DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Taxa de emissão de passaporte

Velocino Pacheco Filho
Foi noticiado que está suspensa a emissão de novos passaportes devido à insuficiência do orçamento destinado às atividades de controle migratório e emissão de documentos de viagem. No entanto, para a emissão de passaporte é cobrada uma taxa de R$ 257,25 que, em tese, deveria cobrir os custos envolvidos.

A taxa é espécie tributária que tem como fato gerador uma atividade estatal relativa ao contribuinte. Temos duas espécies de taxas, conforme o tipo de atividade estatal exercida pelo Estado: (i) taxa pelo exercício do poder de polícia e (ii) taxa pela prestação de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. A taxa, juntamente com a contribuição de melhoria, são tributos ditos “vinculados” (a uma finalidade), enquanto os impostos são ditos não-vinculados, destinando-se ao financiamento do Estado como um todo. Se o financiamento do Estado é um dever da cidadania em que cada um participa na medida de sua capacidade de contribuir, quando o serviço público atende às necessidades de uma pessoa, individualmente identificada (uti singuli), ele deve ser financiado diretamente pela pessoa beneficiada, mediante pagamento de taxa.

Conforme Aurélio P. Seixas Filho que a taxa “tem a função de recuperar o custo específico e mensurável de uma atividade governamental relacionada diretamente com o contribuinte”. Por conseguinte, leciona Humberto Ávila, as taxas não podem “financiar atividades gerais e essenciais, que seriam praticadas mesmo sem a provocação dos contribuintes e pelas quais eles não podem ser considerados responsáveis”. Isto por que, segundo Misabel Derzi, o valor da taxa “deve mensurar o custo de atuação do Estado, proporcionalmente a cada obrigado”.

Ora, consta que a taxa cobrada para emissão do passaporte não é destinada diretamente ao custeio da emissão de passaportes, mas vai para a Conta Única do Tesouro Nacional, sendo utilizada para as mais diversas finalidades. A Polícia Federal não tem autonomia para gerenciar a receita da taxa cobrada dos respectivos contribuintes.

Se assim é, uma parcela do que é arrecadado do contribuinte, a título de contraprestação do serviço prestado, é utilizada em outras finalidades, ou seja, no financiamento do serviço público como um todo o que é função dos impostos e não das taxas. Ainda segundo H. Ávila, “somente uma atividade administrativa individualmente relacionada ao contribuinte e cujos custos possam ser-lhe imputáveis é que pode legitimar a cobrança de uma taxa. Não sendo esse o caso, o custo, por ser geral, deverá ser coberto por meio da cobrança de impostos”.

Se a taxa é calculada em função do custo do serviço prestado pelo Estado ao cidadão, é ilógico que faltem recursos para a prestação do serviço. O custo deveria ser integralmente coberto pela taxa cobrada. Se tal não acontece é porque o valor recolhido é desviado para financiar outras atividades. A receita da taxa deveria ser toda ela encaminhada ao órgão que presta o serviço. 

Por conseguinte, se está sendo cobrado, pela emissão de passaporte, um valor que não corresponde a essa prestação de serviço pelo Estado, é legítima a cobrança desse valor a maior? O contribuinte não está sendo extorquido, ao arcar com custos não relacionados ao serviço prestado? Esse é um abuso que não deveria ser tolerado em um Estado que se pretende democrático de direito.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Uniformização Fiscal Internacional: o Caminho para o Combate à Evasão Fiscal e o Desenvolvimento Econômico

Por Fabiano Ramalho

O comércio internacional passou por profundas mudanças nos últimos 100 anos, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. O processo de integração econômica que dominou a segunda metade do século XX promoveu uma gradual eliminação das barreiras alfandegárias no comércio entre os países, o que exigiu a adoção normas internacionais eficientes para garantir um ambiente de negócios propício e seguro.

A globalização trouxe, sem dúvida, enormes vantagens para os países abertos ao comércio internacional, impulsionando a economia mundial e fomentando o desenvolvimento econômico e social das nações por meio dos investimentos estrangeiros, que prometiam incrementar a receita fiscal dos Estados e, com isso, financiar políticas públicas diversas, como educação e saúde.

Sob o ponto de vista fiscal, duas novas perspectivas merecem destaque com a expansão da globalização: o uso ideológico do tributo, com forte viés político, e o banimento das fronteiras nacionais, com a concorrência entre os países para a atração de investimentos estrangeiros diretos. Tanto num quanto noutro caso, a parafiscalidade passou a assumir um papel primordial nas políticas fiscais das nações, especialmente nas relações internacionais.

Sob o primeiro aspecto, o uso do tributo como instrumento de mudança social, por meio de políticas de redistribuição de renda e de progressividade do imposto, por exemplo, tem sido implementado por vários países, no intuito de promover uma justiça social mais efetiva e combater a desigualdade social. Thomas Piketty diz que “o imposto não é apenas uma questão técnica: ele implica numa questão eminentemente política, que pode contribuir para remodelar as relações entre as pessoas e os grupos sociais.”[1] (PIKETTY, 2011).

Muito além de uma reforma fiscal, ele defende uma verdadeira revolução social por meio do tributo, com a individualização do imposto, progressividade e equidade, propondo, por exemplo, mudanças significativas no imposto sobre a renda e sobre o patrimônio. A preocupação, aqui, não é só com um tributo mais justo e proporcional, mas, sobretudo, com uma redistribuição de renda mais agressiva e um controle maior do Estado sobre a economia.

Mas é a segunda perspectiva trazida pela globalização que interessa para o presente estudo. A busca por investimentos estrangeiros que financiem as políticas de desenvolvimento social e econômico tem levado diversos países a enfrentarem uma verdadeira guerra fiscal internacional. A concorrência pelo capital tem imposto uma política agressiva de concessão de isenções, reduções de alíquotas e créditos fiscais, sem que isso resulte em vantagem para o Estado concedente, já que o incremento nas receitas públicas é muito modesto.

