordenada, prometida pela falida Modernidade. Mas essa liberdade é determinada pelas Leis de mercado, flexível, transitória e infiel, moldando, portanto, uma moral “de ocasião”, descartável ao menor sinal de inadequação às novas demandas de consumo. 

O homem pós-moderno não pode criar vínculos duradouros, sob pena de ser excluído e descartado. O pertencimento à sociedade pós-moderna exige uma consciência adquirida em corredores de shoppings centers, um narciso fraco, uma moral de cabide, que pode ser vestida conforme a ocasião. Hoje, ética e moral viram mercadorias na sociedade de consumo.

Parece que o deserto humano pensado por Exupéry está cada vez mais vasto e perigoso. Em todas as instâncias da vida social e política, estamos sujeitos às forças de um mercado dominador e cada vez menos controlado, que transforma tudo que toca em mercadoria.

No Direito, isso não é diferente. As constantes perdas em matéria de segurança jurídica, a relativização de valores e princípios tradicionais, a desconstrução de sólidos fundamentos da ordem jurídica e a crescente invasão na esfera da vida privada dos indivíduos, são reflexos imediatos da nossa incapacidade de retomar uma consciência emancipatória e libertária, como forma de reação.

E, na esfera do Direito Tributário, essa deformação se manifesta de uma forma perigosa e pragmática: a da transformação social pelo tributo. Com centralização da arrecadação, reformas por Decretos e relativização de princípios como o da capacidade contributiva, da legalidade e da vedação do confisco, vemos crescer cada vez mais o uso do Direito Tributário como instrumento político de reformas sociais, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo. Estamos perdendo, aos poucos, a percepção do justo em matéria tributária, especialmente no que pertine à preservação da liberdade do contribuinte.

Denunciando essa deformação do Direito pelo mundo pós-moderno, Misabel Abreu Machado Derzi, afirma que “instalam-se, ao lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica, capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo legalidade são postos em dúvida”[7].

A defesa da liberdade do contribuinte, então, deve ser o ponto de partida para uma retomada de consciência da condição de contribuinte, na moderna sociedade de consumo. Deve ser a reação a toda vulgarização e relativização dos valores e princípios fundamentais do Direito Tributário, pois, tal e qual era para o humanismo, ela confere ao homem-contribuinte a prerrogativa de dialogar com o Poder Tributante e lutar pela criação de um imposto justo. Em última instância, a liberdade, enquanto pilar da consciência de contribuinte do cidadão, proporciona o estabelecimento de uma efetiva e eficiente ética tributária.

Mas essa consciência não é desprovida de deveres. Ao contrário, ela exige um compromisso permanente com o coletivo, com a res publica e, em última análise, com o Estado. É algo como uma alteridade da condição de contribuinte, autoconsciente de seus direitos e deveres, de seu pertencimento ao Estado, que traduz a certeza da necessidade do imposto, enquanto fonte de financiamento do Estado, e dos limites e garantias desse poder fiscal. 

Significa, portanto, o abandono de uma visão da sujeição tributária meramente individualista e mesquinha, preocupada apenas com a obtenção de privilégios fiscais isolados ou com simulacros disfarçados de planejamento tributário, vícios próprios da consciência pós-moderna.

Na busca dessa consciência, o Estado também exerce um papel fundamental, não só pela conduta ética na relação tributária e na preservação da moralidade nos atos da Administração Pública, mas também pela consciência de seus agentes de que, ao lado de suas funções voltadas para a fiscalização e arrecadação de tributos, existe o dever constitucional de defender os direitos e garantias do contribuinte. Cabe aos agentes estatais contribuir para uma educação fiscal efetivamente emancipadora do contribuinte.

Sem esse esforço conjunto, dificilmente avançaremos em matéria de retomada de uma consciência superior de contribuinte, o que, paradoxalmente, provocaria o colapso do próprio sistema tributário, pois as mazelas da pós-modernidade do direito, acima comentadas, derrubariam de vez os fundamentos desse fabuloso edifício da Justiça. 