No início da década de 90, os investimentos estrangeiros no Brasil totalizavam cerca de US$ 37 bilhões, saltando para mais de US$ 103 bilhões no ano 2000, um crescimento de aproximadamente 180%. No mesmo período, a arrecadação tributária passou de US$ 143 bilhões para US$ 197 bilhões, um crescimento de pouco mais de 37%.

De fato, essas políticas geram o fenômeno do dumping fiscal internacional, um processo de deterioração da base fiscal dos países em desenvolvimento, extremamente prejudicial e com altos sacrifícios sociais e econômicos. Isso porque o ambiente concorrencial entre as nações criou condições propícias para práticas de evasão fiscal, por meio dos procedimentos de otimização fiscal por parte das empresas multinacionais, que usam e abusam de modelos baseados em trusts, offshores, paraísos fiscais, etc., para reduzir drasticamente ou mesmo eliminar o seu custo tributário. Sem falar dos prejuízos internos, como a concorrência desleal gerada contra as empresas nacionais, que não contam com os mesmos estímulos fiscais.

A corrida pelo investimento estrangeiro direto exige dos Estados a criação de um ambiente e negócios atrativo, o que inclui não apenas aspectos fiscais, mas também políticos, jurídicos e sociais. Na esfera fiscal, além dos benefícios oferecidos diretamente ao investidor, somam-se os tratados internacionais para eliminar a bitributação, que tem por finalidade básica evitar a dupla incidência tributária, com a cobrança de tributos direitos e indiretos pelo país da sede/residência e pelo país da fonte da renda (overlaping tax jurisdictions). Estima-se que existam atualmente cerca de 3.000 tratados internacionais para evitar a bitributação, sendo que o Brasil possui acordos dessa espécie com mais de 30 países[2].

A importância dos tratados internacionais sobre bitributação para o comércio internacional foi bem retratada por José Casalta Nabais:

Uma das importantes consequências da internacionalização crescente das situações tributárias traduz-se na necessidade de os estados terem uma política fiscal externa orientada para o combate à dupla tributação internacional que as actuais economias abertas favorecem extraordinariamente. Política essa que visa adequar o sistema fiscal, de um lado, à internacionalização das empresas nacionais evitando tratar os lucros por elas gerados no estrangeiro e repatriados em termos desfavoráveis face aos lucros por elas gerados no estrangeiro e repatriados em termos desfavoráveis face aos lucros gerados no país e, de outro, incentivar o investimento estrangeiro procurando não prejudicar a repartição dos lucros gerados pelos estabelecimentos estáveis nacionais de sociedades com sede no estrangeiro.” (NABAIS: 2010)[3]

A O.C.D.E. – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, por meio do seu Comitê Fiscal, no intuito de regular a tributação internacional, desenvolveu, a partir de 1963, uma convenção-modelo, uma espécie de guia comentado que serve de instrumento interpretativo do conteúdo e da amplitude das cláusulas das convenções destinadas a evitar a bitributação, tanto por países membros da OCDE, como também por aqueles não membros. No entanto, no mais das vezes, essas convenções se restringem a limitar a competência tributária do país onde o investimento estrangeiro é efetuado, deixando de lado qualquer tentativa de promover uma uniformização fiscal mais profunda entre os países contratantes, especialmente para prevenir a concorrência fiscal entre os países.

Sem essa uniformização, cria-se um cenário de concorrência fiscal internacional e de paraísos fiscais, favorecendo a ocorrência da evasão fiscal, por meio do planejamento fiscal realizado pelas grandes empresas, que fazem desaparecer o lucro ou o desloca para uma tributação reduzida ou, mesmo, inexistente. De uma ou de outra forma, o prejuízo para muitos Estados é evidente, notadamente aqueles menos desenvolvidos, que, diante da acentuada perda de arrecadação fiscal, enfrentam dificuldades para financiar investimentos em infraestrutura e gastos sociais em saúde, educação, saneamento, etc.

Na tentativa de melhor regular os modelos de tributação internacional, combater a evasão fiscal e evitar o uso abusivo dos tratados por parte das grandes empresas multinacionais, a O.C.D.E. e os países que integram o G-20 criaram, em 2013, o plano BEPS – Base Erosion and Profit Shifting, com 15 ações destinadas a de prover os governos com soluções e ferramentas para fechar as lacunas existentes nas regras tributárias, dentre elas o combate ao uso abusivo dos tratados e a divulgação de planejamentos tributários agressivos. Uma das ações mais importantes no combate à evasão fiscal trazida pelo plano BEPS é, sem dúvida, aquela que força as empresas multinacionais a declararem seus lucros onde exercem atividade econômica e obtêm rendimentos, tendo impedir, assim, que os procedimentos de otimização fiscal por elas adotados desloquem esses lucros para paraísos fiscais ou países com alíquotas reduzidas.

A partir de 2017, as empresas que auferirem receitas anuais superiores a 750 milhões de Euros ficam obrigadas a declarar, em cada país em que exerçam atividade, informações sobre lucro, ativos, impostos e empregados, etc, informações essas que serão trocadas automaticamente entre os países, para fins de controle. Também a partir de 2017, entre em vigor o intercâmbio automático de informações fiscais (Standard for Automatic Exchange of Financial Account Information in Tax Matters), instituído em 2014 pelo 7° Fórum Mundial sobre a Transparência e a Troca de Informações para Fins Fiscais, que pretende nada menos que acabar com o sigilo bancário, utilizado como instrumento para escapar do pagamento dos tributos devidos, especialmente com relação a ativos mantidos no exterior. Atualmente, mais de 90 países aderiram a esse intercâmbio, incluindo o Brasil, o que representa mais um esforço global no combate à evasão fiscal.

No entanto, mesmo essas iniciativas poderosas ainda não são suficientes para inibir integralmente a evasão fiscal. Países chaves no combate à evasão fiscal, como os EUA, ainda não aderiram ao plano BEPS e mesmo os países que ratificaram sua adesão não estão obrigados a implementar todas as ações nele previstas. Além disso, a falta de uma uniformização fiscal global mais efetiva, que minimize os efeitos nocivos da concorrência fiscal entre as nações, ameaça manter o estado caótico e paradoxal de desigualdade econômica global, impondo aos países menos desenvolvidos, que mais necessitam de recursos para a promoção do seu desenvolvimento social, político e econômico, uma renúncia de receitas gigantesca.

A concorrência fiscal entre os países e a persistência dos paraísos fiscais ainda favorecem o uso abusivo de práticas de otimização fiscal, gerando perdas de arrecadação não apenas para os países em desenvolvimento, mas também para os mais ricos do globo. Dados da Comissão Europeia estimam que, aproximadamente, 1 bilhão de Euros escapam anualmente dos cofres públicos dos países que integram a União Europeia[4]. Já o relatório Background Brief Inclusive Frameworks on BEPS[5], da O.C.D.E., estima que, anualmente, entre US$100 e US$240 bilhões de receitas tributárias são perdidas por meio dessas práticas, o que culminou no esforço de mais de 100 países no combate à evasão fiscal, por meio da implementação dos esforços propostos pelo BEPS.

O combate à evasão fiscal internacional é tão relevante que, no seu recente livro “Sans Domicile Fisc[6], Eric Bocquet (senador) e Alain Bocquet (deputado), chegaram a afirmar que a erradicação da evasão fiscal na França eliminaria toda a dívida pública:

La dette en France s’élève à 71 milliards d’euros. Le montant de l’évasion fiscale est estimé à 60 à 80 milliards d’euros par an. Elle s’élève à environ 1 000 milliards d’euros pour l’ensemble de l’Union Européenne. Si l’argent planqué dans les paradis fiscaux ou qui échappe au fisc, grâce aux méthodes d’optimisation fiscale illégale revenait à l’État, il n’y aurait plus de dette.” (BOCQUET, Eric et al: 2016) [7]

No entanto, apesar dos esforços da comunidade internacional no combate à evasão fiscal, os interesses do capital parecem ainda falar mais alto. O cenário de concorrência fiscal entre os países em muito se assemelha com a guerra fiscal do ICMS entre os Estados brasileiros e, como esta, não leva a um bom caminho em termos de desenvolvimento econômico e social. Por outro lado, a ineficácia do BEPS na inibição da concessão de incentivos fiscais ou redução dos tributos entre os países alimenta essa guerra fiscal, quer seja pela disputa do investimento estrangeiro. 

Uma política global de governança fiscal ampla e abrangente, que imponha, por exemplo, limites mínimos e máximos de carga tributária no comércio internacional e o banimento dos paraísos fiscais, pode, aos poucos, acabar com esse cenário e, somado com as demais iniciativas que atualmente estão sendo implementadas, pode, se não eliminar, reduzir muito as perdas de arrecadação provocadas pela evasão fiscal praticada pelas empresas multinacionais, garantindo, assim, um caminho mais promissor para o desenvolvimento econômico mais igualitário entre os países.


Notas e Referências:

[1] PIKETTY, Thomas. Pour Une Révolution Fiscale. Un Impôt sur le Revenu pour le XXIe Siècle. Seuil, 2011. P.67.

[2] Disponível em:

[3] NABAIS, José Casalta. A soberania fiscal no actual quadro de internacionalização, integração e globalização econômicas. Lisboa: Jornal Direito Público, volume 1, edição 6, 2010.

[4] Disponível em:

[5] Disponível em:

[6] BOCQUET , Eric e BOCQUET , Alain. Sans domicile fisc. Paris : ed. du Cherche-Midi : 2016.

[7] “A dívida [pública] na França subiu para 71 bilhões de Euros. O montante da evasão fiscal é estimado em 60 a 80 bilhões de Euros por ano. Ela subiu para algo em torno de 1 trilhão de Euros para o conjunto da União Europeia. Se o dinheiro escondido nos paraísos fiscais ou que escapa do Fisco, graças aos métodos de otimização fiscal ilegal retornasse ao Estado, não haveria mais dívida [pública]”.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A progressividade aparente do ITCMD em Santa Catarina