[1] BERT, J.-C, Saint-Exupéry, Éditions Universitaires, em Livres de France, Março de 1955, n° 3.
[2] O Mais Belo Deserto do Mundo, Ed.Albin Michel, 1955, p.70
[3] Le Monde du Silence, traduit de l'allemand par J.-J. Anstett, Ed. Presses Universitaires de France, 1954, pp. 134/139.
[4] Paris: Gallimard, 2007.
[5] Hamlet, tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, Bárbara Heliodora, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 168 e 182.
[6] Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[7] DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça Individual. In: Tributos e Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo: Dialética, 2004, p.262.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

REFORMA TRIBUTÁRIA E REVOLUÇÃO SILENCIOSA

Fabiano Ramalho

Por muito tempo se acreditou que seria possível criar um “pacote” de medidas capaz de reformar todo o sistema tributário de uma só vez. Era uma visão romântica, que hoje não existe mais, e que encarava o sistema de Direito Tributário do ponto de vista eminentemente técnico.

Não que seja impossível tal reforma ampla, mas as condições políticas atuais não só no Brasil, mas no mundo globalizado, são desfavoráveis. Atualmente, uma mudança desse porte se assemelharia mais a uma utopia, preterida em prol da concentração de esforços nas mudanças pontuais e setoriais, cada um segundo seu próprio conjunto de interesses públicos e/ou privados.

Parece que estamos perdendo, cada vez mais, a coragem de enfrentar essas mudanças, talvez distraídos pela imensa quantidade de regras tributárias vigentes, que transformam o dia-a-dia dos operadores do Direito Tributário numa corrida louca e incessante contra o descumprimento das obrigações principais e acessórias e, consequentemente, contra toda sorte de penalidade disponível no amplo cardápio da legislação tributária nacional.

É um cenário surreal, que transforma juristas em burocratas do Direito.

No entanto, tal realidade esconde um efeito perverso: na medida em que nos distanciamos de um debate amplo sobre a tributação e nos condicionamos a reagir marginalmente ao sistema, com preocupações pequenas e desconectadas, vamos, paulatinamente, perdendo a capacidade de preservar valores e princípios basilares do Direito Tributário, e passamos a assistir, impotentes, sua desconstrução sistemática.

A pós-modernidade, no conjunto de todos os seus males, não descuidou de abalar as estruturas do Direito, relativizando-as de tal sorte que beiramos a um estado de insegurança jurídica preocupante.

Misabel Abreu Machado Derzi, referindo-se às problemáticas mudanças da pós-modernidade do Direito, assevera que “instalam-se, ao lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica, capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo legalidade são postos em dúvida[1].

Vivemos como reféns das leis do mercado e viramos mesmo o protótipo ideal da sociedade de consumo. Nessa sociedade, o mercado tem pressa e não há tempo para conjecturas de ordem ética ou moral além dos limites do descarte e da reciclagem dos modelos e padrões sociais impostos. Ética e moral, via regra, viraram mercadorias na sociedade de consumo. O sociólogo Zigmunt Bauman vem dedicando sua vasta obra ao estudo dos dramas da pós-modernidade e como eles afetam e condicionam nossas propostas de futuro.

No seu livro “Vida Líquida”[2], por exemplo, citando Adorno e Pierre Bourdieu, ele sustenta que, na moderna sociedade de consumo, “os indivíduos são reduzidos à mera sequência de experiências instantâneas que não deixam traço, ou então cujo traço é odiado como irracional, supérfluo ou suplantado no sentido literal do termo. [...] pessoas que não têm nem um pequeno ponto de apoio no presente (e não o têm, dadas as experiências notoriamente voláteis e disformes, fragmentadas em pequenos e rápidos episódios) não reunirão a coragem exigida para se apoiar no futuro”.

Hannah Arendt enxerga uma certa neo-idade das trevas nos tempos pós-modernos, caracterizada “por um discurso que não revela o que é, mas varre seus atributos para baixo do tapete, por exortações morais ou de qualquer outro tipo que, sob o pretexto de sustentar antigas verdades, rebaixam toda verdade à trivialidade sem sentido”.[3]

É tamanha a desconstrução de valores e princípios que, nesse ritmo, logo não restarão vestígios do mundo moderno nem para fins de arqueologia moral. O que não percebemos é que esse estado de coisas adota práticas revolucionárias e, de forma orgânica, promove um verdadeiro golpe às instituições sociais, políticas e jurídicas, minando aos poucos nossa capacidade de resistência e fragmentando nossos esforços. Retiram nossas armas e, depois, nossa consciência moral.