Velocino Pacheco Filho
Sempre que possível, dispõe o § 1º do art. 145 da Constituição, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Têm caráter pessoal os impostos que levam em conta as condições de cada contribuinte. A capacidade econômica (ou contributiva), por sua vez, respeita ao critério pelo qual cada um é chamado a contribuir para o financiamento do Estado.
A implementação dos princípios da pessoalidade e da capacidade econômica levam à progressividade da tributação, entendida como aplicação de alíquotas mais altas em razão do aumento da base de cálculo. Desse modo, os mais ricos contribuem em proporção maior para o financiamento da coisa pública.
A progressividade das alíquotas do ITCMD, como forma de realizar a justiça fiscal, encontrou respaldo no Pleno do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento do RE 562.045 RS, rel. p/ acórdão a Min. Carmem Lúcia (DJe 233, pub. em 27-11-2013), decidiu:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL: PROGRESSIVIDADE DE ALÍQUOTA DE IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS E DOAÇÃO DE BENS E DIREITOS. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 145, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DA IGUALDADE MATERIAL TRIBUTÁRIA. OBSERVÂNCIA DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO.
O art. 9º da Lei 13.136, de 25 de novembro de 2004, de Santa Catarina, adotou a progressividade de alíquotas, variando de 1% para a parcela da base de cálculo igual ou inferior a R$ 20.000,00 até 7%, para a parcela da base de cálculo que exceder a R$ 150.000,00. Esses valores ainda são os originais de 2004; apesar da inflação, eles nunca foram atualizados. 
Conforme disposto no art. 10 dessa Lei, são isentos do pagamento do imposto, o herdeiro, o legatário ou o donatário que houver sido aquinhoado com um único bem imóvel, desde que se destine à moradia própria do beneficiário que não possua qualquer outro bem imóvel e cujo valor não seja superior a R$ 20.000,00. Também está isento o herdeiro, o legatário ou o donatário, quando o valor dos bens ou direitos recebidos não exceder ao equivalente a R$ 2.000,00. Nos demais casos, a transmissão é tributada. 
Esses valores são irrisórios e fazem com que a pretendida progressividade pareça uma burla. Com a passagem do tempo e a persistência do fenômeno inflacionário, a tendência é “nivelar por cima” de modo que todos, não importa quão diminuta seja a herança, legado ou doação, passem a ser tributados pela alíquota máxima de 7%.
Além disso, a própria Constituição do Estado determina, conforme art. 130, IV, que o imposto sobre a transmissão causa mortis e doação não será exigido quando o acervo hereditário ou os quinhões forem considerados irrelevantes em razão de sua reduzida expressão monetária ou o adquirente for deficiente físico ou mental incapaz de prover a própria subsistência. Essas disposições jamais foram implementadas na legislação tributária estadual, de modo que se tornaram letra morta, apesar de constarem da Lei Magna do Estado de Santa Catarina.
Para o Estado, a situação é muito cômoda! Basta não fazer nada, que a receita tributária do ITCMD tende a aumentar, sem que isto represente aumento da riqueza ou maior eficiência dos órgãos fiscalizadores.
No entanto, diz a Constituição da República que um de seus fundamentos é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). O art. 3º, III, por sua vez, elege como objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais. A progressividade das alíquotas do ITCMD colabora com a consecução desses objetivos, mas a progressividade da Lei 13.136/2004 é apenas aparente. A falta de atualização dos valores leva todos para a alíquota máxima.
A questão, contudo, tem uma componente de ordem moral. 
Klaus Tipke distingue entre a moral tributária do Estado, a moral tributária dos contribuintes e a moral tributária da Administração. A esta última refere-se o princípio da moralidade administrativa prevista no art. 37 da Constituição Federal. 
A moral tributária do Estado, segundo Tipke, repousa no princípio da capacidade econômica. Será moral o tributo que cobre de cada um conforme a sua capacidade de contribuir.
Entre nós, Marco Aurélio Greco (Notas sobre o Princípio da Moralidade, in Direito Tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. Coord. Luis Eduardo Schouri. São Paulo: Quartier Latin, 2003) leciona que “conduta imoral não é a que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém. Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é destinatário da conduta”.
Em síntese, o crescimento da arrecadação, devida à não atualização da tabela do ITCMD, de modo que todos passem gradualmente a ser tributados pela alíquota mais alta, caracteriza uma imoralidade, na medida que subverte a progressividade e o princípio de cada um ser tributado na medida de sua capacidade econômica.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Substituição tributária e livre concorrência

Velocino Pacheco Filho

Os Estados justificam a adoção do regime de substituição tributária “para frente” – regime em que o ICMS devido pelo varejista é recolhido antecipadamente pelo industrial, pelo importador ou pelo atacadista, na qualidade de contribuinte substituto – argumentando que contribui (i) para o incremento da arrecadação, (ii) pela garantia da concorrência leal e (iii) pelo desestímulo à evasão tributária.

Com efeito, a substituição tributária permite um melhor uso dos meios, materiais e humanos, à disposição do Fisco: os trabalhos de fiscalização concentram-se em poucas empresas (indústrias, importadores e atacadistas), no lugar de dispersar os esforços com grande número de empresas varejistas.

No tocante à proteção à concorrência, argumenta-se que quando o imposto é retido por antecipação, não importa se será revendido, no decurso da cadeia de circulação da mercadoria, por uma empresa “séria” ou por um sonegador contumaz, já que a retenção será igual para ambos. Caso não houvesse a retenção antecipada do imposto, o caminho estaria aberto para o subfaturamento e a evasão tributária, mediante ocultação da ocorrência do fato gerador. A incorporação prévia do lucro à base de cálculo teria o efeito de garantir que o produto chegue ao varejo pelo mesmo preço, independentemente de quem seja o revendedor. 

Ora, a livre concorrência consta entre os princípios informadores da ordem econômica, relacionados no art. 170 da Constituição da República, juntamente com a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego. Ou seja, o constituinte optou por uma economia de mercado, onde os preços são determinados pelo equilíbrio entre oferta e demanda, indicando o que, quanto, como e para quem produzir. 

Sucede que uma economia de mercado requer uma tributação neutra sobre o consumo e que não influencie nas decisões dos agentes econômicos. Contudo, tributação neutra não significa simples não-intervenção do Estado na economia, como queria o antigo paradigma liberal. Estamos falando em neutralidade na tributação sobre o consumo e não em relação ao sistema econômico em geral, em setores onde pode ser exercida a função indutora da tributação. Mesmo em relação ao mercado, deve ser mantido um equilíbrio entre os demais valores prestigiados pelo constituinte, como o tratamento favorecido à microempresa, a busca do pleno emprego, a proteção ao meio-ambiente etc.

Um motivo para a intervenção do Estado na economia é justamente a proteção da livre concorrência, conforme dispõe o § 4º do art. 173 da Constituição: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Em suma, espera-se que o Estado aja com imparcialidade, sem criar condições desiguais de concorrência para os agentes econômicos.

Então se fala em neutralidade tributária no sentido de não interferência do tributo nas relações de mercado, tornando determinada operação mais vantajosa para um ou mais desvantajosa para outro. Neutralidade tributária significa que as decisões dos agentes econômicos (o que e quanto ofertar no mercado) dependam de fatores econômicos (demanda e oferta) e não da incidência de tributos.

Entretanto, os Fiscos dos Estados, na sua justificação do regime de substituição tributária não considera a hipótese de que o oferecimento do produto a preço menor não é necessariamente decorrente de fraude e sonegação, mas de maior competência  concorrencial. A substituição tributária pode apenas estar encobrindo a ineficiência das empresas interessadas, na medida em que o Poder Público garante a margem de lucratividade. Porque ser eficiente se o Poder Público as protege contra as incertezas da concorrência? Tudo sugere um acordo entre algumas empresas e o Poder Público. A substituição tributária se prestaria ao papel de barreira contra a entrada de novas empresas no mercado. Isto explicaria, por exemplo, a seleção arbitrária e sem critérios das mercadorias sujeitas ao regime. 