E, na esfera do Direito Tributário, essa revolução encontra uma nova e poderosa ferramenta: a da transformação social pelo tributo. Enquanto esperávamos por uma reforma tributária completa, pronta e acabada, assistimos passivamente um governo, supostamente influenciado por ideais sociais, promover, a conta-gotas e via decreto, mini-reformas na legislação, centralizando fortemente a arrecadação no Governo Federal e criando mecanismos que corroem os princípios e garantias constitucionais dos contribuintes, como, por exemplo, a capacidade contributiva, a legalidade e a vedação do confisco.

No mesmo contexto, políticas de transferência de renda mal engendradas e o insustentável peso dos tributos começam a comprometer a legitimidade sociológica do tributo (sobre o assunto, ler o artigo deste Blog "A Legitimidade Sociológica do Poder Fiscal", disponível aqui).

Thomas Piketty defende abertamente o uso do Tributo como instrumento de mudança social. Em seu livro “Por Uma Revolução Fiscal”, ele diz que “o imposto não é apenas uma questão técnica: ele implica numa questão eminentemente política, que pode contribuir para remodelar as relações entre as pessoas e os grupos sociais.[4].

Como se percebe, muito além de uma reforma fiscal, ele defende uma revolução social por meio do tributo. Não é comum esse nível de literalidade tão agudo em intelectuais desse calibre. Piketty defende uma série de mudanças no imposto sobre a renda e sobre o patrimônio na França, preocupado não só com um tributo mais justo e proporcional, mas sobretudo com uma redistribuição de renda mais agressiva e um controle maior do Estado sobre a economia (e os mais ricos). Suas bandeiras são: individualização do imposto, progressividade e equidade.

Sob o prisma da individualização, ele defende, por exemplo, a eliminação dos privilégios fiscais da Declaração Conjunta de I.R. para casais (quotient conjugal), visando uma maior emancipação econômica e profissional da mulher, afetando, assim, o planejamento familiar, para privilegiar (e incentivar) o crescimento das "novas" famílias, experiências transgênicas e voláteis adequadas ao mercado consumidor.

Não nos interesse nesse artigo aprofundar o debate sobre as teorias de Piketty, pelo que recomendamos a leitura do artigo publicado em maio de 2015, por Velocino Pacheco, disponível aquiMas a referência à sua obra serve para ilustrar melhor aquilo que estamos defendendo aqui, que é o uso do Direito Tributário como instrumento político de reformas sociais, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo. 

               Vivemos, no Brasil, uma revolução silenciosa, em parte promovida pela manipulação do sistema tributário, remodelando valores, princípios e dogmas tanto do Direito Público como do Privado. O famoso lema da Revolução Francesa, enredo da Marseillaise, aux armes, citoyens!, parece agora adaptado para a realidade brasileira como aux impôts, citoyens!



[1] DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça Individual. In: Tributos e Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo: Dialética, 2004, p.262.
[2] BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[3] ARENDT, Hannah. Man in Dark Times. Haarcourt Brace, 1983, p.8.
[4] PIKETTY, Thomas. Pour Une Révolution Fiscale. Un Impôt sur le Revenu pour le XXIe Siècle. Seuil, 2011. P.67.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Inteligência do art. 43 da Lei 10.297/1996 de Santa Catarina

Velocino Pacheco Filho

Dispõe o § 7º do art. 150 da Constituição Federal que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão somente pode ser concedido mediante lei da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g, ou seja, no caso do ICMS, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, na forma prevista em lei complementar.

Entretanto, o art. 43 da Lei 10.297/1996, de Santa Catarina, autoriza o Poder Executivo, sempre que outro Estado ou o Distrito Federal conceder benefícios fiscais ou financeiros de que resulte redução ou eliminação, direta ou indiretamente, de ônus tributário, com inobservância do disposto na lei complementar  de que trata o art. 155, § 2°, XII, “g”, da Constituição Federal, a tomar as medidas necessárias para a proteção dos interesses da economia catarinense.

O dispositivo depende, para sua aplicação, de ser demonstrado que: (i) outro Estado ou o Distrito Federal concedeu benefício fiscal, do qual resultou redução ou eliminação do ônus tributário; (ii) o benefício não foi autorizado por convênio Confaz, contrariando o art. 155, § 2°, XII, “g”, da Constituição Federal; (iii) o benefício em questão trouxe prejuízo à economia catarinense.

Por outro lado, o dispositivo não pode ser entendido como autorização para Santa Catarina, por sua vez, conceder benefícios fiscais não autorizados pelo Confaz, como retaliação. Nada justifica o descumprimento da Constituição.

Considerando que no Estado Democrático de Direito todos têm o dever de contribuir para com o financiamento do setor público, na medida de sua capacidade contributiva (Estado Fiscal), qualquer dispensa de tributo deve ser justificada. A justificativa pode ser com base no próprio princípio da igualdade ou em razões de extrafiscalidade. Se, nos termos do art. 150, II, é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontram em situação equivalente, então, a contrario sensu, deve ser dado tratamento diferenciado entre contribuintes que não se encontram em situação equivalente. 

A extrafiscalidade como justificativa para tratamento tributário diferenciado não se limita a induzir comportamentos, mas deve estar voltada para a realização de valores albergados pela Constituição, do bem comum e do interesse público. A extrafiscalidade deve estar alinhada com os objetivos fundamentais da República. Caso contrário, se o tratamento tributário diferenciado visa apenas beneficiar alguns, estamos diante do “privilégio odioso”, repudiado pela moral e pelo direito.

Um exemplo de mau uso do art. 43 encontramos no art. 196 do Anexo 3 do Regulamento do ICMS de Santa Catarina.  Ele diz que “poderá” ser concedido crédito presumido a medicamentos etc., na saída subsequente à sua importação, calculado sobre o valor da operação própria, “de acordo com a faixa de receita bruta anual auferida pelo beneficiário”. 

O que justifica esse benefício? Mais ainda, o que justifica a sua graduação em função da receita bruta anual?

Além disso, conforme dispõe o § 1º do mesmo artigo, o benefício depende de concessão de regime especial pelo Secretário de Estado da Fazenda e de um “protocolo de intenções” firmado com o Estado. Ora, crédito tributário, por definição, é indisponível. Ou seja, A Administração, inclusive o titular da Pasta da Fazenda, não é “dona” do tributo; não pode dispor livremente do crédito tributário. Não há poder discricionário para conceder ou não benefício fiscal. A autoridade pode apenas verificar se estão presentes os requisitos previstos em lei para a sua fruição. Em caso afirmativo, ele deve ser concedido. O art. 37 da Constituição elege, entre os princípios que informa a Administração Pública, o da impessoalidade: a Administração não pode demonstrar preferências; todos são iguais perante a Administração.

Porque o crédito tributário é indisponível ele não pode ser objeto de acordos, contratos ou protocolos de intenções. O crédito tributário rege-se apenas pela lei.

Além disso, o benefício é condicionado a que o beneficiário contribua com o Fundosocial – Fundo de Desenvolvimento Social, instituído pela Lei 13.334/2005, destinado a financiar programas e ações de desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão e promoção social, no campo e nas cidades, no Estado de Santa Catarina, inclusive nas áreas da cultura, esporte e turismo, educação especial e educação superior. 

Contudo, o art. 167, IV, da Constituição, veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a destinação de recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino e de outras hipóteses que enumera. Uma “contribuição” sem a qual o contribuinte não consegue o benefício não é voluntária, mas compulsória. À evidência, não passa de uma forma de burlar a vedação contida no art. 167, IV, da Constituição. Apenas no que se refere à educação especial e educação superior podemos considerar como aceitável esse desvio de recursos tributários. Isto por que somente a lei orçamentária pode definir a alocação da receita tributária.

O Fundosocial poderia ser justificado nos termos do parágrafo único do art. 204 da Constituição que autoriza os Estados a vincular a programas de apoio à inclusão e promoção social até 0,5% da receita tributária líquida? Não. O conceito de receita tributária líquida somente faz sentido em relação ao orçamento (receita de todos os tributos de competência dos Estados diminuído da parcela transferida aos Municípios). Não pode simplesmente ser subtraída para essa finalidade uma parcela do ICMS devido.

Chega? Tem mais! O benefício fiscal também é condicionado a uma contribuição – inominada – à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico Sustentável, sem qualquer suporte em lei. Se a lei não pode vincular receita de impostos, menos ainda pode o decreto que é expedido pelo Executivo para a fiel execução das leis, conforme art. 84, IV, in fine, da Constituição Federal.

Não seria mais fácil cumprir a Constituição e não ficar construindo legislações tortuosas?