A substituição tributária constitui uma exceção à regra da não-cumulatividade, já que todo o tributo é exigido em uma única fase do ciclo de comercialização. Na substituição tributária “para frente” o tributo que seria devido na última operação do ciclo de comercialização (do varejista para o consumidor final) é exigido antecipadamente de quem inaugura o ciclo – o produtor, o importador ou o atacadista. Nesse caso, o imposto exigido do substituto é calculado sobre base de cálculo arbitrada, com afastamento da base de cálculo real correspondente à operação presumida que deverá ser realizada pelo substituído. Naturalmente, ela representa o abandono de qualquer tributação neutra sobre o consumo e, por conseguinte, de uma tributação compatível com o princípio da livre concorrência, já que a incidência do tributo passa a ser fator relevante nas decisões empresariais.

Quando duas empresas concorrem no mercado, deveria vencer a que fosse mais eficiente, colocando seu produto a preços mais baixos que o concorrente ou ofertando um produto de melhor qualidade. O tributo, no caso, iria integrar a estrutura de custos. O empresário mais eficiente, que conseguisse reduzir os seus custos e oferecer seus produtos a preços mais competitivos, espera-se, iria conseguir uma fatia de mercado maior que o de seu concorrente.

Contudo, com regime de substituição tributária “para frente” será cobrado o tributo sobre um preço estimado que não leva em conta a eficiência do empresário. É como se para o Fisco, não interessasse o empresário ser mais eficiente, oferecendo seu produto a um preço menor. A base de cálculo do fato gerador presumido é a mesma.

Desse modo, o empresário mais eficiente, que tem condições de oferecer preços mais baixos ao mercado do que aqueles fixados por presunção do Fisco, estará sendo penalizado na medida em que irá repassar ao consumidor o mesmo valor do tributo que aqueles que praticarem preços iguais ou mesmo superiores ao que for arbitrado. Por conseguinte, a substituição tributária “para frente” constitui, na verdade, um obstáculo à livre concorrência.

Assim, pretender que a substituição tributária garante a concorrência é um completo equívoco. Pelo contrário, o regime, além de subverter a não cumulatividade, representa uma intervenção do Estado no sistema de preços. Constitui o que Karl Engish chama de contradição teleológica – i.e. uma legislação infraconstitucional que frustra a consecução de princípios insertos na Constituição, no caso a livre concorrência .

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Tributação e analogia

Velocino Pacheco Filho 

A analogia é técnica de integração da legislação tributária, prevista no art. 108, I, do CTN: “Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia”.

São duas as condições para o emprego da analogia: (i) a existência de lacuna, como uma incompletude insatisfatória do ordenamento jurídico e (ii) a existência de pelo menos um elemento de identidade entre o caso previsto e o não previsto. Segundo Limongi França (Hermenêutica Jurídica. 7ª e. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 45), “a identidade entre os dois casos deve atender ao elemento em vista do qual o legislador formulou a regra que disciplina o caso previsto, constituindo-lhe a ratio legis”. Carlos Maximiliano fala de uma semelhança essencial, “da qual dependem todas as conseqüências merecedoras de apreço na questão discutida”.

Por sua vez, a lacuna não se confunde com o silêncio eloquente da lei (o que a lei quis, disse, o que não quis, guardou silêncio).  A distinção, elucida Marco Aurélio Greco (Planejamento Tributário. 3ª ed. São Paulo Dialética, 2011, p. 176): 

a lacuna é a não previsão no sentido de falta de norma específica para a hipótese; o silêncio eloqüente é o não querer que esteja previsto, no sentido de existir uma norma que determina que o caso não está alcançado. Não é meramente o não prever; silêncio eloqüente é uma não previsão que corresponde a uma vontade que o caso não esteja alcançado.

No caso do direito tributário, uma terceira condição se impõe: conforme § 1º do art. 108 do CTN, “o emprego da analogia não poderá resultar em exigência de tributo não previsto em lei”. Sobre o tema, leciona Hugo de Brito Machado (Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. II, São Paulo: Atlas, 2004, p. 225) que “a lei que define as hipóteses de incidência tributária não admite integração analógica”, porque seria incompatível com o princípio da legalidade. Ou seja, não se poderia cogitar de lacuna porque em face do princípio da legalidade tributária, não há tributo sem lei anterior que o institua.

Seria o caso do assim chamado “diferencial de alíquotas” nas operações interestaduais – a diferença entre a aplicação da alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual. A partir da Emenda Constitucional 87/2015 que alterou a redação do inciso VII do § 2º do art. 155 da Constituição da República, o ICMS resultante da diferença entre as alíquotas pertenceria ao Estado de destino.

Normalmente, o imposto devido é o resultado da aplicação da alíquota sobre a base de cálculo que, no caso do ICMS, é o valor da operação. Entretanto, no caso da importação de mercadoria do exterior, a mercadoria não vem onerada pelo ICMS, de modo que a simples aplicação da alíquota sobre o valor da operação representa que o imposto está sendo calculado “por fora”, ao contrário das operações no mercado interno. Isto significa que a mercadoria importada sofre tributação menor que a similar adquirida no mercado interno.

Em vista disso, a Emenda Constitucional 33/2001 acrescentou a alínea “i” ao inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição da República: “cabe à lei complementar fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.

O dispositivo constitucionaliza o cálculo “por dentro” do ICMS e dispõe que o cálculo por dentro também será aplicado às importações. Isto por que, até então, o ICMS nas importações era calculado “por fora”. A inclusão é expressa para o ICMS relativo à importação e não a qualquer outro caso. Por outro lado, o dispositivo comete à lei complementar a fixação da base de cálculo, ou seja, o cálculo do imposto. 

Ora, a Lei Complementar 87/1996 define a base de cálculo na importação no art. 13, V. O § 1º, I, do mesmo artigo, com redação dada pela Lei Complementar 114/2002, dispõe que “integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo, o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”. A alteração introduzida pela Lei Complementar 114/2002 torna expressamente obrigatório o cálculo por dentro no caso de importação. 

Outras situações, entretanto, como é o caso do diferencial de alíquotas, continuou sendo calculado “por fora”, apesar de apresentar os mesmos efeitos. Poderia ser aplicada, por analogia, a mesma solução?

A situação é análoga ao da importação. A mercadoria é tributada no Estado de origem pela alíquota interestadual, o que significa que o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna no Estado de destino e a alíquota interestadual é calculada “por fora”. Como na importação, há vantagem em comprar de outro Estado.

A ratio legis, então, nos dois casos, é a mesma: o cálculo “por fora” não equaliza o ônus tributário, conforme a mercadoria seja adquirida internamente ou importada do exterior ou de outro Estado. Por não haver previsão expressa da legislação, a lacuna, como incompletude insatisfatória do ordenamento jurídico, está caracterizada.

Contudo, a adoção do cálculo “por dentro” representa uma inovação e um agravamento do ônus tributário. Até agora, o diferencial de alíquota tem sido calculado “por fora”. Nessas condições, a integração do direito tributário, pelo emprego da analogia, esbarra na vedação inserta no § 1º do art. 108 do CTN.

A adoção do “cálculo por dentro”, no caso do diferencial de alíquota, exige lei em sentido estrito. A própria Constituição da República dispõe que compete à lei complementar, em relação aos impostos que discrimina, a definição da respectiva base de cálculo. (CF, art. 146, III, “a”). Trata-se do princípio da reserva legal que, conforme magistério de Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199), é de abrangência mais restrita que o princípio da legalidade: “Se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei. Este é, portanto, de menor abrangência, mas de maior densidade ou conteúdo, visto exigir tratamento de matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo”.

O Estado de Minas Gerais editou a Lei 21.781/2015, tratando do diferencial de alíquota, seguido do Decreto 46.930/2015 que disciplinou o cálculo por dentro do imposto relativo à diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

UMA NOVA ÉTICA TRIBUTÁRIA

por FABIANO RAMALHO

O mundo que conhecemos está mudando. Não apenas sob o aspecto econômico, mas também na forma como as pessoas se relacionam. A convergência de um mundo globalizado e dos avanços tecnológicos possibilitaram condições nunca antes vistas para o progresso humano. Vivemos mais, vamos mais longe e com mais saúde.

E, com o avanço de três poderosas ferramentas tecnológicas, a saber, o big data[1], a inteligência artificial e os objetos conectados (ou Internet dos objetos), essas mudanças aceleraram ainda mais. Sob a lógica da inovação constante, uma nova realidade social e econômica se impôs de forma irresistível, mudando a vida dos indivíduos. Segundo Luc Ferry[2], estamos passando para uma nova etapa da revolução industrial, chamada “economia colaborativa”, cuja principal característica é a autonomia extrema dos indivíduos no desenvolvimento de atividades econômicas.

Novas formas de exercer atividades econômicas, como aquelas decorrentes das aplicações Uber, Blablacar e AirBnB, onde os indivíduos exploram seu patrimônio pessoal para fins econômicos, provocaram a derrocada de um mundo em rápida obsolescência e fizeram com que profissões tradicionais ficassem fadadas ao desaparecimento, num inevitável processo de dumping social.

Nesse cenário turbulento, uma nova ética social reclama seu espaço, a fim de acomodar as novas relações sociais e permitir o aperfeiçoamento das instituições político-jurídicas. O Direito precisa, evidentemente, apresentar respostas a essas novas demandas sociais e, no caso do Direito Tributário, uma nova ética começa a delinear os contornos da atuação dos operadores do direito e da contabilidade.

Essa ética da alteridade em matéria tributária começa a surgir no meio jurídico por meio da positivação de normas de responsabilidade, que impõem deveres de comportamento para os profissionais da tributação, obrigando-os, e.g., a reportar atos de desconformidade à Lei, praticados por seus clientes.

É o caso, e.g., da obrigação de declarar ao COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras, qualquer suspeita de crime de lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. A Lei n° 9.613/1998, com as alterações da Lei n° 12.683/12, obriga diversas pessoas físicas e jurídicas a promoverem essa declaração, prevendo, em seu art.1°, que constitui crime “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Nos últimos 5 anos, uma média superior a 400.000[3] comunicações de suspeita de irregularidades foram feitas ao COAF por ano, desencadeando procedimentos diversos pelas autoridades competentes, com vistas à prevenção e ao combate da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo.

Mas talvez o mais expressivo exemplo de mudança na ética profissional esteja surgindo em alterações iminentes da atividade dos contadores e auditores. Está em fase de implantação no Brasil o NOCLAR - Non Compliance with Laws and Regulations (não conformidade com as leis e regulações), um dos módulos do International Financial Reporting Standards (IFRS), editada em julho de 2016 pela International Ethics Standards Board for Accountants - IESBA (Conselho de Normas Éticas Internacionais para os Profissionais da Contabilidade), com o intuito de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo no mundo.

No Brasil, o NOCLAR está sendo traduzido e analisado pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e pelo Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (IBRACON), dentre outros órgãos. Prevista para entrar em vigor em julho de 2017, a norma exige que, não havendo outra solução, os contadores e auditores informem aos órgãos competentes atos de desconformidade à lei, praticados pelas empresas para as quais prestem serviços.

Essa norma representa uma evolução enorme em termos de ética profissional, a ponto de impor a revisão de velhos conceitos relacionados com o sigilo profissional. Em nome do interesse público, o dever de comunicar atos de desconformidade à Lei (e não apenas aqueles relacionados com lavagem de dinheiro e terrorismo, objetos do COAF), tem um forte apelo de moralização das atividades econômicas, ao mesmo tempo em que impõe uma forte disciplina legal aos seus agentes. As possibilidades em termos de combate à evasão fiscal, e.g., são imensas, o que contribuiria para o equilíbrio das contas públicas. Por isso, não é exagero admitir que, em curto prazo, normas semelhantes sejam assimiladas pela legislação pátria, alcançando diversos outros profissionais.

No entanto, diante dessa tendência normativa inovadora, surgem preocupações legítimas com a preservação de direitos e garantias previstos em nosso Ordenamento Jurídico, como, e.g., a segurança jurídica, o respeito às prerrogativas profissionais e a proteção daqueles que comunicam os atos de desconformidade à Lei.

Como oferecer a devida proteção contra perseguições e represálias? Mesmo na experiência do COAF, onde há proteção por meio do sigilo, ocorrem falhas que expõem o delator a diversos riscos. Como admitir, então, a vigência imediata do NOCLAR ou norma semelhante, cujo alcance é muito maior e não tem previsão de proteção ao comunicante?

O NOCLAR advém de um conjunto de pronunciamentos contábeis padronizados globalmente, com previsão de aplicação simultânea nos diversos países signatários. Ocorre que nem todos possuem maturidade social e legislativa para recepcionar as novas normas e procedimentos. É o caso do Brasil, que possui um gap nesse sentido, acumulando uma grande defasagem no desenvolvimento social e político em relação aos países mais desenvolvidos. Essa desvantagem impõe ao país uma dificuldade extra na implementação dessa nova matriz de ética profissional para os profissionais da contabilidade.

Não é apenas a falta de uma legislação de proteção para as comunicações de atos ilegais, mas também a falta de uma cultura que permita uma consciência plena do dever de legalidade que causa preocupação. Impor essas alterações sem o devido amadurecimento legal e social implicaria em queimar etapas importantes do desenvolvimento de nossas instituições, o que colocaria em risco tanto a eficácia das novas medidas quanto a segurança jurídica dos cidadãos.

Na maioria dos países desenvolvidos, a comunicação dos atos de desconformidade à lei deriva de uma maturidade social avançada, cuja cultura jurídica reconhece tal prática como um “direito” do cidadão. De fato, quem comunica atos contrários à lei o faz para o exercício de um direito, em prol do interesse público, o que é garantido por lei. Muito antes de se pensar em NOCLAR, já existia nesses países todo um arcabouço legal que garantia o exercício do direito de relatar os atos ilegais e protegia o comunicante de qualquer consequência nociva.

Normas internacionais, ao longo do tempo, sistematizaram essa proteção em nível global por meio de tratados internacionais, como é o caso da “Convenção Civil sobre a corrupção do Conselho Europeu”, de 04/11/1999, e da “Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção”, de 31/10/2003. Esta última, da qual o Brasil é signatário, prevê, em seu art.33, a proteção de “toute personne qui signale aux autorités compétentes, de bonne foi et sur la base de soupçons raisonnables” os fatos de corrupção[4].

Nos EUA, onde o comunicante é conhecido como wistleblower, uma série de normas oferecem proteção ao exercício do direito de comunicar atos ilegais, como o  Whistleblower Protection Act (Public Law 101-12)[5], de 1989, que protege os servidores públicos federais que reportam desvios de conduta em suas agências governamentais. O mesmo ocorre na França, onde o Lanceur d´Alerte, como é chamado, é protegido por leis e regulamentos diversos, como a Loi n° 2007-1598[6], de 13/11/2007, relativa à luta contra a corrupção.

A Transparência Internacional, ONG dedicada ao combate à corrupção ao redor do mundo, editou o International Principles for Whistleblower Legislation, que é um conjunto de sugestões legislativas para a proteção de quem reporta desconformidade e para o incentivo dessa reportagem. Nesse documento, constam os princípios básicos que animam o direito de reportar, como consta do seguinte trecho:

“The right of citizens to report wrongdoing is a natural extension of the right of freedom of expression, and is linked to the principles of transparency and integrity.” [7]

No entanto, mesmo diante de tamanho suporte legislativo, a proteção ao comunicante ainda apresenta falhas. Um caso ficou famoso na Europa, conhecido como LuxLeaks[8], onde dois lanceurs d’alerte, Antoine Deltour e Raphaël Halet, colaboradores do escritório de auditoria PricewaterhouseCoopers (PwC), foram condenados[9] pela Justiça de Luxembourgo à doze meses de prisão e multa de 1.500 € e nove meses de prisão e 1 000 €, respectivamente, por terem revelado o conteúdo de várias centenas de acordos fiscais extremamente vantajosos entre o fisco de Luxemburgo e clientes da PwC, como a Apple, Amazon e Pepsi.[10]

Se mesmo lá, onde existe forte proteção jurídica para o comunicante, ocorrem represálias e perseguições, como esperar que a obrigação de contadores e de outros profissionais brasileiros de comunicar atos de desconformidade à lei, sem nenhuma proteção prévia, possa alcançar êxito no Brasil? Parece prematuro admitir a vigência do NOCLAR e de normas do mesmo gênero no país, diante desse cenário preocupante.

Ninguém, em sã consciência, seria contra o desenvolvimento de novas regras de ética profissional, sobretudo quando voltadas ao combate à corrupção, à fraude e à evasão fiscal. No entanto, aderir a tais regras sem a devida proteção seria um verdadeiro suicídio, com graves consequências sociais para o denunciante. É condição sine qua non, para o amadurecimento da ética tributária no Brasil, o desenvolvimento sustentável de condições sociais, políticas e econômicas, voltadas para a formação de uma cultura social e jurídica que permitam a implementação segura de normas com essa finalidade. E só conseguiremos isso através de um amplo debate público e da formação de uma adequada consciência sobre o justo em matéria tributária.


(Obs.: Artigo publicado originalmente em 22/02/2017, na Coluna da ASSET/SC, junto ao site Empório do Direito.)



[1] Todo tipo de rastro que deixamos na Internet e que são coletados, tratados e comercializados.
[2] Disponível em https://goo.gl/HjXi8a
[7] Disponível em www.transparency.org
[9] Atualmente em fase de recurso na Corte de Luxemburgo.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A exigibilidade do ICMS diferido

Velocino Pacheco Filho

Entende-se por diferimento a postergação da exigibilidade do imposto para etapa posterior de circulação da mercadoria. Segundo Sacha Calmon Navarro Coelho, o diferimento do ICMS ocorre quando “o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro”. Assim, conforme julgamento da Primeira Turma do STF, no RE 112.354-6, “do diferimento não resulta eliminação ou redução do ICM; o recolhimento do tributo é que fica transferido para momento subsequente”.

O diferimento pode envolver outros institutos, como é o caso da substituição tributária relativa a operações antecedentes ou “para traz”. Entende-se por substituição tributária a translação da sujeição passiva para pessoa diversa do contribuinte. Conforme define o art. 121, parágrafo único, I, do CTN contribuinte é a pessoa que tem relação pessoal e direta com a situação fática que constite o respectivo fato gerador. 

Já a substituição tributária está prevista no art. 128 do Código Tributário Nacional: “a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação”.

O contribuinte do imposto está definido implicitamente na norma de incidência tributária. Isto é, se o contribuinte é aquele que “tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato gerador”, basta determinar o fato gerador que teremos identificado o contribuinte – e.g. se o fato gerador do imposto é a propriedade, a auferição de renda ou a circulação de mercadoria, o contribuinte não pode ser outro senão o proprietário, quem aufere a renda ou quem promove operações de circulação de mercadorias. Porém, a lei pode atribuir a responsabilidade pelo recolhimento do imposto a terceiro diverso do contribuinte, embora vinculado ao fato gerador (fonte pagadora, adquirente da mercadoria etc.).

De modo geral, o diferimento do imposto para operação subsequente implica substituição tributária, na medida em que a pessoa obrigada ao recolhimento (adquirente da mercadoria) é pessoa diversa do contribuinte (pessoa que procede à saída da mercadoria de seu estabelecimento). No caso do adquirente promover nova saída tributada, por valor igual ou superior ao da entrada, o imposto que foi diferido estará incluso no imposto devido na operação subsequente ou – na linguagem utilizada pelo legislador – o imposto diferido subsume-se no imposto devido na operação subsequente.

Por outro lado, a exoneração tributária é matéria submetida à reserva absoluta de lei. O financiamento do Estado é obrigação de todos, na medida de suas respectivas capacidades contributivas. Logo, somente a lei (em sentido estrito) pode dispensar a obrigação tributária. Jamais decreto ou decisão de autoridade administrativa poderia fazê-lo. No caso do ICMS, o constituinte impôs ainda a disciplina dos convênios para o exercício da competência exonerativa. A regra encontra-se insculpida no § 6° do art. 150 da Lei Maior:

“§ 6° Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2°, XII, g”.

Por conseguinte, o imposto que foi diferido deve tornar-se exigível em algum momento. Caso contrário, o diferimento transmutar-se-ia em isenção, o que não é possível. Somente convênio celebrado entre os Estados e o Distrito Federal, nos termos da Lei Complementar 24/75, poderia autorizar a dispensa do tributo. Assim, o ICMS diferido deve ser exigível em algum momento. Caso o imposto diferido não tenha sido recolhido em algum momento no futuro, ele deve ser cobrado de ofício, com os acréscimos legais, sem prejuízo do competente inquérito administrativo para apurar a responsabilidade do funcionário que autorizou a dispensa do pagamento.

Mas, quando é devido o ICMS diferido?

O ICMS, por força do disposto no art. 155, § 2°, I, da Constituição Federal, é um imposto plurifásico não-cumulativo. Isto significa que incide em todas as etapas de comercialização da mercadoria, mas o imposto a recolher, em cada etapa, corresponde à diferença entre o imposto devido e o que foi pago nas etapas anteriores.

Então, o imposto que foi diferido em uma etapa da comercialização não gera crédito para a operação subsequente. A legislação diz que se subsume na operação seguinte, no sentido de que parte do ICMS então recolhido nada mais é senão o ICMS diferido.

Dispõe o RICMS-SC que “o imposto devido por substituição tributária subsumir-se-á na operação tributada subsequente promovida pelo substituto”. Se não houver operação tributada subsequente, o destinatário (substituto tributário) deve recolher o imposto que foi diferido, salvo se a operação subsequente for isenta ou não tributada ou se ocorrer qualquer evento que impossibilite a ocorrência do fato gerador do imposto.

Mas, o que ocorre se o imposto devido pela operação subsequente não for suficiente para cobrir o ICMS que foi diferido? Seria, por exemplo, o efeito de uma redução da base de cálculo. Como diferimento e isenção não se confundem, o imposto diferido (=postergado) deve ser satisfeito.
  
“Subsumir”, conforme Dicionário Aurélio, vem de sub- + lat. sumere (tomar, colher, aceitar). Significa conceber um indivíduo como compreendido numa espécie ou uma espécie como compreendida em um gênero. Por conseguinte, “subsumir” refere-se à absorção da parte no todo ou do menor no maior.

Ora, se o imposto devido não for suficiente para cobrir o imposto diferido, então não há absorção do diferido pelo imposto devido na operação. Em outras palavras, não há subsunção. Como – segundo o STF – do diferimento não resulta eliminação ou redução do imposto, infere-se que a parcela do imposto diferido que não se subsumiu na operação subsequente deve ser recolhida.

Com efeito, a dispensa de recolhimento do imposto diferido – quando este não se subsumir completamente na operação subsequente – caracterizaria, de fato, uma isenção a qual somente poderia ter sido instituída por lei e mediante prévia autorização pelo Confaz.

Em síntese, como diferimento não se confunde com isenção, ele deve ser recolhido em algum momento posterior, subsumindo-se no imposto devido ou, se for o caso, recolhido separadamente pelo substituto tributário.

À evidência, quando o RICMS-SC dispõe que o imposto diferido deve ser pago juntamente com o imposto relativo à operação subsequente, fica implícito que a “subsunção” do imposto pressupõe que o imposto devido na operação subsequente seja maior que o diferido (ou seja, se o imposto não tivesse sido diferido, seria deduzido como “crédito”). Caso contrário – o imposto diferido ser maior que o imposto relativo à operação subsequente – a parcela do imposto diferido que exceder o imposto próprio da operação deverá ser recolhida, sob pena de exonerar parcela do imposto devido, sem lei ou convênio que o autorize.